A Microfilmagem, a Informática e os Serviços Notariais e Registrais Brasileiros
Sergio Jacomino
Introdução
O objetivo deste trabalho é renovar os termos da discussão já instaurada no transcurso do XXIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado entre os dias 12 a 16 de agosto de 1996 na cidade de Fortaleza, Ceará, promovido sob os auspícios do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB.
Agora, nesta oportunidade em que se realiza um simpósio nacional, que congrega os notários e registradores de todo o Brasil, é oportuno refletir sobre a modernização dos registros públicos e serviços notariais brasileiros, extraindo das lições recolhidas em vários congressos internacionais os elementos que possam servir de base para o aprofundamento das complexas questões relacionadas com a informatização desse serviço público.
Por outro lado, já é possível deitar uma mirada crítica sobre os acertos e desacertos da mecanização, microfilmagem e informatização dos serviços registrais e notariais após o advento da atual Lei de Registros Públicos, cujos vinte anos de vigência se comemoram nesta oportunidade.
É cediço que a informática, ao par de outras inovações tecnológicas, é uma importante ferramenta a alavancar o processo de desenvolvimento e aperfeiçoamento dos serviços registrais e notariais no Brasil e no mundo. Já não há quem possa negar a importância da modernização das rotinas de trabalho que a introdução da microinformática nos serviços notariais e registrais representou. Assim foi com a mecanização dos registros — a substituição dos pesados livros pelas matrículas — assim foi também com inúmeros benefícios e melhorias representados pela introdução da microfilmagem e de processos reprográficos.
Porém, a cada etapa correspondeu, correlata, uma ampla discussão a respeito do aperfeiçoamento do sistema como um todo — assim considerado nas complexas relações que as instituições notariais e registrais brasileiras mantêm com todo o sistema jurídico.
Portanto, a introdução, em larga escala, de microcomputadores em nossos serviços — com a adoção de linguagens e métodos variegados para tratamento da informação — nos deve levar a uma profunda reflexão sobre o tema mais geral da modernização, organização e aperfeiçoamento sistemático desses serviços e a sua inevitável contraparte: o risco que toda mudança representa e, especialmente, as conseqüências que podem advir da opção deliberada para o tratamento eletrônico das informações que nos são confiadas.
Com o fim de sustentar e alimentar esse debate, vamos procurar identificar as razões que se aninham no sucesso e na estabilidade da tecnologia introduzida nos serviços com a mecanização, com a reprografia e com a microfilmagem, procurando haurir dessas experiências os aspectos positivos para dar suporte e colocar em bom rumo sistemático a informatização dos serviços notariais e registrais brasileiros. O aprofundamento das questões propriamente relacionadas com a substituição total dos meios tradicionais de suporte da informação — como escrituras eletrônicas, assinaturas digitais etc. — fica para uma próxima oportunidade.
A microfilmagem nos serviços notariais e registrais
A microfilmagem, segundo nos afiança Deobry Santos, foi inventada há cento e cinqüenta e sete anos, na Inglaterra. "A primeira aplicação prática desta tecnologia ocorreu na França, há 126 anos. Os bancos, nos Estados Unidos, começaram a usar a microfilmagem há 68 anos".(1) Segundo o especialista, apesar do amplo desenvolvido de microcomputadores, discos ópticos e dispositivos de tratamento de imagem, o microfilme continua sendo, ainda hoje, o medium que é sem contestação considerado como de "segurança" e "permanente".
No Brasil, a microfilmagem surgiu da sentida necessidade de armazenar os grandes volumes de documentos que compunham os arquivos oficiais da administração pública e ainda de estender, aos traslados ou cópias dos filmes extraídos, a mesma força probante que a lei já havia estendido às certidões ou públicas-formas expedidas por meio de reprodução "fotoestática". (2) A inspiração confessada para a proposta que motivou a mensagem n. 27, de 18 de janeiro de 1968, encaminhada pelo então presidente militar Costa e Silva ao Congresso Nacional, foi o Regulamento do Serviço Geral e Arquivo da Aeronáutica, aprovado pelo antigo Decreto 1.976, de 25 de janeiro de 1963, que havia autorizado a adoção do procedimento de microfilmagem para armazenamento e reprodução de documentos para uso de suas repartições (3).
Depois de sua regular tramitação no Congresso Nacional, a proposta transformou-se na Lei 5.433, de 1968.
Posteriormente à edição dessa importante lei e do Decreto 64.398, de 24 de abril de l969 que a regulamentou — expressamente revogado pelo vigente Decreto 1.799, de 30 de janeiro de 1996 — houve a proposta do Ministério da Justiça, consubstanciada na Portaria 985, de 27 de setembro de 1979, de submeter à sociedade a avaliação do anteprojeto de regulamentação da Lei 5.433/68, elaborado a partir da sugestão oferecida pela Associação Brasileira de Microfilme. A referida portaria foi publicada no Diário da União, conclamando os interessados para manifestarem-se, querendo, no prazo de sessenta dias, oferecendo sugestões para aperfeiçoamento daquele anteprojeto de regulamentação da lei.
A iniciativa mostrou-se acertada. Motivou um debate nacional que envolveu os diversos segmentos da sociedade, inclusive notários e registradores que contribuíram, tímida e escassamente, com o debate — não se considerando aqui o fato de que as sugestões por eles apresentadas, ou por quaisquer outros, tenham ou não sido aproveitadas para a edição do Decreto 64.398/69 (4). O que releva para estas considerações é que, antecedentemente à adoção dos processos de microfilmagem aplicados aos serviços notariais e registrais, houve a possibilidade de uma ampla e aberta discussão, instaurada a nível nacional, que poderia ter envolvido todos os cartórios, assim como envolveu os demais segmentos da sociedade.
Importante ainda é salientar que os critérios técnicos, os requisitos formais que deveriam ser preenchidos, os mecanismos de segurança, rotinas de organização dos dados, tamanho de fotogramas, tipo de filmes, equipamentos, indexação de dados, enfim todas as exigências técnicas e legais que deveriam ser observadas para que se pudessem produzir os efeitos legais probatórios de documentos microfilmados, tudo isso foi objeto de amplo debate, de estudos preliminares, encetados com o fim de harmonizar os critérios, padronizar tecnicamente os procedimentos e regulamentar a implantação racional da microfilmagem no Brasil.
