Ainda pela utilização com utilidade.
Valestan Milhomem da Costa
“Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal chega a manhã.” (Carlos Drummond de Andrade).
No artigo “Ata Notarial. Utilização x Utilidade” (BE IRIB #2479, de 12/06/06), ressalvei desde logo a amplidão do tema e as controvérsias subsistentes no nosso Direito acerca do mesmo, restringindo-me a uma consideração do assunto, ainda que breve, num enfoque ético-profissional na lavratura de atas notariais, citando, a esse propósito, um exemplo extraído de um artigo de Felipe Leonardo (DLI nº 24, 2004), exatamente pela sua expressiva atuação na abordagem do assunto, e, ainda, na certeza que o articulista nutre grande zelo pelo instituto e pela atividade que representa.
No artigo, “Reapreciando a Ata Notarial. Utilização x Utilidade” (BE IRIB #2533, de 13/07/2006), Felipe Leonardo procurou combater pontos básicos que apresentei como nortes do uso com utilidade da Ata Notarial e sua definição, e defender o indefensável, e, evidentemente, desprovido de utilidade, seja na defesa do interesse dos usuários dos serviços notariais seja na defesa do instituto.
Sinto não haver encontrado fundamentos suficientes na réplica apresentada, ainda que propedêuticos, para uma mudança no entendimento por mim esposado no artigo combatido.
Teria reapreciado minhas ponderações se houvesse sido demonstrado: (1) a possibilidade da ata notarial ser formalizada simultaneamente à ocorrência do fato, hipótese que só vislumbro se a ata notarial fosse um registro psicografado, pois, do contrário, o tabelião terá sempre que primeiro constatar o fato (muitas vezes em etapas e momentos diferentes) para depois registrá-lo, e aí não vejo como se referir ao que foi constatado (passado) usando verbos no presente;[1] ou, (2) não ser o auto de aprovação do testamento cerrado supedâneo para validade do testamento cerrado, ou que este não representa expressa manifestação de vontade do testador de que “aquele é o seu testamento e que quer que seja aprovado”; ou, (3) que a ata notarial reúne os requisitos de “documento autêntico” para nomeação de tutor, envolvendo manifestação de vontade dos genitores; ou, finalmente, (4) que a assinatura do interessado (pois não seria parte) é (ou possa ser) requisito de validade da ata notarial diante da soberba conceituação da ata notarial na Doutrina pátria.
Isso não tendo sido feito, e até que seja feito, mantenho inalterada a minha exposição do assunto.
Todavia, para uma melhor configuração do instituto no Direito pátrio e para espancar com mais intensidade o uso inadequado das atas notariais, continuemos.
A ata notarial no Direito pátrio é a mesma do Direito estrangeiro?
Muito do que se tem entendido sobre ata notarial no Brasil tem como influência concepções do Direito estrangeiro sobre o assunto, sobretudo das “escolas notariais Argentinas, Espanholas, Uruguaias e Paraguaias”, como nos informa Celso Rezende (Rezende, 2004, pp. 147 e 148) esclarecendo, inclusive, que para esses notários “o reconhecimento de firmas é uma ata notarial, pois é a constatação de um fato”, e, ainda que, “para esses notários, o que conhecemos por auto de lavratura de testamento cerrado, é igualmente tratado como uma ata notarial”.
Contudo, como já destacou Carvalho Rego, “o direito comparado, no tocante às Atas Notariais não pode ser aplicado no Brasil” (2002), pois a distinção da ata notarial em relação aos demais atos notariais de competência do notariado brasileiro “é bastante clara em nossa Lei nº 8.935/94, art. 7º”, como esclarece Celso Rezende (Rezende, 2004, p. 148).
Vejamos!
Da competência genérica dos notários e específica dos tabeliães de notas
A Lei nº 8.935/94 define a competência dos notários de duas maneiras: de forma genérica e de forma específica, com exclusividade. A competência genérica está definida no artigo 6º, e a competência específica, e exclusiva, no artigo 7º.
