BE3207
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PROCESSO E REGISTRO
Averbação manifestamente indevida da penhora
Fábio Milman*
A averbação da ação de execução, novidade introduzida pela lei 11.382/06 por meio do artigo 615-A do CPC[1], se apresenta como verdadeiro efeito antecipado na demanda executiva que, modo ordinário, somente decorreria da penhora[2], com forte eficácia cautelar[3], aumentando sua probabilidade de êxito[4], tendo como objetivo dotar o exeqüente de mais segurança ao permitir, a terceiros, ciência do ajuizamento da demanda de expropriação[5], gerando presunção absoluta[6] de que havida em fraude a alienação ou oneração de bens efetuada após seu desempenho. A hipótese em tratamento veio acompanhada de técnica de desestímulo à irresponsabilidade do autor da demanda de expropriação ao prever, no parágrafo quarto do mesmo artigo 615-A, que: “O exeqüente que promover averbação manifestamente indevida indenizará a parte contrária, nos termos no § 2° do art. 18 desta Lei, processando-se o incidente em autos apartados”.
Na medida em que a punição ao mau uso da faculdade de averbação da ação de execução dar-se-á em conformidade com o mencionado parágrafo segundo do artigo 18 do Código, considerando que o artigo 18, caput, informa que seu conteúdo diz com a condenação do litigante de má-fé, fica evidente cuidar-se o ato sob foco de uma explicitação de alguns dos tipos do artigo 17, estes dedicados à enumeração exemplificativa de litigância de má-fé.[7] Examinada a lista, nosso entendimento indica possibilidade eventual de enquadramento nos incisos II (alterar a verdade dos fatos), III (usar do processo para conseguir objetivo ilegal) e V (proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo).[8]
De observar a enorme gravidade da conduta abusiva que se pretende evitar: direito potestativo do exeqüente[9], de aplicação plena também no cumprimento da sentença de obrigação de pagar quantia certa[10], sem qualquer ordem judicial, sem exercício de contraditório e antes mesmo da citação com abertura da oportunidade legal do pagamento ou, ainda, de indicação de bens à penhora, o exeqüente cuidará, pessoal e independentemente de maiores formalidades, de lançar gravame sobre itens patrimoniais do apontado devedor[11]. O réu da execução, valendo-se dos meios habituais de defesa de seus interesses (impugnação, embargos ou mesmo exceção de pré-executividade) poderá demonstrar, tempo depois, sequer ser devedor, tendo sofrido, contudo, possíveis prejuízos decorrentes da averbação comentada.
O legislador reformista não precisou o conceito de “averbação manifestamente indevida”, deixando-o aberto. Pode-se cogitar, em tal categoria de atuação, o agir doloso do autor da ação de execução com a intenção evidente de causar danos a desafeto ou adversário ou concorrente, obstaculizando, com seu procedimento de imposição de restrição unilateral e particular, a obtenção de financiamento mediante hipoteca de bem imóvel até então livre e desembaraçado; o uso da averbação mesmo já existentes bens outros sobre os quais o exeqüente exerce direito de retenção ou garantia real[12]; o emprego excessivo da medida, considerado o valor dos bens em comparação com aquele sob exigência[13]; aquela que decorre de mero capricho[14] ou feita fundada em título falso ou em dívida já paga[15].
Os comentadores, debruçados sobre o texto legal, dividem-se na avaliação da natureza objetiva ou subjetiva da responsabilidade do exeqüente pela “averbação manifestamente indevida”[16]. Nosso entendimento no tratamento das hipóteses de improbidade[17] sempre busca trabalhar a idéia preferencial de responsabilidade objetiva, dada a pouca chance efetiva de, na rotina forense, haver espaço e tempo que possam ser ocupados pela dedicação dos magistrados à investigação da intencionalidade do agente, daí resultando sempre frustrante impunidade.