Microfilmagem - uma renovação tecnológica nos serviços notariais e registrais
Os motivos que inspiraram a introdução da microfilmagem de documentos da administração pública, como já assinalado, justificariam plenamente que se aplicassem tais tecnologias aos registros públicos e serviços notariais — cujos oficiais são "fideipositários", há largo tempo, de volumes assombrosos de documentos que se produzem em escala cada vez mais crescente. Essas novas tecnologias de armazenamento e recuperação de documentos e dados permitiram que os registradores e notários enfrentassem eficazmente o desafio da "explosão documentária". (5)
Comentando o artigo 41 da Lei 8.935/94, Walter Ceneviva expressou-se no sentido de que "o legislador (...) quis estimular o aperfeiçoamento e a modernidade dos serviços, recordando os efeitos da informática e de outros métodos úteis para a velocidade e para a perfeição dos serviços. Sob esse aspecto, o dispositivo é útil, pois a tradição sugere que houve, em parte dos titulares de serviços e mesmo da doutrina, muita resistência à adoção de métodos novos, sob a desculpa — que se mostrou falsa — de que sacrificariam a segurança". (6) Mais adiante, sentencia: "A modernidade não é um valor em si mesmo, quando se trate de funções tabelioas ou notariais. Vale, se acompanhada de segurança". (7)
Lucidamente — e com bom humor — também Gilberto Valente da Silva é do mesmo sentir: "Não é, entretanto, um atrevido modernismo que deverá nortear titulares. A cautela em verificar a idoneidade do meio de reprodução ou de armazenamento de dados, o tempo de vida útil do sistema e outras medidas devem ser detalhadamente aferidos. Já travamos conhecimento com titulares de registros imobiliários que passaram todas as suas matrículas para a memória de uma CPD, desprezando as antigas fichas, que não mais estão escriturando, a pretexto de fornecer certidões com a maior brevidade, olvidando-se que, mesmo com a máxima cautela e com a elaboração de arquivos de segurança, a máquina sempre pode apresentar defeitos...Cautela e caldo de galinha não fazem e nunca fizeram mal a ninguém." (8)
Não há como discordar do que afirmam. De fato, a modernidade expressa em sofisticados equipamentos eletrônicos, em complexos sistemas de computadores, software importado — esse coquetel tecnológico, como uma espécie de fetiche, encantando e seduzindo os desavisados — não pode ser encarada como um valor em si mesmo. Os serviços notariais e registrais brasileiros não serão melhores ou piores pela simples adoção de custosos e sofisticados sistemas e equipamentos. Serão, isto sim, um bem à sociedade se, além de eficientes e bem administrados, os registros e notarias brasileiros puderem oferecer segurança jurídica e ocupar o espaço que se lhes designa neste fim de século: um serviço essencialmente voltado à cidadania.
Mas, voltando à referida resistência à adoção de novos métodos por parte de registradores e notários e mesmo por parte da doutrina — muito embora o mestre Ceneviva não decline as fontes de suas afirmação — é preciso dizer que nas sucessivas etapas por que passou o registro público brasileiro, os desafios foram sendo admiravelmente superados, com segurança e eficiência — ao menos no que toca à microfilmagem e à mecanização dos registros públicos.
A doutrina, de fato, esteve cautelosa na reflexão que produziu a propósito da modernização dos registros públicos. Por todos, Afranio de Carvalho, que, após fulminar com ácida crítica a adoção de folhas soltas para a matrícula, assim se manifestou a respeito da tecnologia aplicada ao registro: "De certo, essas razões pesaram no espírito do jurista que, com a autoridade acrescida de antigo registrador, realizou um estudo completo das leis do registro imobiliário da América do Sul, quando, nas suas conclusões sobre as diretrizes eventuais da sua reforma, recomendou precaução no acolhimento de processos de automação, restringindo-os aos "aspectos auxiliares da função registral". Aconselhando a escritura mecanografada, os fichários, assim como a microfilmagem de arquivos para mantê-los duplicados, foi peremptório em advertir que "los libros territoriales no debem ser sustituidos por tarjeteras ni tampouco desglosados". (9) Mais adiante, referindo-se especificamente à microfilmagem, acrescenta: "Sem dúvida, a duplicata dos assentos pode ser obtida por microfilmagem nas grandes cidades, em cartórios de intenso movimento, mas dificilmente poderá sê-lo em cartórios do interior, inclusive por causa do alto custo da aparelhagem. Basta essa consideração para aconselhar que os cartórios, independentemente de recomendação legal, continuem a organizar o livro de extratos, mas outras razões igualmente convincentes militam no mesmo sentido, ao mesmo tempo que sugerem uma mudança na maneira de organizá-lo para aumentar a sua utilidade" (10)
A noção de que o microfilme possa ser utilizado como suporte, função auxiliar e subsidiária da registração, duplicação de segurança como sugere Afranio de Carvalho, nos é oferecida também por García García ao enfrentar a questão que parece ser de importância transcendente aos registradores e notários brasileiros — que hoje, mal inspirados por tecnocratas da informática, se debruçam, reverentes, ao que parece ser a Meca tecnológica tupiniquim: a digitalização de matrículas. Questiona o registrador de Barcelona: seria possível, seria realmente conveniente, que se armazenassem todas as fontes de dados — matrículas, títulos, documentos suplementares e acessórios, "papéis" etc. — em microcomputadores, hoje revitalizados e revalorizados pelo desenvolvimento de dispositivos como scanners e programas de reconhecimento óptico de caracteres? A resposta evidentemente é pela negativa. Sugere, de forma muito singela e acertada, que, para se resguardar de eventuais sinistros, os registros públicos devem ter todo o arquivo armazenado em... microfilmes! Das observações sempre precisas do registrador de Barcelona, a única que hoje merece reparos é a que sugere que a memória dos computadores não comportaria a massa de dados que o armazenamento full text acarretaria. Hoje sabemos que os discos ópticos e mesmo os dispositivos magnéticos, ou óptico-magnéticos, de armazenamento de dados, comportam perfeitamente os dados de um grande registro ou notaria. (11)