A competência genérica dos notários, muitas vezes criticada na doutrina (Orlandi Neto, 2004, p. 20), refere-se à atuação dos tabeliães de modo geral, e restringe-se a esses, incluindo, a toda evidência, o de notas, e diz respeito a toda a atuação dos tabeliães no exercício da sua atribuição, envolvendo não somente a prática direta dos atos de sua competência, como também os acessórios desses atos, de caráter instrumental e técnico, antes, durante e após a prática dos atos que lhe são cometidos, e consiste, nos termos do art. 6 º, em: I - formalizar juridicamente a vontade das partes; II - intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo; III – Autenticar fatos.
Por outro lado, a competência específica, e exclusiva, dos tabeliães de notas (excluindo-se, portanto, os demais tabeliães)[2], diz respeito aos atos que aqueles podem praticar, tendo cada ato, ou espécie de ato, naturalmente, uma finalidade distinta dos demais, pois não se justifica ter diferentes atos para uma mesma finalidade. Aliás, a competência exclusiva dos tabeliães de notas para lavrar atas notariais resulta na impossibilidade do tabelião de protesto lavrar “ata de protesto de títulos”, como vislumbra Felipe Leonardo (DLI 24, 2004), tanto por não ser possível a analogia do termo, dada a exclusividade da competência, como porque a lei não conferiu ao tabelião de protesto competência para lavrar atas desse tipo (art. 11 da Lei 8.935/94).
Diz o Art. 7º - Aos tabeliães de notas compete com exclusividade: I – Lavrar escrituras e procurações públicas; II - lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados; III - lavrar atas notariais; IV - reconhecer firmas; V - autenticar cópias.
Tendo a lei classificado os diferentes atos de competência do tabelião de notas, há de se concluir que cada ato tem conteúdo próprio e que deve ser praticado para a finalidade que se destina, tendo em mira as conseqüências jurídicas que pretende produzir no campo das obrigações, dos direitos reais, do tributário, do sucessório, da prova, enfim.
Assim, o ato notarial de constituição, transmissão e/ou extinção de bens ou direitos entre vivos é a escritura pública, adjetivada pelo tipo do negócio; o de constituição, transmissão e/ou extinção de bens ou direitos para após a morte é o testamento público, ou a aprovação do testamento cerrado; o de constituir representante para alguma finalidade a procuração pública; o de “afirmar a autoria de uma assinatura” (Orlandi Neto, 2004, p. 24), por semelhança ou por autenticidade, o reconhecimento de firma; o de “emprestar à reprodução o mesmo valor do documento original” (Orlandi Neto, 2004, p. 25) a autenticação de cópias; o de autenticar fatos a ata notarial.
Aliás, se não houvesse campo específico para incidência de cada um dos atos de competência exclusiva dos tabeliães, seria dispensável a competência que lhes foi atribuída no artigo 6º da Lei nº 8.935/94, no sentido de assessorar as partes na instrumentação dos negócios jurídicos que lhe são apresentados, pautados pelos princípios “gerais, próprios e reais” (Richter, 2004, pp. 202 e 203) do Direito Notarial.
Deste modo havemos de entender que escritura pública, procuração pública, testamento público, auto de aprovação de testamento cerrado, ata notarial, reconhecimento de firma e autenticação de cópia têm cada qual sua finalidade, e, como consectário, utilização exclusiva aos fins a que se destina. Tanto é assim que não se tem notícia de confusão na utilização de um ato por outro, ressalvado, apenas, o uso inadequado das atas notariais para os fins destinados às escrituras públicas. Aquelas, destinadas a autenticar fatos; estas, a registrar as manifestações de vontades e declarações das partes; coisas distintas.
“Autenticar fatos é comprovar alguma coisa, [...] um acontecimento, um fato – jurídico, seja ele natural ou voluntário, [...] que acarreta conseqüência jurídica”. (Albergaria, 1995, p. 31)
Walter Ceneviva, explicando o art. 6º da Lei 8.935/94, diz que “... autenticar é aqui vinculado ao termo fatos. Significa a confirmação, pelo ... notário ... da existência e das circunstâncias que caracterizam o fato, enquanto acontecimento juridicamente relevante “ (Ceneviva, 1996, p. 43) (Original sem grifos).
