Alguns precedentes jurisprudenciais
No artigo intitulado Clausulação da legítima e a justa causa do art. 1.848 do Código Civil (Revista de Direito Imobiliário nº 57 do IRIB e site www.saraivajur.com.br - doutrina – artigos) foram apresentados entendimentos doutrinários sobre a necessidade de ser declarada a justa causa para imposição de cláusulas restritivas (inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade) sobre os bens que compõem a legítima, nos atos de liberalidade (doação e testamento) em atenção ao que determina o art. 1.848 do Código Civil em vigor, além de breve referência histórica à sua origem (justa causa).
A jurisprudência começa a sinalizar o entendimento sobre a questão. É o que se depreende, a exemplo, do acórdão prolatado pela Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível nº 70006803019, relatada pela Desembargadora Dra. Catarina Rita Krieger Martins, de cujo teor destaca-se o seguinte trecho:
“A regra atual, expressa no art. 1.848 do Código Civil de 2002, condiciona o estabelecimento de gravames à existência de justa causa, declarada no testamento.” (destaques acrescidos).
Também no acórdão proferido na Apelação Cível nº 70007598782, da Sétima Câmara Cível também do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatada pelo Desembargador Dr. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, há expressa referência à necessidade de ser declinada a justa causa para imposição de cláusulas restritivas sobre a legítima e, ainda, que tal motivação poderá ser apreciada pelo judiciário (semelhante entendimento foi consignado pela mesma Câmara Cível na Apelação nº 70007705536):
“O Novo Código Civil manteve a possibilidade de clausulação restritiva, mas reclama que sua imposição venha acompanhada de justa causa, isto é, de motivação objetiva ponderável, que poderá sempre ser submetida ao crivo judicial.” (grifou-se).
Destaca-se, ainda, a ementa da Apelação Cível nº 70009761180, da Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatada pelo Desembargador Dr. André Luiz Planella Villarinho, cujo teor é o seguinte:
“EMENTA: APELAÇÃO. PEDIDO DE CANCELAMENTO DE GRAVAMES. CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE, IMPENHORABILIDADE E INCOMUNICABILIDADE. LOCAL DO IMÓVEL LEGADO DISTANTE DO DOMICÍLIO DOS DONATÁRIOS. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA NO ATO. CC ART. 1848. Admite-se o cancelamento dos gravames de impenhorabilidade, inalienabilidade e incomunicabilidade, dispostos sobre imóvel em testamento, mesmo na vigência da lei antiga, a fim de possibilitar a plena fruição do bem legado pelos donatários, assim como em respeito ao princípio constitucional da função social da propriedade. Ademais, não ocorreu, no ato da doação e instituição das cláusulas questionadas, a justificativa hoje exigida na lei civil. Art. 1848 do CC. APELAÇÃO DESPROVIDA.” (destaques acrescidos).
Apesar dos precedentes jurisprudenciais acima indicados referirem-se a casos decorrentes de sucessão testamentária, manifestei, no aludido artigo, entendimento de que a justa causa exigida pelo art. 1.848 do Código Civil também deve ser observada nos negócios jurídicos de doação feitos em adiantamento de legítima (Código Civil, arts. 544, 1.848 e 1.911, parágrafo único).
Ressalta-se, por oportuno, que os adiantamentos de legítimas somente podem ser instrumentalizados por meio de contratos de doação. E se, ao adiantar a legítima, o doador impõe cláusulas restritivas, imperativo que apresente sua justa causa para atender ao requisito legal contido no aludido art. 1.848 do Código Civil e legitimar sua pretensão. Assim, se declarado no título que o bem doado é destacado da parte disponível, desnecessário que se manifeste a justa causa exigida pelo mencionado art. 1.848, caput.
O art. 1.848 do Código Civil, que serve de supedâneo aos negócios jurídicos de doação, deve ser observado pelos doadores não só por se tratar de negócio jurídico que retrata liberalidades, como ocorre nos testamentos, mas por não haver nas regras relativas ao contrato de doação (Código Civil, artigos 538 e seguintes) previsão legal que autorize a imposição de cláusulas restritivas nesta espécie de contrato.
Ressalvadas opiniões contrárias, não se pode pretender aplicar de forma parcial, nos negócios jurídicos de doação, as disposições contidas no art. 1.848, ou seja, valer-se o doador apenas das cláusulas restritivas e ignorar a necessária motivação. Se pretender clausular a legítima deverá atender integralmente os requisitos contidos no referido dispositivo legal, em especial a justa causa.