Tanto assim que o artigo 739-B, acrescentado ao CPC pela lei 11.382/06, afirma que a exigência “de multa ou de indenização decorrentes de litigância de má-fé (arts. 17 e 18) será promovida no próprio processo de execução, em autos apensos, operando-se por compensação ou por execução”. Ora, a “cobrança de multa ou de indenização”, mediante compensação, somente poderá resultar de ter sido o exeqüente punido por agir de forma ímproba[18] com a redução do valor de seu crédito (que será compensado com a montante de sua própria punição) ou mesmo restando, ao cabo, devedor do executado, se a quantia a qual condenado pelo mau comportamento mostrar-se superior àquela objeto da execução.
Já referimos ao conceito aberto traduzido pela expressão “averbação manifestamente indevida”. É entendimento de Glauco Gumerato Ramos[19] de tal condição resultar o processamento da discussão sobre a ocorrência abusiva da averbação em autos apartados. Divergimos: o texto ora em estudo, ao remeter a aplicação da sanção ao conteúdo do parágrafo segundo do artigo 18 do CPC, cogita possa o juiz fixar o valor da indenização de modo pronto, nos próprios autos da ação de execução, dispensando apuração em apartado, forma que somente será adotada quando e se necessária liquidação.
Embora tenha o legislador incluído a “averbação manifestamente indevida” como hipótese de litigância de má-fé,[20] o fato de ter o parágrafo quarto, do artigo 615, indicado aplicação apenas da pena prevista no parágrafo segundo do artigo 18 (indenização desde logo fixada pelo juiz, em quantia não superior a 20% sobre o valor da causa, ou apurada pela via da liquidação por arbitramento) afasta a regra do caput do mesmo artigo 18 que prevê, independentemente da ocorrência de prejuízos, incidência de “multa que não exceda a um por cento sobre o valor da causa”. E não conseguimos compreender por qual motivo, dado que independentemente da causação de prejuízos, o exeqüente, com a operação criticada, exerceu de modo ímprobo prerrogativas processuais com o que deve sim responder também com a pena pelo tão-só mau agir.[21]
Se a novidade trouxe, para a parte exeqüente, maior garantia quanto à satisfação do crédito reclamado, em idêntica proporção exigiu seriedade e comedimento em seu emprego. Ao cabo, para reflexão: na medida em que a norma em exame prevê sanção pecuniária, sem apresentar alternativas de punição, escapará de qualquer efetiva responsabilidade o exeqüente desprovido de condições financeiras e patrimoniais que averbar, modo manifestamente indevido, a execução.
Notas
[1] CPC: “Art. 615-A. O exeqüente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto”.
[2] ASSIS, Araken de. Manual de Execução, 11.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 441.
[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução e cumprimento da sentença, 24.ed., São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2007, p. 190.
[4] SILVA, Jaqueline Mielke; XAVIER, José Tadeu Neves; SALDANHA, Jânia Maria Lopes. A nova execução de títulos executivos extrajudiciais: as alterações da Lei n° 11.382/2006, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p. 66.
[5] BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil: comentários sistemáticos à Lei n° 11.382, de 6 de dezembro de 2006, v. 3, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 45.
[6] SANTOS, Ernani Fidélis dos. As reformas de 2006 do Código de Processo Civil: execução dos títulos extrajudiciais, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 21. ASSIS, Araken de. Op. cit., p. 260. Posição divergente tem Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo (“Reflexões sobre a averbação do ajuizamento da execução”, In: COSTA, Susana Henriques da (coord.). Execução extrajudicial. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 167), para quem a presunção de insolvência que emerge do § 3° do art. 615-A do CPC é relativa, “(...) o que implica dizer que pode ser elidida pelo devedor-executado ou pelo terceiro adquirente, bastando a prova de que, no momento da alienação ou oneração do bem objeto da averbação, existiam no patrimônio do devedor bens suficientes para satisfazer o crédito exeqüendo”.