Compreendendo a especificidade da ata notarial o Provimento nº 02/2003-CGJRS (DJ nº 2542, de 11.01.2003, fls. 1) deu ao art. 640 da Consolidação Normativa a seguinte redação: “A ata Notarial será lavrada em livro próprio”.
Distinção entre ata notarial e escritura pública
Ângelo Volpi, citado por Celso Rezende (2004, p. 148), diz que “para qualquer estudo referente ao tema é importante definir bem a linha divisória entre ata notarial e escritura pública”. José Enrique Goma Salcedo, citado por Brandelli (2004, p. 55), diz que “a principal classificação dos instrumentos públicos notariais é a que distingue entre escrituras públicas e atas”.
As observações acima apontam desde logo para a ata notarial como instituto autônomo, distinto da escritura pública, e não espécie de escritura pública. As distinções são várias.
Segundo Jose Antonio Escartin Ipien, Notário de Madrid, citado por diversos autores brasileiros e estrangeiros, “Ata Notarial é instrumento público autorizado por notário competente, a requerimento de uma pessoa [...] que, fundamentada nos princípios da função imparcial e independente [...], tem por objeto constatar a realidade ou verdade de um fato que o notário vê, ouve ou percebe [...]” (grifamos).
“Ata é instrumento destinado ao registro de fatos jurídicos, sejam eles naturais ou voluntários, com conseqüências ou possíveis conseqüências jurídicas”. (Albergaria, DLI nº 6, 1996).
Justino Adriano Farias da Silva, abordando sobre a Evolução Histórica da Ata Notarial, diz que “Ata Notarial é o documento passado pelo tabelião, ou por outrem, que suas vezes fizer, mediante solicitação, no qual são relatados fatos, atos, acontecimentos, estado ou situação de coisas, que ele presencia, ouve ou constata”. (2004, p. 129).
Entendo que Ata Notarial é documento público que registra e perpetua a existência de um fato juridicamente relevante constatado pessoalmente pelo tabelião de notas, e que não perece com o perecimento do fato.
Assim, as diferenças – conceitos, elementos e aplicação – entre as Escrituras Públicas e a Ata Notarial são evidentes. Vejamos algumas:
“A ata notarial distingue-se claramente da escritura pública: esta, a conter declarações de vontade; aquela, a conter o testemunho de fatos presenciados pelo Notário” (José Maria Tesheiner)
A “escritura pública instrumentaliza um ato jurídico que pode ser bilateral ou unilateral. A Ata Notarial é sempre unilateral e personalíssimo. Só um comparecente deve registrar sua observação pessoal sobre o fato”. (Albergaria, DLI nº 6, 1996).
“Para ser objeto de Ata Notarial não pode ser objeto de escritura pública. A diferença básica entre ambas é a existência, ou não, de declaração de vontade, que está presente na escritura, e ausente na ata. A ausência de manifestação de vontade é justamente o que caracteriza o fato jurídico, que é o objeto da Ata Notarial”. (Brandelli, 2004). (Grifos nossos).
“A ata caracteriza uma narração e a escritura uma redação. Nessa, o notário transcreve a vontade das partes; naquela, narra os fatos que presencia”. (Rezende, 2004) (Grifos do original).
Dizemos que a Ata Notarial se destina a registrar um fato existente e constatado pela observação do tabelião de notas. A Escritura se destina a dar existência jurídica a um fato (ato ou negócio jurídico) a partir de uma manifestação de vontade(s). A primeira prova a existência de fatos produzidos independentes dela. A segunda faz prova de fatos produzidos a partir dela.
Ao contrário das escrituras públicas, na Ata Notarial é incabível o comparecimento de testemunhas para sua validade, posto que, registrando fatos observados pelo Tabelião, é ele a “testemunha profissional” do acontecimento que, com o manto da fé pública, prescinde de qualquer testemunha. Poderá, sim, fazer alusão à presença delas no momento da observação do fato.