A microfilmagem aplicada aos registros imobiliários foi objeto de deliberação dos registradores reunidos no I Congresso Internacional de Direito Registral, realizado na cidade de Buenos Aires, de 26 de novembro a 2 de dezembro de 1972. Sob a rubrica "técnicas de registração", a cargo da III Comissão, debateu-se intensamente o que então se chamava "mecanização dos registros". A função eminentemente instrumental e auxiliar da nova tecnologia foi posta em realce naquela oportunidade, figurando nas conclusões daquele pioneiro e importante certame, o aconselhamento do uso da microfilmagem e, em geral, de qualquer procedimento de segurança que facilite a reconstrução total ou parcial do registro e a conservação dos documentos e livros antigos que devam ser arquivados. (12) Verifica-se que a microfilmagem, assim como a mecanografia, a reprografia e a informática foram sendo considerados elementos auxiliares e de suporte das atividades registrais e notariais: "em razão do caráter jurídico da registração, sua fé pública emana unicamente do processo documental, cuja elaboração é exclusiva de quem expede o documento inscritível, e, por outro lado, de quem, no exercício da função registral, redige e pratica o assento. Do exposto resulta que não é suficiente, do ponto-de-vista de seu valor jurídico, o mero armazenamento de informação em um suporte material, como é o cibernético, mas indispensável, como contrapartida, a constância documental formal, redigida e firmada pelo registrador" (13)
O fato é que o tema da microfilmagem sempre esteve associado ao armazenamento dos títulos e documentos que dão arrimo à inscrição — no caso dos registros imobiliários — e à guarda e conservação dos documentos notariais. Nesse sentido, os serviços notariais e registrais brasileiros — e a própria legislação específica — não destoaram da orientação mais geral dos serviços análogos e mesmo da produção legislativa alienígenos. (14) Comentando o emprego do microfilme nos registros de segurança jurídica, como meio de apoio à consulta, conservação e extração de cópias do registro, manifestou-se o Professor de Direito dos Registros da Universidade do Chile, Fueyo Laneri que este meio serve maravilhosamente aos registros imobiliários, que podem enfrentar o problema caótico da acumulação crescente de livros e documentos. (15)
O registrador brasileiro Elvino Silva Filho teve a oportunidade de deixar consignado, em artigo publicado na Revista de Direito Registral, do Cinder, a importância da mecanização dos registros, da reprografia, microfilmagem e, de forma surpreendente — considerando-se a cautela dos seus pares nos Congressos Internacionais ao tratar do tema — nas considerações francamente laudatórias a propósito da informatização dos registros públicos brasileiros. A sua percepção estava absolutamente correta. Como que se justificando, lançou a invectiva: "Dir-se-á que tais previsões são um tanto quanto visionárias de nossa parte, para a implantação no Brasil. Não comungamos, todavia, dessa opinião. Se o homem dispõe da máquina para a sua utilização, porque não utilizá-la para u’a maior eficiência nos seus serviços?". (16)
O arquivo em sistemas de microfilmagem é hoje amplamente utilizado por inúmeros serviços notariais e registrais. O debate sobre a introdução desses sistemas irradiou-se em nossa categoria através da regulamentação, pelas Corregedorias Gerais e Permanentes (17), de sua instalação e utilização nos registros públicos e serviços notariais, já que não houve — como augurava Afranio de Carvalho — uma regulamentação própria, quedando a Lei 6.015/73 com sua característica de "cúmulo normativo", reunindo num só corpo Lei e Regulamento. (18) Mas, de fato, não foi pacífica e totalmente imune de problemas a sua adoção. Alguns registros imobiliários pretenderam a sua plena utilização mas, por vários motivos, foram sendo impedidos pelos seus corregedores permanentes (19). Contudo, sensível às necessidades imperiosas de racionalização e modernização de processos e métodos de arquivamento de documentos, a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo acabou por estimular a sua utilização (20), sendo iterativas as recomendações e os dispositivos normativos que disciplinam o uso do microfilme, logo abaixo referidos na nota .
Uma questão importante, que mereceu o debate sobre o tema da segurança nos registros públicos, consistiu em definir se a microfilmagem dos documentos autorizaria, posteriormente, a sua destruição e eliminação — ou sua restituição às partes — considerando-se, sobretudo, a questão de racionalização na ocupação dos espaços destinados ao arquivo dos cartórios.
Walter Ceneviva, comentando o âmbito de incidência da Lei 5.433/68, registrou que "o artigo 1o , § 1o, da Lei n. 5.433, de 8 de maio de 1968, dispõe que os microfilmes, bem como certidões, traslados e cópias fotográficas obtidas diretamente dos filmes produzirão os mesmos efeitos legais, em juízo ou fora dele. A Lei n. 5.433 autoriza a incineração de documentos microfilmados, o que não se aplica aos registros públicos, por ser contrário à sistemática da Lei n. 6.015 (arts. 22 a 27), que lhe é posterior." (21). Aparentemente, o eminente autor não referenda o entendimento de que os documentos arquivados em microfilme nos registros e notarias possam ser incinerados, destruídos ou mesmo devolvidos às partes — no que pese a sua manifestação em comentário ao artigo 26 da LRP. (22)
Contudo, além da decisão proferida no Processo CG 65.239/83, referido na nota , supra, a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo já teve oportunidade de manifestar-se sobre a possibilidade de microfilmagem de documentos arquivados, inclusive aqueles que o foram anteriormente à vigência da Lei 6.015/73. (23)
Hoje parece tranqüilo o entendimento de que é possível a microfilmagem de documentos sem que devam ser mantidas cópias ou vias no serviço. (24) Não fosse por todos esses precedentes colacionados, há a promulgação da Lei Estadual Paulista n. 9.366, de 27 de agosto de 1996 (ainda pendente de regulamentação do executivo estadual) que prevê a obrigatoriedade a microfilmagem de documentos arquivados nos cartórios extrajudiciais do Estado de São Paulo (art. 1o), fixando o prazo máximo de dois anos, "dentro do qual deverá ser ultimada a microfilmagem prevista neste artigo". Vejamos se o executivo estadual terá a sensibilidade para perceber o desatino dessa lei e lhe possa corrigir, além das deficiências técnicas, o rumo anacrônico da exigência.