[7] Em sentido diverso leciona Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo (“Reflexões sobre a averbação do ajuizamento da execução”, In: COSTA, Susana Henriques da (coord.). Execução extrajudicial. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 171), ao informar que a averbação manifestamente indevida “não configuram em princípio, ato de litigância de má-fé, não se subsumindo a nenhuma das hipóteses previstas no art. 17 do Código de Processo Civil.”
[8] SILVA, Jaqueline Mielke; XAVIER, José Tadeu Neves; SALDANHA, Jânia Maria Lopes. A nova execução de títulos executivos extrajudiciais: as alterações da Lei n° 11.382/2006, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p. 70.
[9] WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil, v. 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 75.
[10] RAMOS, Glauco Gumerato. Reforma do CPC 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 156. SANTOS, Ernani Fidélis dos. Op. cit., p. 55.
[11] O texto legal indica, especificamente, duas classes de direitos patrimoniais objeto de registro – imóveis e veículos, ainda admitindo a averbação da execução em relação a “outros bens sujeitos à penhora ou arresto” que sejam, parece evidente, também daqueles cuja titularidade é verificada e controlada pela via modo registral. Dentre tantos, as cotas sociais na Junta Comercial, ações perante a Bolsa de Valores, aeronaves (Lei n° 7.565/86, arts. 72 e 74, o Código Brasileiro de Aeronáutica), navios e embarcações (junto ao Tribunal Marítimo, conforme Lei n° 2.180/54, arts. 13, II).
[12] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 191.
[13] É o entendimento de Araken de Assis (op. cit., p. 442) e Jaqueline Mielke Silva, José Tadeu Neves Xavier e Jânia Maria Lopes Saldanha (op. cit., p. 69). Em sentido diverso Humberto Theodoro Júnior (op. cit., p. 191): “Não se pode, evidentemente, impor essa sanção apenas porque o bem averbado é de valor superior ao do crédito exeqüendo”.
[14] THEODORO JÚNIOR, Humberto. A reforma da execução do título extrajudicial, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 35.
[15] SANTOS, Ernani Fidélis dos. Op. cit., p. 21.
[16] Afirmando a responsabilidade objetiva no caso em tela, Jaqueline Mielke Silva, José Tadeu Neves Xavier e Jânia Maria Lopes Saldanha (op. cit., p.69), invocando a teoria do risco; na mesma linha, Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (op. cit., p. 78), asseverando presença da “averbação manifestamente indevida” se for possível a constatação de que o ato do exeqüente tenha destoado “da boa-fé objetiva, dos bons costumes e do fim social ou econômico do direito; modo diverso, apontando tratar-se de responsabilidade subjetiva, Cassio Scarpinella Bueno (op. cit., p. 53), contando, para exigibilidade da indenização, demonstração, pelo executado, de ter obrado o autor da execução com dolo ou culpa; e, ainda, Glauco Gumerato Ramos (op. cit., p. 163), para quem o ilícito processual somente assim poderá ser considerado se tiver o exeqüente plena ciência de tratar-se de averbação realmente indevida.
[17] MILMAN, Fabio. Improbidade processual: comportamento das partes e de seus procuradores no processo civil, Rio de Janeiro: Forense, 2007.
[18] Expressam entendimento em tal sentido Jaqueline Mielke Silva, José Tadeu Neves Xavier e Jânia Maria Lopes Saldanha (A nova execução..., p. 267) e Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (Breves comentários à nova sistemática processual civil, 3, p. 217).
[19] RAMOS, Glauco Gumerato. Reforma do CPC 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 163.
[20] Posição compartilhada por Daisson Flach (A nova execução de títulos extrajudiciais. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 27).
[21] Também forma de pensar de Cássio Scarpinella Bueno (A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil: comentários sistemáticos à Lei n° 11.382, de 6 de dezembro de 2006, v. 3, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 55).
*Fábio Milman é advogado processualista em Porto Alegre, RS; especialista em Direito Civil pela Unisinos; professor da Unisinos, da PUC-RS, da Escola Superior da Magistratura da Ajuris, da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS e do Instituto dos Advogado do RS.
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