“Para a lavratura da Ata Notarial não se exige a capacidade da parte solicitante, a subscrição do ato por testemunhas, nem se requer a unidade do ato, nem de contexto”. (Chicuta, 2004) (Grifamos).
“A Ata admite sua consecução de forma estendida, prolongada. O Notário não está obrigado a redigi-la no momento em que presencia o fato, pois muitas exigem uma ou mais diligências para a observação do fato; a escritura, teoricamente, é instantânea.“ (Volpi) (Original sem grifo).
A data da lavratura da escritura sempre corresponde à data da manifestação de vontade(s) e da coleta de assinaturas. A data da lavratura da Ata Notarial, em regra, não será a mesma da solicitação nem tampouco a da verificação dos fatos registrados, até porque estas poderão ocorrer em dias e locais diferentes.
Na Ata Notarial não é possível o Notário emitir juízo de valor, opinar, sugerir, declarar, concluir. Deve ser imparcial e objetivo. Na escritura, é possível.
“A matéria que é própria da Ata é em essência de atos não-negociáveis, isto é, atos que respondam insuspeitamente a idéia de feitos ou acontecimentos voluntários... que não suponham prestação de consentimento”. (Ortiz de Di Martino, apud Rezende 2004, p. 151).
Outros estudiosos poderiam ser citados, comungando as opiniões já explicitadas de que a Ata Notarial constitui instituto ímpar, autônomo e distinto da escritura pública, pois enquanto esta serve para formalizar atos e negócios jurídicos a fim de terem validade e eficácia no mundo jurídico, nos termos da lei, aquela se presta ao registro de fatos consumados, naturais ou voluntários, não havendo manifestação de vontade ou de opinião dos interessados ou do tabelião: o fato é narrado tal qual existe e é constatado.
Ata notarial não se confunde com escrituras declaratórias ou retificatórias
Também é relevante apresentar distinções entre ata notarial e as declaratórias e retificatórias, aclarando mais acentuadamente a autonomia e especificidade da ata notarial como instituto.
Na Ata Notarial é o Notário que, a pedido, narra um acontecimento que pessoalmente presenciou. Na Declaratória o interessado comparece na Notaria e faz a sua declaração de vontade ou de um fato perante o Notário, que a materializa nos termos em que foi declarado, não sendo necessário comprovar a veracidade das declarações.
Se houver um erro essencial que precisa ser retificado em uma outra escritura, a escritura de retificação será feita mediante o comparecimento, na Serventia, das partes envolvidas para manifestarem suas vontades na retificação desejada, ratificando o mais, e assinando a nova escritura. Se há manifestação de vontade, o ato adequado é a escritura pública e não a ata notarial.
Por outro lado, se o erro não for essencial, mas, material, a lavratura da Ata Notarial exigiria requerimento do interessado na retificação, e assim não poderia versar sobre dever de ofício do notário, pois os atos “ex officio” prescindem de requerimento, tendo o notário o dever de retificar erros materiais tão-logo constate a incorreção, não sendo aplicável, portanto, o princípio da rogação, que é indispensável quando a hipótese é de ata notarial.
Outro não é o entendimento de Gaiger Ferreira, 26º tabelião paulistano (BE 2233, IRIB), ao dizer: “Foi a ata notarial instituída pela Lei 8.935/94 para corrigir erros materiais em escrituras? Parece-nos que a lei pretendeu muito mais e a doutrina já se encarrega de rechear as infindáveis possibilidades da ata como atividade notarial a serviço das necessidades da cidadania e da sociedade. § A ata notarial, contudo, não é a forma, a roupa feita sob medida para a correção de erros, ainda que em alguns notariados da América Latina seja, por vezes, utilizada. § Vemos alguns óbices que tornam a correção de erros por ata notarial incompatível com a natureza deste ato. § Em primeiro lugar, a ata deve ter um solicitante. Se o tabelião perceber o erro ou se a parte se recusar a solicitar a correção, faltará elemento essencial ao ato. E não se pense que o tabelião deverá agir como solicitante, lavrando o próprio ato corretivo, pois esta solução representa infração ao princípio da impessoalidade, e obstado expressamente pelo artigo 27 da lei 8.935/94. § Em segundo lugar, a ata notarial tem natureza de pré-constituição probatória, instrumento a disposição da sociedade. Utilizá-la para corrigir erros ou omissões parece-nos um desvio de finalidade que constitui infração ao artigo 6°, inciso II, da referida lei 8.935/94.”