Cuidados com a microfilmagem
Apesar de extensamente utilizada nas rotinas dos serviços notariais e registrais e apesar de ter sido fartamente comprovada a segurança que proporciona, a microfilmagem requer alguns cuidados que a própria lei e o decreto que a regulamentou prevêem, além de outras medidas que são indispensáveis para a organização desses dados, seu armazenamento, rápida e segura recuperação.
Os dispositivos legais que tratam dos requisitos de segurança e armazenamento dos microfilmes são sobejamente conhecidos, de forma que a sua citação aqui seria ociosa. Mas seria interessante registrar que o Decreto 1.799, de 30/1/96, que regulamenta a Lei 5.433/68, define em seu artigo 3o que se entende por microfilme "o resultado do processo de reprodução em filme, de documentos, dados e imagens, por meios fotográficos ou eletrônicos, em diferentes graus de redução". Percebe-se já, e claramente, uma opção deliberada de conjugar a tecnologia da microfilmagem com a informática, pois o decreto refere-se a "dados" e à sua reprodução em filme por meios eletrônicos. Portanto, o filme poderá ser produzido não só por meios tradicionais e por todos conhecidos. Ademais, curioso notar que o próprio conceito de documento passa a ser dilargado, admitindo-se a reprodução em microfilme de dados e imagens.
Por outro lado, também seria importante consignar, para informação dos participantes deste Simpósio, como a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo atualmente avalia a microfilmagem nos serviços registrais e notariais.
A necessidade de elaboração de índices é óbvia e não requer grande esforço para demonstração. Somente dessa maneira, organizando eficientemente os índices dos filmes, se encontrarão, rápida e seguramente, as informações armazenadas. (25) Alguns serviços notariais e de registro não se apercebem da importância da manutenção de índices organizados e atualizados dos microfilmes. Alguns, até, permitem que tão importante atividade seja desempenhada inteiramente por empresas prestadoras de serviço — e vale aqui a recomendação geral de que, embora possam contar com o apoio de serviços técnicos especializados de informática e microfilmagem, a orientação geral, a supervisão e a decisão final de modernização dos serviços notariais e registrais devem sempre ficar a cargo exclusivamente da avaliação pessoal do profissional do direito delegado. (26)
Algumas recomendações seriam pertinentes aos registradores e notários que se utilizam dos serviços de microfilmagem de seus documentos:
A microfilmagem será feita sempre em filme original. A definição será de, no mínimo, cento e oitenta linhas por milímetro de definição. (27)
Para efeito de segurança é necessária a extração de cópia de segurança do filme. A sua guarda deverá ser feita em local diferente do filme original. (28)
É vedada a utilização de filmes atualizáveis. Não é permitido o corte ou inserção no filme original. (29)
Quando se tratar de documento cujas dimensões ultrapassem o campo fotográfico, deve ser microfilmado por etapas, desde que garantida a repetição de parte da imagem anteriormente registrada. (30)
Deve ser organizado o acervo a ser microfilmado e dele formado um índice que deve figurar na imagem de abertura da série. O índice figurará na jaqueta do filme.
A Lei 6.015/73, a microfilmagem e os "outros meios de reprodução"
Como se sabe, foi posterior à lei de microfilme no Brasil que houve a edição da nossa conhecida Lei 6.015/73, que disciplinou de forma pouco sistemática a utilização da microfilmagem no arquivamento de documentos e papéis, permitindo, ainda, o registro de títulos e documentos por meio de microfilmagem, desde que os microfilmes fossem havidos como partes integrantes dos livros dos registros. (31) Aliás, coerentemente, a lei permitiu tão-somente o registro, por meio de microfilmagem, de títulos e documentos, reservando para os demais ofícios — especialmente o registro imobiliário — tão-só a possibilidade de arquivamento dos documentos e "papéis" que lhe dão suporte. (32)
Comentando o artigo 25 da Lei dos Registros Públicos, Walter Ceneviva, sob a rubrica "modernização dos serviços cartorários", deixou assinalado, criticamente, a má redação do texto legal: "O artigo 25 demonstra descuido redacional: não se trata de papéis referentes ao serviço. O intérprete deve subentender fichas, livros e todos os documentos de interesse para o registro público ao qual a serventia se dedique"(33). A crítica não me parece inteiramente procedente: é que a lei 6.015/73, de modo consentâneo com a Lei 5.433/68 (que assegura que os documentos públicos e particulares arquivados podem ser microfilmados, tendo sua reprodução ou cópia o mesmo valor probante que o original) (34) permitiu o arquivamento de "papéis" mediante processos micrográficos. A crítica se sustenta tão-somente na desvalorização da expressão evidentemente equívoca — "papéis" — quando o mais adequado seria, eventualmente, "títulos" ou "documentos" (35).
Mas o intérprete não deverá entender, sob o campo semântico dessa expressão, as fichas de matrículas e os próprios livros do registro. A faculdade concedida pela lei refere-se aos documentos ou títulos que, de forma direta ou complementar, dêem suporte ao registro, e não aos livros e fichas que recebem os seus dados pela inscrição ou registro, o que não seria lógico — a não ser que se fizesse da microfilmagem desses livros um elemento a mais de segurança.
