A outorga conjugal nos atos de alienação ou oneração de bens imóveis
Ricardo G. Kollet
Uma das inovações advindas da vigência do Código Civil de 2002 reside na dispensa da outorga conjugal, quando da alienação ou constituição de ônus reais sobre imóveis, desde que o regime seja o da separação absoluta (art. 1.647, inciso I). De plano, surgem duas indagações para o operador do direito, especialmente o da área notarial, quais sejam: o regime da separação “absoluta” é o convencional, o obrigatório ou ambos? Os casamentos anteriores ao código estão abrangidos pelo dispositivo, tendo em vista o que preceitua o artigo 2.039 do CCB?
No diploma maior do direito privado, de 1916 (art. 235, I), qualquer que fosse o regime de bens entre os cônjuges era mister que na alienação ou oneração de bens imóveis houvesse a anuência do outro. Nesse sentido, embora o outro cônjuge não comparecesse ao ato como vendedor ou outorgante, era necessária sua comparência para expressar a outorga uxória ou marital, conforme o caso.
Com a vigência do novo Código, a exemplo do anterior, existem dois tipos de separação de bens no casamento, quais sejam: o convencional, como o próprio nome diz, resultado da convenção entre os nubentes, mediante pacto antenupcial, regrado pelos artigos 1.687 e 1.688 do CCB; e o obrigatório, resultado do casamento, do qual certas circunstâncias previstas em lei impõem que o mesmo seja celebrado exclusivamente com adoção do regime de separação legal obrigatória (art. 1.641). Acontece que o artigo 1.647 depõe no sentido de que, no regime da separação absoluta, não é necessário o comparecimento do outro cônjuge nos atos jurídicos delineados em seus incisos.
Segundo Venosa, “(...) o novo diploma aboliu a restrição quando o regime de bens entre os cônjuges é o da separação absoluta; quando não se comunicam de forma alguma os bens de cada consorte”.[1] Em face dessa assertiva, pode-se intuir que o regime de separação absoluta a que o artigo se refere é o da separação convencional. Entretanto, dito doutrinador, mais adiante, ao comentar a exceção legal ao princípio de livre escolha do regime patrimonial entre os nubentes, ou seja, o regime da separação legal obrigatória, qualifica-o como “separação absoluta de bens”.[2] É notória a confusão doutrinária que se pode estabelecer em relação ao tema. Por isso a decisão de enfrentá-lo.
Para mais esclarecimento da questão, entendemos necessária uma reflexão a respeito dos efeitos que cada um dos regimes operava na codificação anterior, bem como o tratamento doutrinário e jurisprudencial que lhes foi emprestado até então, sem deixar de lado, por necessário à perfeita aplicação do direito hoje codificado, verificar o que atualmente o Código Civil disciplina.
O artigo 259 do Código Civil de 1916 estabeleceu um “celeuma doutrinário e jurisprudencial” ao prever que, embora o regime de bens não fosse o da comunhão universal, no silêncio do contrato (grifo nosso) prevalecem os princípios dela quanto aos bens havidos durante o casamento. Com relação ao regime de separação convencional (mediante pacto antenupcial, contrato, portanto), é pacífica a aplicação do dispositivo em caso de omissão no ajuste preliminar no que diz respeito à questão. Quanto ao regime obrigatório, a resolução se deu mediante a súmula 377 do STF, que determina a comunicação dos aqüestos no regime da separação legal de bens (obrigatória).
O artigo referido não foi recepcionado pelo Código Civil vigente. Assim, entendemos que o único regime em que não existe possibilidade de comunicação entre os bens é o da separação expressamente convencionada mediante pacto antenupcial, o que nos leva a concluir que o legislador a qualifica como absoluta. No que diz respeito à separação obrigatória (legal), entende-se aplicável, ainda, a súmula referida, havendo assim possibilidade de comunicação entre os bens adquiridos durante o casamento, razão pela qual ela se desqualifica como absoluta. O que permite concluir que, em relação ao primeiro problema formulado neste estudo, a outorga uxória ou marital somente é dispensada nos casos arrolados nos incisos do artigo 1.647, quando o regime de bens for o da separação convencional.
Com mais propriedade ainda pode-se ratificar o que já foi dito, baseado no que dispõe o artigo 1.687 do Código Civil, que possibilita a cada um dos cônjuges alienar ou gravar livremente os bens, quando for “estipulada”a separação de bens.