Casos aplicáveis restritivamente às atas notariais
Como visto, não cabe ata notarial para atos pertinentes às Escritura Públicas –constitutivas, declaratórias, reficatórias ou aditivas. As atas notariais, porém, são perfeitamente cabíveis nas hipóteses seguintes, e em outras similares:
1) um trator, a serviço da Prefeitura, destruiu a calçada de vários moradores de uma rua. Estes moradores comparecem ao Cartório e solicitam que o Tabelião compareça ao local e relate aquele fato, para prova judicial e indenização.
2) Um pai, separado e sem poder ver seus filhos sob a guarda da mãe, solicita ao Tabelião que, juntos, se dirijam àquela residência, por 3 vezes seguidas, para comprovar que ela, reiteradamente, ou não atende a campainha ou não permite que ele veja os filhos, descumprindo ordem judicial.
3) “O Notário é chamado para verificar o conteúdo de um Site na internet para provar o tempo que aquilo ficou na rede e seu conseqüente prejuízo para o interessado, que pleiteia Direito Autoral”. (Ângelo Volpi Neto).
4) Os ares-condicionados de uma Empresa respingando sobre o telhado e janela das casas dos vizinhos e ora requerentes.
5) Falta de rampas para acesso a um deficiente físico, para realizar concurso.
6) “Comprovar o prazo e a má conservação de mercadorias; ou as condições de um imóvel (rachadura, umidade, fissuras etc); um esbulho possessório, ou o impedimento de acesso ao local público para requerer certidão.” (Alves, DLI nº 27, 2002)
Cautelas quanto ao conteúdo das atas notariais
Destacamos que o princípio da instância é imprescindível na lavratura das atas notariais. Esse princípio é satisfeito pelo requerimento do interessado ao tabelião para que lavre ata notarial, realizando as diligências necessárias, e se necessárias, para registrar fato do interesse daquele.
Contudo, o requerimento não vincula o conteúdo da ata notarial. Não será por que alguém solicita a lavratura de uma ata notarial de abalroamento ocorrido horas atrás, entre dois veículos tais e tais, placas tais e tais, numa rua X, que o notário fará uma ata notarial desse acontecimento, salvo se, chegando no local indicado, constatar, pessoalmente, a existência do abalroamento com aquelas características.
Quem provocou o acidente, de onde vinha, a que velocidade, se os veículos deram seta ou não, se buzinaram ou não, são coisas que o tabelião não poderá atestar, ainda que o interessado solicite que o tabelião mencione um ou mais desses fatos, e não obstante assinar a ata junto com o tabelião.
A razão? A ata é o testemunho do tabelião, não do interessado.
Se o interessado quiser fazer registrar um fato do seu conhecimento particular, que considere relevante, o tabelião, usando da competência genérica que lhe confere a lei, deverá orientar-lhe no sentido de outorgar uma escritura pública, declaratória, de preferência. Nesta, sim, poderá dizer o que viu, ouviu, sentiu, sabe, enfim: o que deseja declarar, porque este será o seu testemunho, não podendo o tabelião, neste caso, interferir na declaração do interessado, salvo se a declaração for manifestamente ilegal.