Outro aspecto importante a ser destacado aqui é a parte final do art. 25 da Lei 6.015/73, que prevê a utilização de "microfilmagem e de outros meios de reprodução autorizados em lei". Ora, debatemos intensamente o tema da introdução de novas tecnologias nos registros públicos após o advento da Lei 8.935/94 — especialmente a adoção de sistemas de computação, disco óptico e outros meios de reprodução — esquecendo-nos de que a nossa velha Lei dos Registros Públicos, no já citado art. 25, fazia referência autorizadora da utilização de "outros meios" de reprodução. (36) Muito embora a lei peque pela falta de clareza e precisão técnica ao dispor que fica facultada a utilização de microfilmagem e de outros meios de reprodução autorizados em lei — dando a entender, numa rápida leitura, que a microfilmagem seria única e tão-somente uma técnica ou um meio de reprodução (e logo nos recordamos de dispositivos como os heliográficos, fotoestáticos, xerox etc.) não se pode perder de perspectiva que o citado dispositivo legal refere-se ao armazenamento e arquivamento dos "papéis" por meio de processos "racionais" — seja lá o que esta expressão queira significar. Esse é o vetor interpretativo: reprodução, em microfilme, ou qualquer outro dispositivo, de documentos e dados. Quando a lei refere-se a "meios", deve-se entender o suporte material — microfilme ou outros quaisquer, ad exemplum e nomeadamente os discos ópticos. É nesse medium escolhido que se dá a reprodução do documento. (37)
Mas, o problema central, que permanece ainda sem solução, é o da inexistência de expressa previsão legal autorizadora do arquivamento de documentos em meios eletrônicos. A Lei é clara, "outros meios de reprodução autorizados em lei". Não se trata, sic et simpliciter, de questionar a validade do que, de forma genérica, está previsto no artigo 41 da Lei 8.935/94. (38) De fato, é possível a utilização de qualquer recurso tecnológico na organização interna dos serviços notariais e registrais — aliás, tal atine com a própria administração e organização dos serviços a cargo dos notários e registradores, expressamente previstas na própria lei. Mas coisa bem distinta é o armazenamento dos documentos e títulos que deram suporte e conformaram os atos praticados por notários e registradores em meios eletrônicos, já que não há expressa previsão legal para tal, nem para dar autenticidade e valor probatório às cópias, traslados, certidões dali extraídos. Em suma, não há previsão legal para que se produzam efeitos jurídicos e legais às reproduções, equiparáveis aos originais, dos documentos armazenados em meios eletrônicos, nem mesmo para que se registrem documentos diretamente em meios eletrônicos.
A informática nos serviços registrais.
A falsa idéia, difundida até em propaganda — enganosa, a meu aviso — de que os sistemas de digitalização de papéis e documentos, hoje encontrados e mercadejados a preços vis, pudessem substituir comodamente os indicadores pessoal e real dos registros, ou os indicadores de títulos e documentos, pessoas jurídicas, registro civil e mesmo dos tabelionatos — cujos índices poderiam ser criados "automaticamente" pelo programa, dispensando-se, assim, os trabalhos de manutenção — é perniciosa para os registros públicos e tabelionatos brasileiros.
A oportunidade é propícia para aclarar os pontos que ainda ficaram obscuros no trabalho já referido sobre informatização dos registros imobiliários brasileiros. (39) Antes, porém, vamos traçar um roteiro dos temas mais importantes e das discussões havidas entre os registradores reunidos em congressos internacionais.
A Informática como suporte auxiliar do registro imobiliário
Já no longínquo 1972, realizou-se em Buenos Aires, Argentina, o I Congresso Internacional de Direito Registral, no qual muito se debateu sobre o que então se denominou "mecanização dos registros". Como registra José Manuel García García, as conclusões a que chegaram os congressistas, se hoje nos parecem tímidas, firmaram as primeiras bases para a modernização dos registros e ulterior tendência à sua informatização. (40)
De outra parte, firmou-se o entendimento — que se manterá ao longo dos anos seguintes, nos sucessivos debates — de que os recursos aportados pela tecnologia não poderão substituir a qualificação registral, no seu elemento personalíssimo e essencial. A técnica aparecerá como um elemento importante e indispensável, mas sempre como meio coadjuvante, instrumental, auxiliar. (41)
A mesma orientação se confirmará no congresso seguinte, realizado em Madri no ano de 1974, onde os registradores espanhóis, zelosos de sua importante atividade, registraram nos anais desse congresso, e nos trabalhos por eles apresentados, que os computadores não poderiam ser vistos e compreendidos como um verdadeiro sistema de inscrição, suplantando o próprio registrador em seu labor específico e singular que se concretiza em funções tão propriamente humanas e especificamente jurídicas. (42)
Na época desses debates, Elvino da Silva Filho expressou-se no mesmo sentido: a mecanização do registro seria mesmo indispensável, como demonstrou proficientemente, sendo desejável a coadjuvação de computadores, sem que, todavia, pudesse ser eliminada a contribuição do homem no exame de validade e legalidade dos títulos que devem suportar a inscrição. (43)
Assim, visto da perspectiva da atividade desenvolvida pelo registrador — i.e, da atividade institucional que faz do registro público imobiliário sofisticado mecanismo publicitário que concretiza, no âmbito do Direito, a mutação jurídica na constituição, transmissão, modificação ou extinção do domínio e dos direitos reais de bens imóveis — crê-se que essa atividade não há-de ser suplantada por um sistema cibernético que possa substituir o profissional do direito encarregado de tão importante atividade. Afinal, o entendimento de que o uso de computadores e demais dispositivos eletrônicos na atividade do registrador deva ser necessariamente subalternado a essa atividade que singulariza o próprio sistema de direito registral — a qualificação registrária — não é difícil de ser compreendido: trata-se, no limite, de uma atividade que se exerce com caráter personalíssimo, à parte da sua obrigatoriedade, do juízo concludente e principalmente de sua independência. (44)
"A informática como Condicionante do Direito"
Em 1984, teve ocasião em Madri, na Espanha, o VI Congresso Internacional de Direito Registral realizado entre os dias 22 e 26 de outubro de 1984, onde o tema da informatização foi novamente retomado e discutido sob a rubrica: O Direito como Condicionante da Técnica de Processamento de Dados — uma formulação temática que já denuncia um preconceito na proposição que visa subalternizar a ciência da computação às condicionantes do direito.
