Bem de família: imóvel em que o executado não reside pessoalmente
Desde a Constituição de 1988, principalmente, temas tradicionais de direito privado passaram a sofrer uma maior influência do direito público. A rigor, não seria nem mesmo cabível fazer essa distinção de modo estanque, ainda hoje, ou seja, direito público e privado, justamente em face de um maior entrelaçamento que passou a haver.
A temática relacionada ao bem de família é uma dessas que sofreram grande influência do espírito social da Constituição de 1988. Um tema típico de direito privado influenciado por um perfil social da norma que pretende salvaguardar nas mãos do devedor, que esteja enfrentando processo executivo, pelo menos um imóvel que sirva de moradia para ele e para a sua família.
Ainda antes de enfrentar o enfoque principal, é preciso relevar que até mesmo o conceito de família tem sido ampliado, de forma a não se admitir apenas aquela idéia tradicional de homem e mulher casados e seus filhos, mas também uma série de outras espécies de famílias, como aquelas constituídas a partir da união estável ou mesmo entre tios e sobrinho, avós e netos entre outras.
No Brasil o bem de família pode ser classificado como voluntário ou legal. No primeiro caso, o Código Civil prevê, entre os artigos 1.711 a 1.722, que qualquer pessoa pode, através de escritura pública ou testamento, destinar parte do seu patrimônio para instituir bem de família, dentro dos limites ali impostos. Por outro lado, ainda que a pessoa não tenha instituído o bem de família na forma prevista pelo Código Civil, a Lei 8.009/90 cuida da proteção do único bem que o devedor, já enfrentando fase de execução, tenha para sua moradia própria ou da família.
Ponto de relevo aqui é o que diz respeito à interpretação do art. 1º da Lei 8.009/90. Ali se tem o seguinte:
“Art. 1º. O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei”.
A discussão gira em torno da interpretação literal ou extensiva da parte final do dispositivo, quando faz menção aos proprietários que nele residam. É comum que o executado faça a locação de seu bem em uma cidade, por exemplo, para locar outro em lugar diferente; ou mesmo ceda o bem para outras pessoas da família, ou não. De acordo com a interpretação literal, em assim sendo, o bem não seria considerado de família, justamente porque o proprietário nele não reside.
De modo acertado e de conformidade com o aspecto social da Constituição de 1988, que também tutela a dignidade da pessoa humana, o Superior Tribunal de Justiça vem adotando uma interpretação extensiva do artigo decidindo que a impenhorabilidade prevista na lei especial se estende ao único imóvel do devedor, ainda que este se ache locado a terceiros, inclusive por gerar frutos que possibilitam à família constituir moradia em outro bem alugado. Ademais disso, o STJ também tem se pronunciado no sentido de que ainda que no único imóvel do executado residam outros parentes, ainda que colaterais, por exemplo, o bem é considerado protegido pela lei especial.
De conformidade com a interpretação do STJ, a norma não é destinada um número determinado de pessoas, mas sim à pessoa humana que tem direito de ver resguardado, pelo menos, um bem de seu patrimônio, ainda que não esteja o usando pessoalmente, que sirva como eventual moradia com sua ou de seu família.
* Rodrigo Toscano de Brito é advogado especialista em direito notarial e registral ([email protected])
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