Logo, vemos que a exata medida da ata notarial não é a existência de um fato, por si só, mesmo que juridicamente relevante. A exata medida da ata notarial é a constatação do fato pelo tabelião, e não por interposta pessoa, alheia à atividade notarial. Isto porque a autenticação do fato pelo tabelião é decorrente da fé pública, a qual não coaduna com a interposição de pessoas no registro de fatos. A interposição de pessoas no registro de fatos está relacionada com a atuação dos historiadores, não à dos tabeliães. A fé pública é atribuição indelegável do notário ou registrador, partilhável somente com os serventuários prepostos, e, diga-se, de forma mitigada, salvo ao substituto legal, nos termos da lei.
Assim, para que o fato registrado em ata notarial seja revestido da fé pública, ou seja: com a força probante que se espera desse instituto, sobretudo nos Tribunais, não basta que conste de ata notarial. É preciso que seja constatado pelo tabelião através dos seus sentidos (visão, audição, olfato, tato, paladar); e, mais: não apenas por qualquer desses sentidos, mas por aquele sentido indispensável para a constatação do fato, pois não se pode esquecer que o papel do tabelião, nesse caso, é o de testemunha, com o manto da fé pública, é verdade, mas que não pode testemunhar um fato usando um sentido ineficiente para a constatação daquele fato, por analogia ao disposto no art. 228, III, do Código Civil. E aqui não se trata do tabelião ser desprovido ou reduzido, necessariamente, de um ou outro dos seus sentidos; mas de deixar de usá-lo(s) numa situação específica.
Imaginemos que uma confeitaria entregou os “doces” para uma festa infantil, os quais, acidentalmente, foram temperados com sal. O tabelião é então convocado para lavrar uma ata notarial (esclareça-se, desde logo, que para essa diligência o tabelião poderá atuar nos fins de semana, pois, senão, significaria reduzir acentuadamente a finalidade da ata notarial, uma vez que os fatos não escolhem dias ou horários para ocorrerem). Chegando lá, o tabelião vê as crianças fazendo caretas e ouve as crianças dizerem que o “doce” está salgado. Além disso, o tabelião apalpa e cheira um ou mais daqueles doces.
Com base nos seus aguçados sentidos, da visão, audição, tato e olfato, poderia o tabelião fazer a ata notarial para atestar que os “doces” estavam (ou, como preferem: constatei estarem) salgados? Teria esse testemunho algum valor? Afinal, poderia o tabelião se valer de interpostas pessoas (os meninos) para constatar o fato? Quem seria a testemunha dos fatos nesse caso: o tabelião ou as interposta pessoas? Onde estaria a fé pública do testemunho se o tabelião não constatou, apenas registrou o que outros contataram? Gozaria o testemunho da interposta pessoa da presunção de veracidade pelo simples fato de ter sido proferido diante de um tabelião? Se a ata notarial, nesse caso, tem algum valor probante, teria menos valor o testemunho do interessado diretamente diante do Juiz? Inverteria esse testemunho o ônus da prova? As hipóteses de inversão do ônus da prova não são aquelas previstas em lei, incluindo o testemunho do tabelião? Poderia o tabelião ser responsabilizado pela falsidade do testemunho da interposta pessoa? Enfim: não são as atas notariais formalizadas pelo tabelião exatamente para atestar a veracidade do conteúdo da declaração? Então, como poderia atestar aquilo que não constatou pelos seus próprios e adequados sentidos?
As atas notariais e a assinatura do interessado
Felipe Leonardo entende necessária a assinatura do interessado na ata notarial, esclarecendo que “a assinatura não será objeto de consentimento senão de conformidade quanto à exatidão da redação (fato narrado)” (DLI nº 24, 2006).
No entanto, essa cautela, além de desnecessária, pois nada acrescenta ao ato (digo: ao conteúdo da ata), revela uma insegurança profissional descabida. O fato será narrado conforme visto pelo tabelião, e não segundo a ótica do interessado. Ao interessado caberá aceitar (pelo uso) ou não a ata lavrada pelo tabelião, mas nunca moldar os termos da redação da ata ao que lhe seja conforme, ou ao que considere fato existente, ou ao grau de existência, enfim.
