A locação, o NCC e o Registro de Imóveis
Kioitsi Chicuta
1. NOVO CÓDIGO CIVIL
A Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, estabelece capítulo específico para a locação de coisas, repetindo praticamente o mesmo texto que constava do Código Civil de 1916 (artigos 1.188 a 1.199), com as seguintes modificações relevantes:
I - Devolução da coisa pelo locatário antes de vencido o prazo contratual. Em lugar de impor ao locatário o pagamento do "aluguer pelo tempo que faltar" (art. 1.193, parág. único, do CC 1916), consignou-se que deve ele pagar "proporcionalmente, a multa prevista no contrato", facultado ao juiz, se excessivo o valor da indenização, "fixá-la em bases razoáveis" (arts. 571 e 572 NCC).
II - Não convindo ao locador a continuidade da locação, o locatário é notificado para a desocupação e responde pelo aluguel que aquele arbitrar (arts. 1.196 CC 1916 e 575 NCC). Mas, "se o aluguel arbitrado for manifestamente excessivo, poderá o juiz reduzi-lo, mas tendo sempre em conta o seu caráter de penalidade" (art. 575, parág. único, NCC).
III - Em caso de alienação, o adquirente só fica obrigado a respeitar o contrato "se nele não for consignada a cláusula de sua vigência no caso de alienação, e não constar de registro" (arts. 1.197 CC 1916 e 576 NCC).O atual Código, porém, especifica que o registro deve ser feito no Registro de Imóveis da respectiva circunscrição, se imóvel, e que, não havendo cláusula de vigência, o prazo para desocupação voluntária é de noventa (90) dias (art. 576, §§ 1.º e 2.º, NCC).
IV - Consigna o direito de retenção por benfeitorias necessárias ou úteis, estas últimas com expresso consentimento do locador, como direito dispositivo (art. 578 NCC).Faz uso da expressão "salvo disposição em contrário".
2 - INCIDÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL ÀS RELAÇÕES LOCATÍCIAS
Assim como já ocorria em relação a algumas espécies de locação, o Código Civil tem incidência apenas aos casos não regulados por lei especial. O Estatuto da Terra tem aplicação sobre as locações de imóveis rurais para fins de arrendamento ou parceria e a Lei n.º 8.245, de 18/10/91 em relação aos imóveis urbanos. O próprio Código, em seu artigo 2.036, estabelece de forma clara que "a locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida", muito embora a Lei de Introdução ao Código Civil, considerada a lei das leis, consigne também em seu artigo 2.º, § 2.º, que "a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior".
Especificamente aos atos que têm repercussão no Registro de Imóveis, não existe alteração, merecendo atenção, contudo, o parágrafo único, do artigo 1.º, da Lei do Inquilinato, dispondo que "continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais: a) as locações: 1. de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas autarquias e fundações; 2. de vagas autônomas de garagem e de espaços para estacionamento de veículos; 3. de espaços destinados à publicidade; 4. em "apart-hotéis", hotéis-residência ou equipados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar; b) o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades".
Essas locações continuam regidas ou pelo Código Civil ou pelas leis especiais e não pela Lei 8.245/91.
O que interessa, no caso, é a locação de vagas autônomas de garagem e os espaços destinados ao estacionamento de veículos e que é regulada pelo Código Civil. Em relação a ela cabe apenas a inserção de cláusula de vigência em caso de alienação, sendo registrado no Cartório de Registro de Imóveis onde situado o bem. Não há o direito de preferência.
3 - LEI 8.245, DE 18/10/91
Na hipótese de cláusula de vigência em caso de alienação, há expressa previsão de prática de ato de registro e assim deve ser considerado, nada obstante o artigo 8.º da Lei n.º 8.245/91 falar em averbação. Persiste a prática do ato de averbação para exercício do direito de preferência (art. 33) e para a caução em bens imóveis (art. 38, § 1.º). A dúvida existente no enquadramento feito no referido artigo 8.º resta espancada pelo artigo 81 que, ao determinar a nova redação ao artigo 169 da Lei de Registros Públicos, faz expressa referência ao artigo 167, inciso I, n.º 3, que diz respeito justamente à prática de ato de registro em sentido estrito.