Tem-se por indiscutível, por ora, a afirmação de que o elemento humano na qualificação registral não pode ser simplesmente substituído pela máquina — muito embora, assim expresso o pensamento, reduz-se a complexidade do problema da substituição de importantes tarefas humanas pelos sistemas cibernéticos (45) — problemas que envolvem profundas discussões científicas e filosóficas que não cabem aqui explicitar. (46) Mas, ao estabelecer como pressuposto da discussão que o direito deve necessariamente condicionar a técnica de processamento de dados, parece ser um apriorismo discutível, e em todo o caso não científico, já que exemplos hauridos do testemunho dos próprios registradores, reunidos nesses importantes congressos internacionais, nos dão conta das profundas transformações que o sistema registral sofreu com o impacto de novas tecnologias, reconformando-se, assim, o direito que regulamenta as atividades registrais. Assim, longe de ser condicionante das técnicas de processamento de dados, o direito posto, ele próprio, é plasmado a partir de imperativos de ordem social e tecnológica cuja dimensão não tem sido devidamente avaliada.
Assim foi, por exemplo — como nos relata José-Luis Benavides Del Rey — com a mecanização dos registros espanhóis: as mudanças tecnológicas verificadas nos procedimentos de registração haveriam-de conformar os meios de suporte da informação registral. Notou-se que a adoção da máquina de escrever no registro, como instrumento base do processo de sua modernização, implicava uma mudança notável no próprio conceito de arquivo. (47) Não por acaso, reagiu Chico y Ortiz à aceitação incondicionada da máquina nos processos de registração: "pois bem, aceitar substancialmente a máquina não somente como meio de verificar inscrições, mas de realizar todos os aspectos jurídicos que traz consigo o procedimento de inscrição, suporia a transformação de nosso sistema registral, modelar no mundo do Direito, em um de simples ‘transcrição’ da documentação notarial. Isso implicaria, igualmente, a supressão do princípio de legalidade." (48) Portanto, a completa submissão do sistema registral à informatização suporia a conversão em um sistema de transcrição, para que a máquina pudesse ter seu âmbito operativo. Assim, padeceria de graves limitações na produção de seus efeitos — exatitude, legitimação e fé pública registral. É do próprio Chico y Ortiz a constatação de que não foi em decorrência da adoção do sistema de transcrição, ou de inscrição, que se impôs aos registros prediais a escrituração à mão: foi antes a falta de máquinas e de recursos técnicos que limitou o registro na utilização daquele meio — o que é referendar, obliquamente, o mesmo entendimento, embora, obviamente, a manuscrição não se tenha dado pela ausência da máquina, mas precisamente pela disponibilidade concreta da pena e do papel como instrumentos e meios para a realização do registro — assim como a mecanização do registro não se deu pela inexistência de computadores. O fato é que estamos diante da mesma constatação de que o desenvolvimento tecnológico vai, pouco a pouco, reconformando o próprio sistema, pela modificação substancial dos meios físicos em que são armazenados os dados e informações. É útil consignar que o próprio Chico y Ortiz, naquele importante conclave, enumerou as sucessivas leis e regulamentos que pouco a pouco foram alterando fundamente o sistema "modelar" de registro imobiliário espanhol. O retraço dessa sucessão de dispositivos normativos e regulamentares permitem-nos reconstituir o percurso da modernização do registro espanhol: mecanização, reprografia, microfilmagem, processamento de dados, computação gráfica etc.
A Digitalização da matrícula
Peço vênia para citar longamente um trabalho que foi anteriormente apresentado por ocasião do XXIII Encontro dos Oficiais do Registro de Imóveis do Brasil, realizado em Fortaleza, Ceará. (49)
A substituição de um meio por outro, sem qualquer estudo científico prévio, é erro que se deve obviar. Por outro lado, a transformação das rotinas dos registros imobiliários deve se pautar segundo um critério e modelo que não podem prescindir de anterior reflexão sobre o processo de aperfeiçoamento dos registros públicos no Brasil — uma recuperação histórica das transformações tecnológicas que se foram introduzindo no curso do longo trajeto do registro imobiliário brasileiro. A informatização sem sólidas bases conceituais — teoria de informação, técnica de análise e processamento de dados, legislação, história, além de conhecimento das experiências desenvolvidas em outros países — não se mostra aconselhável. Nem mesmo viável, cientificamente falando.
O advento da Lei 8.935, de 21.11.94, disciplinando os serviços notariais e de registro, deu um novo alento às expectativas de ver aperfeiçoado o sistema, de atingir um nível de segurança, confiabilidade e rapidez nos importantes serviços que prestamos à comunidade.
O impacto do uso de microcomputadores nos serviços registrais e notariais tem sido profundo, acarretando contínuas transformações nas rotinas de serviço, aperfeiçoando, ampliando e diversificando os campos de sua incidência, tornando cada vez mais precisa a base do sistema registral: a informação. Estamos presenciando a mais importante transformação tecnológica jamais experimentada pelos serviços de registros públicos no país. O sistema registral brasileiro, inaugurado no século XIX, alcançou, surpreendentemente incólume, a década de 70 deste século, com sua sistemática inteiramente artesanal, com seus oito pesados livros principais de registro e indexação de seus apontamentos com ênfase no indicador pessoal (50).
O advento da atual Lei de Registros Públicos significou uma ruptura profunda no sistema registral brasileiro. A mudança de um sistema de base documental (transcrição de títulos) para um sistema de base cadastral (matrícula de imóveis), visto de um peculiar ângulo, poderá ser compreendida como uma espécie de coadjuvação numa transformação mais ampla nos meios de tratamento da informação em setores da sociedade; isto é, com a nova lei foi possível a introdução da mecanização dos assentos, sistemas reprográficos, micrográficos e por fim a informatização de setores importantes do Registro (indicadores pessoal e real), tudo isso pari passu com as transformações tecnológicas tornadas possíveis com o advento principalmente do microcomputador, além de sistemas de mecanização, reprodução e microfilmagem. A Lei 6.015/73 cumpriu, portanto, esta importante função: preparar o caminho legal para a modernização do Registro Público Brasileiro, dando a partida para as transformações que ora estamos experimentando.