Voltando aos “doces” salgados, não poderia o interessado solicitar, por exemplo, que o tabelião redigisse a ata notarial para dizer que os “doces” estavam muito salgados, se o tabelião não teve essa impressão ao provar o alimento, ainda que, de fato, a porção provada pelo interessado estivesse muito salgada. Como também não poderia moldar a redação se a situação fosse inversa.
Assim, por mais zelo que possa haver no procedimento de colher a assinatura do interessado na ata notarial, isso se revela descabido, e um desvio de finalidade, como seria desvio colher a assinatura do procurador numa procuração. Servirá para quê? Ou o mandatário aceita a procuração, usando os poderes, ou não aceita, não usando.
Nesse sentido, Celso Rezende (2004, p. 103) define ata notarial como “ato unilateral declaratório do notário. Trata-se de uma resenha ou relato por escrito elaborado com segurança, procurando sempre a narrativa de fatos, com riqueza de detalhes que possam caracterizar o fato ocorrido por meio de uma simples leitura. Deve, a princípio, haver requerimento para que seja procedido, uma vez que o notário, por via de regra, não age de ofício, devendo haver solicitação para sua prática. Este requerimento poderá ser feito no próprio corpo da ata ou em apartado, e, se procedida na própria ata, não terá o requerente o direito de aceitar ou não o que dali consta, devendo apenas preocupar-se com o requerimento e não com o seu conteúdo. Deve ser assinada pelo notário e por este lavrada, podendo, entretanto, designar um funcionário para a prática do ato”. (Grifos acrescentados).
Quanto à cabal exposição de Celso Rezende, observo apenas que não seria apropriado o requerimento na própria ata, uma vez que a ata notarial é consectário do requerimento; ou seja: as diligências e providências do notário (tabelião de notas) para a lavratura da ata notarial têm como fato propulsor o requerimento do interessado; senão haveríamos de concluir que o tabelião agiu por iniciativa própria.
Ademais, o requerimento da ata notarial não precisa ser feito na presença do tabelião. Basta que seja dirigido a ele. Alguém que reside numa comarca distinta da do tabelião – ou em outro Estado – pode requerer a lavratura da ata notarial mediante requerimento enviado pelo correio, com firma reconhecida, no qual, além de indicar o fato que gostaria que fosse constatado pelo tabelião, solicita que a ata notarial lhe seja remetida pelo correio, para o endereço indicado no requerimento. Por esta forma estará satisfeito o princípio da instância.
Ora, se as correspondências judiciárias são dadas por cumpridas utilizando-se dos correios, fax e até da Internet, haveríamos de exigir que o interessado compareça à serventia para concordar com a exatidão do fato narrado pelo tabelião, de sua exclusiva responsabilidade?
Desta feita, é imperativo não criar situações inúteis de entraves à ampla utilização da ata notarial. Não seria salutar fortalecer o hábito da assinatura do interessado nas atas notariais, onerando, obstruindo e deformando o instituto. É preciso avançar na compreensão do valor, do alcance, do sentido e da autonomia da ata notarial, não ficando aferrado a fórmulas antigas, estabelecendo hibridismo ou confusão sem fundamentos na lei ou no Direito (segurança jurídica) entre os atos de competência dos tabeliães de notas, ou jungindo ao Direito alienígena aquilo que tem feição própria no nosso Direito.
A ata notarial brasileira: instituto autônomo
Sendo instituto autônomo, a Ata Notarial brasileira não pode ser redigida em termos que se constituam simples arremedo da Escritura Pública, fazendo-se mister apresentar-se sob forma própria, de modo a não deixar dúvidas acerca da peculiar identidade do ato e de quem o praticou.
A Ata Notarial brasileira não é – e não deve ser - um ato fugaz, vulnerável e aditivo, mas um documento substancioso, permanente, completo em si, com identidade própria, que torne perene a prova do fato e o seu conteúdo, não obstante o eventual perecimento do fato que lhe deu origem.