Não há lógica na prática dos fatos inscritíveis como sendo de registro ou de averbação, mas a regra de opção da lei merece ser observada e não há razão para, numa mesma situação, alternar registro se amparado peloCódigo Civil e averbação se regido por lei especial. Os casos de ausência de critério científico se multiplicam na escrituração dos atos pelo Registro de Imóveis e inexiste razão para estabelecimento, sem embasamento legal, de atos que, na aparência, se chocam. Em qualquer situação, o ato é de registro, sempre com a ressalva de que o registro do contrato de locação propriamente dito, como direito pessoal que é, cabe ao Registro de Títulos e Documentos (art. 129, item 1.º, da Lei 6.015, de 31/12/73).Só tem ingresso no Registro de Imóveis nas situações que indica, não para gerar direito real, mas muito mais para surtir efeitos em relação a terceiros e em atenção ao princípio da publicidade, daí porque, objetivando a parte outorgar efeitos erga omnes da cláusula de vigência em caso de alienação e para exercer, eventualmente, direito de preferência, basta apenas um único registro.A simples notícia no registro público da existência de contrato de locação é suficiente para garantir ao locatário o direito de preferência e para a qual não se exige cláusula específica (ao contrário do que entendem respeitáveis opiniões), nem que o prazo do contrato esteja em vigor.O que se reclama apenas é que o contrato seja materializado em documento escrito, subscrito pelas partes e por duas testemunhas, com firmas reconhecidas (art. 169, inciso III, da Lei 6.015/73).
4.QUALIFICAÇÃO DO CONTRATO DE LOCAÇÃO
A jurisprudência, com base no artigo 585, inciso IV, do Código de Processo Civil, tem entendido que o contrato escrito de locação, ainda que não subscrito por duas testemunhas e sem reconhecimento de firmas, é título executivo extrajudicial. Esse entendimento não se confunde com a exigência de requisitos formais do título para o Registro de Imóveis e por um motivo muito simples: na execução o título é submetido ao crivo do contraditório, ao passo que no processo de registro o Oficial deve efetuar o exame de idoneidade pelo que o instrumento oferece em sua face, o que recomenda maiores exigências. Não há como exigir o comparecimento das partes para que confirmem seus autógrafos e no processo judicial, caso haja assertiva de falsificação, o incidente é imediatamente instaurado.
De outra parte, não basta apenas que o título esteja formalmente perfeito para ganhar acesso ao sistema registrário.É preciso, ainda, observância aos princípios da continuidade e da especialidade, sob pena de comprometimento da segurança jurídica.Não há, evidentemente, a mesma severidade reclamada em títulos translativos ou constitutivos de direitos reais, mas pelo menos um dos locadores deve figurar no assento como titular de direito inscrito e se exige que haja perfeita identificação com o imóvel matriculado ou transcrito.Nada impede, porém, que a locação se refira apenas a uma parte certa no imóvel maior.
Quanto ao conteúdo do contrato propriamente dito, em se cuidando de registro em razão de cláusula de vigência em caso de alienação, deve consignar “o seu valor, a renda, o prazo, o tempo e o lugar do pagamento, bem como a pena convencional” (art. 242 da Lei 6.015/73). Isso não significa que o exame qualificatório deva abordar eventual ofensa às regras vigentes, como, por exemplo, as multas moratória e compensatória.O novo Código não estabelece multa moratória para as locações no patamar máximo 2% ao mês e não raras vezes ela é fixada no contrato em percentual que atinge até 20%, existindo, por vezes, simulações nominadas de abono pontualidade e que, na prática, constituem verdadeiras penalidades e não incentivo ao pagamento pontual.Mesmo assim, dada a finalidade do registro, o exame não deve enveredar por esse tortuoso caminho, mesmo porque, consoante destacado anteriormente, não é o registro feito para publicidade do direito pessoal, mas apenas da existência de contrato típico nominado e, eventualmente, da cláusula de vigência em hipótese de alienação.Isto sem considerar que a matéria ostenta cunho jurisdicional, pois, não raras vezes, admitindo a recente vigência da lei, o contrato restou elaborado antes de janeiro do corrente ano e é juridicamente sustentável a tese de ato jurídico perfeito.Cabe ao Judiciário e não ao Registro de Imóveis a análise dessa questão tormentosa, sob pena de incidir até mesmo em responsabilidade civil, caso haja recusa na prática de registro e, logo em seguida, seja apresentada escritura de venda e compra do imóvel locado a uma terceira pessoa, fazendo com que o locatário nele permaneça até o final do prazo previsto ou mesmo que possa exercer o direito de preferência e subseqüente adjudicação do bem.
