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Registro, guardião do direito de propriedade
Nicolás Nogueroles*


Há alguns anos, a Espanha tentou adquirir um imóvel em Moscou para instalação da futura sede do Instituto Cervantes. A dificuldade de conhecer com segurança a identidade do verdadeiro proprietário impossibilitou a operação e, ao final, acabou-se adquirindo um outro imóvel, não sem antes ter que incorrer em importantes custos para investigar a propriedade imobiliária.

Nicolás Nogueroles em palestra proferida na Universidade Gabriela Mistral, Santiago do Chile em 17/5/2006 (foto Iacominvs).

As empresas hoteleiras que operam na América Latina se vêem obrigadas, em algumas ocasiões, a pagar várias vezes o valor de uma mesma propriedade para diferentes pessoas que alegam ter títulos contraditórios de propriedade.

Diante deste cenário de insegurança jurídica, jornais, como o Washington Post, recomendam não investir em determinados países da América Latina.

Recentemente, a União Européia suspendeu o financiamento que seria destinado à construção da Corte de Apelação da Albânia pelo fato de que não se poderia determinar, com segurança, quem fosse o titular da propriedade.

Estes exemplos refletem a falta de segurança jurídica dos direitos de propriedade em importantes zonas do planeta. Em face dessas situações, os organismos internacionais – bem como os bancos multilaterais, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento - consideram prioridade fortalecer as instituições que proporcionam segurança jurídica financiando, por essa razão, em todo o mundo, projetos para a implantação de Registros.

Este problema não é novo, e nem pertence a uma determinada área cultural; tampouco é exclusivo de uma determinada família jurídica.

Durante o século XIX, a incerteza em torno da propriedade levou à busca de novas soluções diante da insuficiência dos mecanismos até então existentes. Afinal, ao adquirir-se uma propriedade, não se sabia ao certo se se comprava um imóvel ou uma demanda judicial!

Na época em que a propriedade pertencia a uma minoria, bastavam alguns inventários, cadastros ou censos dos bens.

A propriedade imobilizada, que pertencia há décadas às mesmas pessoas e estava excluída do mercado, não era objeto de contração e obviamente não se necessitava de um Registro.

No entanto, ao ser superada essa situação no século XIX, surge uma série de problemas comuns que hoje chamaríamos de globais. Estamos nos referindo a questões como a necessidade de promover o crédito, favorecer e atrair os investimentos de capital, reduzir as taxas de juros, acabar com os empréstimos usurários, proteger os cidadãos das fraudes derivadas da contratação imobiliária...

Definitivamente, trata-se de criar um marco estável para proteger os direitos de propriedade. Ainda que a resposta pareça local, pelos desenvolvimentos legislativos é, na realidade, internacional. Tanto nos países do civil law, quanto do common law, a resposta foi unânime: estabelecer Registros da propriedade.

Perguntas como: quem é o proprietário? Que ônus recaem sobre o imóvel? Qual a hierarquia dos direitos? Com quem se pode contratar sem correr o risco de perder o bem adquirido? Essas são questões cujas respostas o cidadão de ontem e de hoje encontram no Registro Imobiliário.

Mas essas respostas, contudo, não são oferecidas de forma unívoca, já que existe uma diversidade de sistemas registrais na atualidade. Os níveis de segurança que os sistemas proporcionam não são idênticos; em um mundo globalizado, no qual as transações internacionais se incrementam dia após dia, é difícil pensar que os cidadãos não irão optar por sistemas que ofereçam maior certeza a um preço mais competitivo.

O século XX demonstrou que os sistemas registrais evoluem buscando modelos que ofereçam maior segurança, sem que, em nenhum caso, uma vez alcançado um grau maior, tenha retrocedido ao estágio precedente. A insistência de que o desenvolvimento econômico está relacionado a um adequado marco institucional e, em particular, à proteção dos direitos de propriedade (North, Ackerman) serviu para reformular a instituição do Registro, recuperando as idéias que deram lugar à sua implantação: assegurar a propriedade e facilitar a sua contratação.

Os Registros foram considerados como instituições que favorecem a democracia (Keefer, Alstom). Não há democracia onde os direitos de propriedade não são seguros (Olson). Por isso, nos países que deixaram para trás uma ditadura totalitária, os organismos internacionais financiam programas para implantar ou melhorar os Registros.

Por outro lado, os Registros foram percebidos como instrumentos eficazes de pacificação social. Os conflitos civis que, em datas não muito remotas, abalaram países como El Salvador, ou a antiga Iugoslávia, acarretaram que nesses países, em seus tratados de paz, fossem incluídas cláusulas relativas à reorganização da propriedade e à melhoria dos Registros.

Dificilmente haverá propriedade se ela não puder ser comprovada e validada frente a todos.

Na última década do século passado, insistiu-se na universalização do direito de propriedade como instrumento de luta contra a pobreza. O Registro, como mecanismo seguro de produzir títulos de propriedade, adquire um papel decisivo. Não basta simplesmente ter um documento, é preciso que ele seja um direito garantido e que seja assim reconhecido pela comunidade. Assim, a propriedade, além de ser um ativo físico, se converte em um ativo econômico, com o qual é possível obter crédito e financiamentos.

Os programas de formalização da propriedade e regularização fundiária no Brasil, nos quais colaboram os registradores (Jacomino, Ferraz), e a recente criação de uma Comissão pela ONU, apontam para essa orientação.

No século XXI, fruto da globalização, a terra também é plana para os Registros. Dificilmente poderão subsistir ilhas nas quais o grau de segurança jurídica seja inferior. O processo começou, “o terreno está sendo nivelado” (Friedman) e as barreiras nacionais que tentarem se levantar para proteger os privilegiados ou não adaptados estarão sujeitas ao fracasso.

A peculiaridade dos sistemas registrais avançados consiste em evitar o trabalho repetitivo e improdutivo de investigação de escrituras em cada transação. O fundamento dos direitos deve ser encontrado no Registro, não em pesquisas históricas. As novas tecnologias colaboram neste processo, em particular, os procedimentos de certificação digital.

* Nicolas Nogueroles é registrador da propriedade de Barcelona, Espanha, professor da Universidad Ramón Llull-Ésade e membro do Conselho Editorial do Irib. Tradução: Eloísa Cerdán. Revisão técnica: SJ.



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