Destarte, não se pode confundir a Ata Notarial brasileira com o auto de aprovação do testamento cerrado, o qual, desaparecendo o escrito do testador, também desaparece, perde a sua eficácia, ainda que o auto, em si, seja poupado do extravio por alguma razão; nem com a nota de aprovação do testamento cerrado, que não obstante reunir algumas características da ata notarial (é registro de um fato consumado, dispensa outra assinatura além da do tabelião) não tem o condão de preservar o conteúdo do fato, não prova o fato na sua substância, senão que o fato existiu, mas não se conhece o seu conteúdo; nem tampouco com o reconhecimento de firma, em qualquer de suas modalidades, posto que desaparecendo o documento no qual foi lançada a assinatura, desaparece o próprio reconhecimento da firma, não podendo o tabelião expedir certidão daquele ato-fato, que se esvaiu, nem usar o tabelião eventuais anotações em seu cartório para reproduzir a assinatura reconhecida (por autenticidade ou semelhança), ou o documento no qual foi lançado o reconhecimento da firma, e, por maior razão, não se pode utilizar ata notarial para registro de manifestação de vontade, como é o caso da nomeação de tutor.
Independente da classificação aplicável a qualquer desses atos (protocolar ou extraprotocolar), não podemos identificá-los como Ata Notarial, pois são atos que têm identificação própria no nosso Direito.
Se havemos de divulgar, incentivar e firmar o uso da ata notarial como documento que goza de credibilidade plena para fins de prova em Juízo (ou em qualquer outra situação) de um fato ocorrido, não podemos considerar objeto de ata notarial fatos relatados por interposta pessoa que não tenhamos constatado pessoalmente, nem tampouco denominar de ata notarial um ato que sua eficácia, ou sua própria existência, depende do não perecimento do fato que quer provar.
Com esse propósito, sempre que requeridos a lavrar Ata Notarial seria bom indagar: o que vou registrar na ata notarial é um fato autêntico (constatado por quem lavra a ata) e juridicamente relevante que não é negócio jurídico? A Ata Notarial preservará a prova do fato e seu conteúdo independente da permanência do fato?
Se as respostas forem afirmativas, teremos uma situação típica de Ata Notarial.
Conclusão
As atas notariais, se difundidas e praticadas com profissionalismo, eficiência e, sob a égide dos princípios éticos que devem nortear o exercício de um serviço público delegado de tamanha magnitude, podem significar a ascensão do tabelionato de notas brasileiro pelo prestígio que venha angariar em seu mister, oferecendo ao usuário uma alternativa de prova pré-constituída, não olvidando o Notário, e, em especial, o tabelião de notas, destarte, de buscar, sempre, a valorização das escrituras públicas, que com aquelas não se confundem.
Notas
(*) O autor é tabelião e oficial substituto no Estado do Rio de Janeiro.
[1] A propósito, embora o livro bíblico de Apocalipse (Gr.: A-po-ká-ly-psis; Lat.: A-po-ca-ly-psis = “exposição; exibição; desvendar, relevar”, de acordo com a nota de rodapé da Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas com Referências e o Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Ed. Vozes), seja um registro de acontecimentos futuros em relação ao tempo do Apóstolo João (Cap. 1, versículo 1), revelado a este enquanto estava exilado na Ilha grega de Patmos (1:9), por ação do espírito de Deus (1:10), o tempo verbal utilizado no discurso direto de João é sempre o pretérito, e nunca o presente. Somente no discurso indireto, ou seja: quando reproduz a fala de outros, é possível encontrar declarações num tempo verbal diferente, inclusive no futuro, o que é óbvio.
[2] Exclusivo = que exclui; que tem força ou direito para excluir; incompatível com outra coisa; especial, privativo, restrito; Direito de não ter concorrentes numa indústria ou numa empresa (Michaelis, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa).
Referências bibliográficas
(1) ALVES, Wilson Bueno. Ata Notarial. Boletim Cartorário, DBI, edição 27, Ano 2002.
(2) APOCALIPSE. Português. In: Bíblia Sagrada. Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. Revisão de 1986.
(3) BRANDELLI, Leonardo. Atas Notariais. In: Ata Notarial. Ed. safE, Porto Alegre, 2004.
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