5.GARANTIAS DA LOCAÇÃO
Em relação às locações urbanas, a Lei n.º 8.245/91 prevê a instituição de caução em bens (móveis e imóveis), seguro de fiança locatícia ou a fiança. O Código Civil, porém, não estabelece qualquer previsão sobre a caução, mantendo a existência de hipoteca como garantia real em relação à obrigação principal, ofertando, de outra parte, importantes inovações no campo da fiança.
O artigo 39 da Lei do Inquilinato, na esteira do que vinha se entendendo, dispõe que “salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel”. Mas, inovando na matéria, em consonância até com recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o artigo 835 do novo Código Civil estabelece que “o fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor”.
A inteligência dessa norma, com certeza, trará turbulência no setor das locações e os contratos de fiança, acessórios em relação ao principal (locação), têm sido historicamente a opção mais freqüente.Com a nova diretriz imposta, a incerteza reinará e, desde que prorrogado o contrato por tempo indeterminado, será sempre possível ao fiador exonerar-se da obrigação mediante simples notificação extrajudicial, não mais respondendo pelos alugueres e demais verbas depois de decorridos sessenta dias.
A migração se fará em direção a um porto seguro e, por certo, a caução em bem imóvel se constituirá em uma opção saudável, muito embora também não ostente a mesma estatura de uma hipoteca, pois direito real evidentemente não é, mas apenas direito pessoal com efeito real. Os Oficiais devem estar preparados para a nova empreitada.
A matéria ainda deve suscitar inúmeros questionamentos, como, por exemplo, o fato da fiança ter regulamento na Lei 8.245/91 e em face do que dispõe o artigo 2.036 do novo Código Civil.É perfeitamente sustentável dizer que o artigo 39 da lei especial não restou revogado pela lei geral ou mesmo que, em se cuidando de direito material, a regra só vigora para as fianças constituídas após a vigência da lei nova.
6.LOCAÇÕES ESPECIAIS PREVISTAS NO CÓDIGO CIVIL
No capítulo do condomínio edilício, o artigo 1.338 do novo Código Civil estabelece que “resolvendo o condômino alugar área no abrigo de veículos, preferir-se-á, em condições iguais, qualquer dos condôminos a estranhos e, entre todos, os possuidores. Não há certeza se essa norma pode se submeter ao mesmo regramento do artigo 1.339, parágrafo 2.º, quando permite alienação de parte acessória a terceiro “se essa faculdade constar do ato constitutivo do condomínio, e se a ele não se opuser a respectiva assembléia geral”. É preciso que haja essa possibilidade na convenção do condomínio? O ato há que passar necessariamente pela deliberação da assembléia?
A impressão que se tem é que a exigência da aprovação assemblear não é necessária, pois a locação tem sempre caráter temporário e ao locador condômino se mostra sempre possível a retomada. Mas, se possível à convenção vedar alienação de parte acessória a estranhos, o que dizer de permitir ingresso dessas mesmas pessoas para estacionar seus veículos no interior da propriedade? Consignando a convenção a vedação de locação da garagem a estranhos, é possível o registro do contrato pelo Registro de Imóveis? Existe diferença se a garagem constituir unidade autônoma ou mera parte acessória da unidade imobiliária? O que se dizer se constituir apenas garagem localizada em parte comum?
Todas essas questões serão submetidas a exame e o registro observa apenas as regras do Código Civil, ou seja, apenas para exercício do direito de permanecer até o final do contrato escrito. A averbação para o exercício de direito de preferência não pode ser escriturada por falta de expressa previsão legal.
7.REGISTRO DO CONTRATO DE LOCAÇÃO FUTURA
Muito se discutiu sobre o registro do contrato de locação futura e apenas em situações excepcionais se permitia a sua execução, como, por exemplo, na fase preliminar do condomínio edilício, depois de registrada a incorporação, havendo possibilidade de se vincular a futura unidade autônoma para determinado empreendimento. Agora, porém, a norma do parágrafo único, do artigo 463, do Código Civil, não deixa margem a dúvida.É possível registrar o contrato preliminar, desde que não permita o arrependimento.
* Koitsi Chicuta é Juiz do Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo
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