O tempo gasto para a concretização do ciclo de mudanças no Registro tenderá a diminuir dramaticamente. Em outras palavras: se o sistema registral brasileiro demorou mais de um século para sua revolução completa (substituição do medium livro-manuscrito para matrícula-mecanização), e o deslocamento da ênfase centrada no índice pessoal para o real, a expectativa de uma nova transformação do gênero — matrícula-mecanização para banco de dados-memória eletrônica — acabará por nos colher de surpresa. A razão é a rapidez vertiginosa das transformações tecnológicas, miniaturização de equipamentos e suas conseqüências sociais, culturais e econômicas, cuja importância, singularidade e significados não cabem neste contexto discutir.
Interessante notar como se deu a informatização dos cartórios. Via de regra, automatizaram-se, a princípio, as rotinas de cálculo de emolumentos, emissão de protocolos auxiliares e resumos financeiros dos registros; posteriormente, foram adotados processadores de textos em setores como o de certidão. Após, com a ampliação dos recursos técnicos (modem de comunicação micro-mainframe) houve a possibilidade de armazenar em computadores de grande porte as fontes de dados dos indicadores pessoal e real produzidas remotamente. Assim, periodicamente, havia atualização dos dados e emissão de microfichas com os indicadores. Mais recentemente, com a ampliação da capacidade de armazenamento de dados em microcomputadores, os bancos de dados dos indicadores pessoal e real migraram para o interior das serventias. Passaram a ser acessados em tempo real. Não são atualizados alhures. Alcançado este patamar, a próxima etapa é a entidade que hoje singulariza o registro imobiliário: a matrícula. Assim, os analistas, programadores e registradores se preparam para "digitalizar" esta terra incognita... Brave New World!
Interessante tentar estabelecer uma relação entre a formação do registro imobiliário no Brasil, suas etapas e aperfeiçoamento, com a história recente da informatização das serventias. Esta história como que refere, de certa maneira, aquelas etapas: primeiro foram os títulos e o indicador pessoal a se tornarem objeto de programas e sistemas de informática e micrográficos; depois o indicador real e finalmente a matrícula do imóvel. A mudança do enfoque marcadamente documental de antes do advento da Lei 6.015/73 até a adoção do cadastro real, como que deixou rastros perceptíveis na informatização dos registros imobiliários. Refletindo sobre os caminhos percorridos dessa rápida informatização, pode-se perceber a força da tradição que se revela de várias maneiras — inclusive na conformação da chamada "matrícula digital".
De fato, o futuro da informática, com a expansão das plataformas gráficas, permitirá em breve a utilização plena de scanners e outros dispositivos gráficos. Haverá meios físicos para armazenamento dessas informações (discos ópticos etc.)
Contudo, estejamos atentos para que o resultado não venha a ser, meramente, a reprodução de um meio por um outro — e a história das transformações tecnológicas é rica de curiosos e pitorescos exemplos de como um modelo antecessor tende a conformar o sucessor. Quanto tempo levou até que o rádio fosse compreendido como algo maior do que o "telégrafo sem fios"? (como originalmente foi batizado). Quanto tempo levou o cinema para descobrir que suas amplas possibilidades somente poderiam ser descortinadas e plenamente utilizadas se se desprendesse de seu modelo anterior, o teatro? E a TV, com seus amplos recursos em face do cinema? Obviamente que a tradição e a permanência são aspectos relevantes e indiscutíveis, cujo valor e importância não se questiona. Mas, a "matrícula digital" como querem alguns, ou o "fólio eletrônico", como o denominam outros, deverá ser uma entidade substancialmente nova, incorporando níveis de consulta diferenciados, interfaces com bancos de dados do próprio cartório (indicadores) e prefeituras, croquis, plantas, fotos etc. além de permitir acessos singularizados, com instalação de terminais no balcão do Registro, acesso aos bancos de dados da Serventia via modem, fax etc. Tudo controlado por sistemas.
A digitalização da matrícula tem sido defendida entusiasticamente por muitos especialistas em informática e mesmo por alguns registradores. O nó górdio da questão reside numa constatação desconcertante: via de regra, nem os registradores entendem suficientemente de processamento eletrônico de dados, teoria da informação etc., nem os analistas e programadores de computadores entendem de registros públicos... A influência recíproca que se exercem, uns sobre os outros, tem levado a equívocos e paradoxos. A matrícula digital há-de ser pensada a partir de outras bases. A afetação por um modelo já definido e singularizado é erro de concepção — razão pela qual, se sugere a constituição de uma comissão de estudos, integrada por registradores e técnicos, para dirimir as dúvidas que têm um em relação às atividades do outro, mas sempre, e incontornavelmente, sob a estrita direção dos primeiros.
Já nos referimos à opinião de García García sobre o inconveniente de integrar o arquivo em totalidade do registro imobiliário em meio eletrônico — ao modo de full text (51), como ele se referiu. A sua objeção é ainda válida: o armazenamento dessa massa de informação é inconveniente por conter frases inúteis e palavras vazias, como consignou em seu trabalho. Pois bem. Se propõe agora aos registradores brasileiros a digitalização das matrículas para que, uma vez digitalizadas, possam ser pesquisadas através de um mecanismo que "localiza" a informação desejada, funcionando como recurso de precisão na recuperação de informações relevantes para o registro. Falam desses recursos como se estes representassem uma espécie de panacéia na hiperespecialização dos indicadores pessoal e real, podendo recuperar, adicionalmente, outras informações, como desejasse o consulente.