Quanto ao segundo enfoque deste ensaio, vislumbrado o que preceitua o artigo 2.039 do Código Civil, assombra-nos a seguinte dúvida: a dispensa da outorga é tão-somente aplicável para os casamentos efetuados após a vigência do Código Civil ou também para os anteriores?
O problema fica mais bem posto com a lição histórica contida nos comentários ao novo Código Civil, entabulada sob a coordenação do relator final deputado Ricardo Fiuza, que expressa: “O Texto original do projeto proposto à Câmara dos Deputados consignava a seguinte redação: “O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por ele estabelecido, mas se rege pelas disposições do presente código”. Durante a passagem do projeto pelo Senado Federal emenda do Senador Josaphat Marinho deu ao dispositivo a redação atual. Segundo o senador, “houve necessidade de se promover a modificação porque, se, como dito na parte inicial do dispositivo, ‘o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por este estabelecido’, não se regerá pelo novo. Dúvida que porventura surja, será apreciada em cada caso”.[3]
Para possibilitar a interpretação que nos parece mais adequada, nada melhor do que a palavra do legislador. Ora, se ele suprimiu a expressão “mas rege pelas disposições do presente código”, foi exatamente para extirpar qualquer tipo de dúvida; fez permanecer tão-somente o mandamento segundo o qual o regime é o estabelecido pelo Código de 1916, cujas disposições devem ser aplicadas aos casamentos celebrados na sua vigência.
Reforça essa tese a doutrina contida na obra em comento, assinada por Maria Helena Diniz, que expressa: “Regime de bens de casamento celebrado sob a égide do Código Civil de 1916: As relações econômicas entre os cônjuges regem-se pelas normas vigentes por ocasião das núpcias. Se assim é, o Código Civil de 1916, art. 256 a 314, por força da CF/88, art. 5o, XXXVI, e da LICC, art. 6o, irradiará seus efeitos, aplicando-se ao regime matrimonial de bens dos casamentos celebrados durante sua vigência, inclusive na vacatio legis, respeitando, dessa forma, as situações jurídicas definitivamente constituídas”.[4]
Nesse sentido, se, ao se casar sob o regime da separação de bens, na vigência do Código anterior, o cônjuge esperava que os efeitos se produzissem conforme a lei ou, mais especificamente, se, no caso de venda ou oneração de imóveis por seu consorte, seria indispensável sua presença no ato jurídico para expressar sua anuência, esses efeitos devem permanecer mesmo com a vigência de um novo ordenamento.
Reforça essa posição a anotação feito por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, em seu Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, quando depõem: “O sistema do novo Código, quanto ao regime de bens, principia por fixar regra absolutamente distinta da que existe para os casamentos celebrados sob a vigência do CC/1916. Para os casamentos celebrados antes da vigência do novo Código prevalece a regra do CC/1916”.[5]
Neste momento não encontramos vozes discordantes na doutrina em relação ao tema proposto, o que, sem sobra de dúvidas, deverá ocorrer. Como bem disse o senador que alterou o dispositivo, “dúvida que, porventura surja, será apreciada em cada caso”. Como os notários e aplicadores do direito em geral devem zelar pela validade dos negócios jurídicos em que intervêm como agentes da paz social e no sentido da purificação dos mesmos, qualificando-os como “biologicamente normais”, entendemos que deverá ser solicitada a anuência do outro cônjuge nos casos previstos nos incisos do artigo 235 do Código Civil de 1916, notadamente nas alienações e onerações de bens imóveis, em respeito ao que estabelece o artigo 2.039 do Código Civil de 2002; e aplicado o artigo 1647 somente para os casamentos celebrados pelo regime da separação convencional de bens, na vigência do Código de 2002.
Ricardo G. Kollet é notário e registrador civil. Porto Alegre, RS - março 2003
[1], Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: Direito de Família, 3.ed., São Paulo: Atlas, v.1, p.1251.
[2] Idem ibidem, p.174.
[3] Ricardo Fiuza (Coord.), Novo Código Civil Comentado, São Paulo: Saraiva, 2002, p.1858.
[4] Idem ibidem, p.1838
[5] Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery,. Novo Código Civil e legislação extravagante anotados: atualizado até 15-3-2002, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.657.
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