Não é demasiado lembrar que na vigência do Código Civil revogado (1916), também o fideicomisso era admitido nas doações, mas sua tipificação - como ocorre com as cláusulas restritivas - estava inserida no direito das sucessões; a doutrina e a jurisprudência acabaram por assim entender, embora não houvesse previsão no direito dos contratos, como também, presentemente, não há previsão de cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade nos dispositivos que regulam as doações, como já referido. Isso demonstra que o direito é dinâmico e não estanque no sentido de que a motivação só pode ser exigida nos testamentos, como entendem alguns. Então, onde buscar embasamento legal para clausulação nas doações? Sem dúvida no art. 1.848 do Código Civil. Se assim não fosse, poder-se-ia admitir que o legislador teve a intenção de codificar normas que se excluem? Como admitir, por exemplo, que o direito de família não se harmonize com os demais livros do Código? A condição de herdeiro do cônjuge busca regras no direito de família; a parte geral aplica-se a toda parte especial, além de outros tantos exemplos.
Vale destacar o pensamento de Karl Larenz sobre a interconexão interpretativa de um sistema. Afirma o autor que:
“Assim, como disse Betti, se manifesta a relação recíproca que existe entre cada uma das partes componentes do discurso – como de qualquer notificação do pensamento -, bem como a sua comum relação com o todo que formam as partes: uma relação ente si e com o todo que torna possível a clarificação mútua do significado duma forma portadora de sentido na relação entre o todo e os seus elementos constitutivos e inversamente. Trata-se aqui da forma mais simples daquilo a que é habito chamar o círculo hermenêutico. Acresce que precisamente quanto à interpretação é válido afirmar que a ordem jurídica como complexo de normas não é por seu turno apenas uma soma de proposições jurídicas, mas uma ordenação unitária. As proposições jurídicas, como vimos, engrenam umas nas outras, limitando-se, complementando-se ou reforçando-se, e só da reunião delas resulta uma autêntica regulamentação. Isto também sempre foi reconhecido na teoria da interpretação. Não há uma individual norma jurídica por si só, diz acertadamente Felix Somló, mas apenas normas jurídicas que vigoram em conexão umas com as outras. Daí deriva, ainda, para a interpretação, a exigência de compatibilidade lógica de todos os seus resultados.” (destacou-se) (Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, 2ª edição, 1969, pág. 371 - versão portuguesa da obra de Karl Larenz intitulada Methodenlehre Der Rechtswissenschaft)
E no mesmo sentido vale destacar entendimento do MM. Juiz de Direito da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Dr. Venício Antonio de Paula Salles (procedimento de dúvida nº 583.00.2005.057669-0):
“Para se atingir esta conclusão LITERAL e OBJETIVA, se mostra desnecessária formação jurídica ou qualquer estudo ou aprofundamento sobre o conhecimento das LEIS e dos sistema normativo. Inoperante ou desnecessário, também, que o aplicador do DIREITO, neste caso, tenha se debruçado sobre os difíceis caminhos interpretativos. Basta a leitura. Por esta ótica, se a lei decreta INDISPONIBILIDADE, esta deve ser observada. No entanto, em que pese a facilidade deste raciocínio, não é dado ao aplicador do direito se conformar apenas com esta primeira leitura, pois DIREITO envolve um SISTEMA, e é o sistema que revela o conteúdo de cada e de todas as regras jurídicas, que são ajustadas pelas inúmeras interferências e pelos PRINCÍPIOS, que além de representarem um norte para o Legislador, atuam como um facho para a condição da melhor interpretação.” (destaques acrescidos).
Há, ainda, os que argumentam que a aceitação do donatário, maior e capaz, na própria escritura de doação representa conformação com as restrições estabelecidas. Este pensamento seria válido se a norma versasse sobre direito disponível. No entanto, ao que se sabe, a qualidade das normas do direito das sucessões (cogentes) não permite que os interessados transacionem em atenção de seus próprios interesses. Se assim fosse, poder-se-ia, em razão da capacidade civil, por exemplo, afastar a ordem da vocação hereditária (Código Civil, art. 1829) ou dispor contratualmente sobre herança de pessoa viva (Código Civil, art. 426). A liberdade de contratar sofre nos tempos atuais, especialmente após a vigência do Código Civil de 2002, limitações conferidas pelas normas de ordem pública. A vontade tem novos contornos que seus emitentes devem respeitar.
E se considerar, ainda, que um aspecto da função social do contrato é garantir a ordem social, haveria afronta, também, ao parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil. Ressalta-se, também, o preceito contido no art. 2.042 do mesmo diploma legal, que denota a grande importância do assunto:
“Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848 quando aberta a sucessão no prazo de 1 (um) ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição.”
Portanto, importante observar se a justa causa é declarada nos atos de liberalidade (inter vivos e mortis causa) para evitar que seja, eventualmente, desatendida a vontade do autor em apreciação feita na esfera jurisdicional, como manifestado no citado artigo sobre a clausulação da legítima.
* Alexandre Laizo Clápis é registrador substituto em São Paulo.
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