BE3086

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Meditações gauchescas

Hermenêutica registral
Tópicos para uma hermenêutica registral – parte 4
Ricardo Dip*


(Meditações gauchescas, que, nesta parte, dedico à pequena JÚLIA CINTRA FERREIRA, uma literata de primeiras linhas, que ameaça agora escrever um livro infantil de Filosofia: também o Petit Prince teve de desenhar o interior de uma jibóia que estava a digerir um elefante; e assim desenhou afin que les grandes personnes puissent comprendre…).  

24. Talvez menos se censure a ingenuidade de Viersílov —a personagem de Dostoievski—, por ele expor-se a um diálogo aberto com sua amada Katierina Nikoláievna, do que, no episódio do engodo do Camponês de Andorra, a parvidade com que este se deixou embair pela frase “eu o amo de vez em quando” (veja-se:  BE # 3024, 4/7/2007).

25. A que se tributará essa mais intensa tonalidade crítica? Será ela conseqüente da mais visível credulidade do Camponês? Estaremos diante do flagelo da interpretação infantil? Ou acaso pomo-nos a censurar o ridículo de que o pobre se cobriu ao acreditar, piamente, na aclimação de uma sentença esperada?

Não me parece nada razoável, porém, que o agravamento de nossa crítica, em vez de derivar do resultado cândido da interpretação —isto por seu patente divórcio com a realidade—, proviesse apenas da chalaça que, prima facie, vitimou o Camponês.

Alessandro Manzoni —o mesmo autor do imperdível I Promessi Sposi, que tem tradução brasileira (Os Noivos, ed. Vozes, Petrópolis, tradutor Luís Leal Ferreira)—, Manzoni escreveu uma preciosa Osservazioni sulla morale cattolica (aqui citado pela edição de Arnoldo Mondadori, Milão, 1997), na qual, a páginas tantas, diz com muita agudeza que não devemos abdicar de algo só por ser objeto de zombaria: “Ma guai a noi, se vollessimo abbandonare tutto ciò che ha potuto essere soggetto di derisione!”.

Além de tudo, não se conhece nenhum código de protocolos humanos que proíba o holocausto voluntário à irrisão. Há, por exemplo, o episódio de S.Tomás de Aquino, que alguns frades convidaram, por mofa, a que fosse ver um boi voando; e conhece-se a esplêndida resposta que esses mentirosos mereceram. Nada impedia, pois, que o Camponês de Andorra antes preferisse, humanamente, apoiar-se numa hipotética simpatia da resposta do que na pronta comprovação da sátira que lhe propunha sua interlocutora.

É verdade que o valor facial da resposta —“eu o amo de vez em quando”— não era, de fato, o mais propício à aferição simpática do Camponês, posto à frente de uma, ao menos, contextual contradição de termos, mas é força admitir que, humanamente, a interpretação conforme ao expectável salvava a possível piedade que houvesse de algum modo influenciado a resposta da moça.

26. Todavia, se insistimos nessa nossa mais avultada crítica ao Camponês, centrando-a na bizarrice de sua interpretação, a crítica só se pode afirmar razoável enquanto reconhecemos algum limite legítimo para a aventura interpretativa. Com efeito, se podemos impugnar a intentio lectoris, é porque a demarcamos: se toda interpretação, de fato, estivesse imunizada de pecados, a nenhuma se poderia destinar crítica razoável.

Mas de quais limites estamos a falar? Se, no caso do Camponês, desafiamos a cândida abstração da zombaria da declaração de “amor” que lhe fora destinada, é porque negamos a hipertrofia da subjetividade na interpretação. Isso implica, de conseguinte, uma assinalação de fronteiras interpretativas, com os marcos da intentio auctoris e, muito mais, da intentio operis, na sua muita complexa relacionação.

27. Prontamente se vê que não destinamos nossa crítica à liberdade com que o Camponês exercitou seu pensamento interpretativo. Se, efetivamente, puséssemos limitesà liberdade de interpretação, recusaríamos, no fim e ao cabo, a certeira afirmação de que o homem é um ser que pensa (nesse sentido, por muitos, José María de Alejandro, Gnoseología, ed. BAC, Madrid, 1989). Pensar é um dado  natural de todos os homens, e não se poderia —à custa da candidez de seus resultados— recusar ao pensamento campesino os mesmos direitos de existir que se concede ao pensar urbano, ao pensar universitário, ao  pensar culto, ao pensar cortesão etc. Porque está em jogo a liberdade de pensar que é a liberdade de ser humano: somos, ao fundo, um resultado do que pensamos, nosso modo pessoal é o modo do nosso pensamento.

28. Tampouco —nos indefinidos caminhos com que o pensamento humano se desenvolve— poderíamos admitir uma limitação epistêmica para a interpretação, uns obstáculos arbitrários à investigação, à pesquisa, ao inquérito, ao jogo da memória, da experiência, da seleção de conceitos relacionáveis. É na liberdade epistemológica do pensar que se consagra a humana autonomia do pensador.

29. Como não parece razoável, por fim, que os limites à interpretação se extraiam do tempo do intérprete ou do espaço de seu exercício —num só e mesmo ambiente da Grécia conviveram Sócrates e Protágoras—, só nos restaria o derradeiro domínio da  limitação conceitual, vale dizer, dos limites da significação dos  termos a contar da realidade de seus objetos de conceito.

Enfim, é o contraste com a realidade o que enerva a crítica à intentio lectoris.

Na esteira de Yvan Élissalde, se nos propomos criticar razoavelmente uma dada interpretação, é forçoso que de algum modo a definamos. Não é possível, com efeito, criticar algo cuja noção por inteiro nos escape. Mas definir é pôr fins, é aceitar limites, é limitar a compreensão de conceitos e extrair-lhes a extensão correspondente.

Se admitíssemos a ilimitação do intérprete, atrairíamos a infinitude conceitual da interpretação —em vez de sua de-finitude—, e recusaríamos, a priori, toda possível interpretação da interpretação. Aceitar os limites da significação objetiva —a ancorar-se na evidência como  critério metafísico derradeiro— é salvar o pensamento e salvar o intérprete.

(Continuaremos).

*Ricardo Dip é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.



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