Ora, o armazenamento das matrículas em discos ópticos é, vamos dizer assim, um bis in idem, uma duplicação conceitual e sistematicamente equivocada, representa a constituição, bastante onerosa aliás, de um meta-fólio real — de notória ilegalidade, se utilizado como forma de substituição da ficha. É, em suma, uma estrutura de armazenamento desnecessariamente complexa, levando-nos a pensar que também aqui a história se repete como farsa... A única utilidade que vislumbramos para esse arquivo é, como já se referiu García García, uma cópia para meros efeitos de conservação em caso de sinistro, com a diferença de que o registrador de Barcelona indicava a regulação de uma cópia em microfilme, coisa que já fazemos corriqueiramente em nossos registros prediais. (52)
Ao lançar a questão do que é realmente relevante numa matrícula, pensávamos nos "ruídos" — expressões que de forma indispensável articulam um "discurso" coerente no contexto da matrícula tradicional, mas que perdem essa característica e utilidade em outro meio. Em outras palavras: transposta a informação para um novo contexto, a sua leitura passa a ser não linear. Não se requer uma forma descritiva para informar o registro imobiliário organizado em fólio real eletrônico. Assim, as expressões que compõem o receituário descritivo dos títulos albergados no registro, deverão ser abandonadas por completa obsolescência no contexto do fólio eletrônico. A matrícula, tal qual a vemos hoje, traz uma marca indelével do sistema de "transcrição" dos títulos do qual se originou e a duras penas se afasta. Afranio de Carvalho reputa a opção da Lei pela "forma narrativa" à dificuldade de elaborar um modelo adequado à escrituração colunar "por extrato" das declarações essenciais do título. (53) O fato é que a "forma narrativa" não se coaduna com o sentido da evolução do sistema registral brasileiro, fato apontado pelo pranteado mestre, muito menos ainda se conforma com os modernos sistemas de registro imobiliário baseados no "fólio real eletrônico", na forma em que tão imprudentemente se propõe, isto é, com a digitalização das matrículas.
Portanto, a "matrícula digital", se concebida como simples conversão especular da matrícula original, é mais um truque para encanto dos desavisados do que um verdadeiro avanço no sentido da informatização de área tão crítica em um registro imobiliário.
Resta analisar o mecanismo de pesquisa que os modernos programas indicados para digitalização das matrículas contêm — e vamos fugir aqui, propositadamente, de enfadonhas discussões técnicas. Via de regra, a imagem das matrículas é capturada por dispositivos chamados scanners, que a converte digitalmente sendo gravada e armazenada em meios ópticos, ou ópticos magnéticos, ou só magnéticos. Como não se trata de um arquivo de texto, mas de um arquivo "gráfico" (54) — com grande volume de dados — a pesquisa nesses arquivos, para localização de determinada palavra, ou conjunto delas, torna-se especialmente problemático. Para resolver esse problema, esses softwares se utilizam de um programa conhecido como O.C.R., que em bom vernáculo quer dizer simplesmente reconhecimento óptico de caracteres. Pois bem, feita a varredura desses arquivos, o programa gera um outro arquivo — agora de texto — para nela rastrear o monema, ou sintagma, desejados. Então, resumindo, o processo é o seguinte: (a) digitalização da matrícula; (b) conversão do texto em imagem; (c) armazenamento da imagem em arquivo; (d) rastreamento da imagem com O.C.R.; (e) tradução; (f) geração de arquivo texto. É nesse último arquivo que o programa vai procurar a ocorrência da palavra desejada na pesquisa, para só então referir o arquivo "gráfico" para mostrar na tela do computador a imagem da matrícula.
Ora, esse complexo processo não é seguro. E mesmo que fossem superadas as dificuldades encontradas atualmente (55), simplesmente não é uma solução para o desenvolvimento do fólio real: é mesmo a criação de mais um grande problema — sem falar na irracionalidade de se digitalizar um texto, formar uma imagem perfeita desse documento, armazená-la em custosos discos ópticos, para então... transformá-la em texto novamente!
Por outro lado, a digitalização da matrícula, com a captura de sua imagem, é mero efeito especular. Desconsidera as amplas potencialidades que as media eletrônicas abrigam. Recepcionar, vamos dizer assim, a matrícula, tal qual hoje a conhecemos, em meio rico e substancialmente diferente, é erro indesculpável. Há que se pensar na "matrícula digital" como uma entidade nova.
Na oportunidade em que foi apresentada e debatida a pequena contribuição à discussão da informatização dos registros imobiliários brasileiros, acima referida e reproduzida parcialmente, muitos registradores objetaram que optaram pela via da digitalização da matrícula por ser um meio mais seguro e rápido de se manter e prestar as informações quando instados a lavrarem certidão de seus assentos. E mais: a digitalização das matrículas, de títulos, documentos e o armazenamento desses dados em discos ópticos, permitiria, segundo alguns, a substituição progressiva do microfilme e dos próprios livros do registro, suplantando os limites que ainda impediriam a plena utilização dos computadores no serviço registral. (56)
Por outro lado, não é ocioso repetir aqui, como se tem repetido alhures e com bastante insistência, que o registro imobiliário brasileiro é um sistema de inscrição, pressupõe uma atividade criativa do registrador na qualificação do título, dele destacando os elementos para plasmar o registro. A digitalização dos documentos diretamente inserindo os dados do título em meio eletrônico, com as "facilidades" de buscas, sem a necessidade de indicadores pessoal ou real, com digitalização full text, acabará por desnaturar irremediavelmente o sistema de inscrição, transformando-o num sofisticado e tecnicamente oneroso sistema de transcrição. (57) Com isso voltamos quase um século no desenvolvido do sistema registral brasileiro.
A oportunidade se mostra propícia para aclarar alguns aspectos que ficaram obscuros ou pouco explorados no trabalho anterior. Faz-se logo a ressalva de que não se trata de renunciar, conservadora e timidamente, aos benefícios que a informática traz para os registros imobiliários. É fato incontrastável que as novas tecnologias de tratamento da informação hão-de aportar e se estabelecer no seio do registro imobiliário brasileiro, transformando-o fundamente. Procuramos demonstrar, contudo, que a adoção dessas novas tecnologias deveria estar orientada num bom rumo sistemático, isto é, o processo deveria ser conduzido seguramente, com a regulamentação, a nível federal, da adoção de sistemas informatizados de registro, arquivamento e recuperação de dados, sendo indispensável a colaboração da categoria, através de seus órgãos de representação.
Sumariando os pontos que mereceriam um aprofundamento, temos:
Caráter público dos dados mantidos em computador e a Indelebilidade do registro
Os livros em que lançados os registros ostentam o caráter, latamente considerado, de documentos públicos. Qualquer que seja o meio material em que o registro se realize, tem-se sempre, como resultante, um documento público. (58) Abstraindo-se o conceito de documento, podemos considerar públicos, igualmente, os dados que comp&
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