Conceito de Unidade Imobiliária
Eduardo Augusto
São Paulo, 17 de maio de 2006.
Prezado Dr. Eduardo Augusto
DD. Diretor de Assuntos Agrários do IRIB
Objetivando a elaboração pelo INCRA de uma rotina para padronizar os procedimentos na análise das peças técnicas pelos Comitês de Certificações dos Estados, em que um dos aspectos a serem observados é com relação a matrículas que estão seccionadas por ferrovias ou por estradas municipais, estaduais ou federais (em que não houve a competente ação de desapropriação), solicitamos um posicionamento do IRIB sobre como deveriam ser elaboradas as peças técnicas para possibilitar seu posterior ingresso no registro público imobiliário.
Solicitamos também um parecer referente a situação dos córregos, rios e hidrovias, tanto na hipótese de estes estarem localizados no interior do imóvel (interceptando-o) ou numa de suas divisas/confrontações.
Os imóveis que se enquadram nessa situação deverão gerar glebas distintas para ambos lados tendo como limite a faixa de domínio público, independentemente se houve ou não desapropriação?
Cada uma dessas glebas será descrita numa matrícula autônoma?
O INCRA esclarece que, para fins de cadastro, o imóvel rural é o definido pela legislação agrária (Estatuto da Terra e Lei nº 8.629/93), ou seja, não coincide com a definição jurídica de bem imóvel conforme a legislação sobre direitos reais e registro imobiliário.
Esta consulta se faz necessária para que possamos atingir os objetivos almejados pela “legislação do georreferenciamento”, com a importante e necessária coordenação entre cadastro e registro, atendendo as necessidades de cada especialidade de acordo com os ditames legais em vigor.
Atenciosamente,
Roberto Tadeu Teixeira
Coordenador do Comitê de Certificação
INCRA-SP
Parecer do Irib:
São Paulo, 3 de julho de 2006.
Ilmo. Dr. Roberto Tadeu Teixeira
DD. Coordenador do Comitê de Certificação do Incra-SP
Primeiramente, convém destacar que o Irib reconhece e admira a forma profissional com que o Incra tem tratado os assuntos referentes ao registro público imobiliário, situação esta que demonstra que os objetivos almejados pela nova legislação do georreferenciamento serão alcançados com maior facilidade e eficácia.
O tema de sua consulta é bastante complexo e interessante, demandando uma série de considerações preliminares para que a solução dada pelo ordenamento jurídico seja melhor compreendida e por todos corretamente aplicada.
Portanto, tenho a honra de encaminhar a V. Sa. o parecer do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, IRIB, nos termos da consulta formulada, para análise dessa respeitável autarquia.
O Irib agradece pela deferência e espera que o presente parecer seja útil para o aprimoramento do programa do georreferenciamento e que a parceria Incra-Irib continue a gerar frutos positivos para o Brasil.
Eduardo Augusto Diretor de Assuntos Agrários do Irib [email protected] |
GEORREFERENCIAMENTO DE IMÓVEIS RURAIS
CONCEITO DE UNIDADE IMOBILIÁRIA
PARECER
Eduardo Augusto,
Diretor de assuntos agrários do Irib e registrador imobiliário em Conchas-SP.
Introdução
Trata-se de consulta formulada pelo Incra com o intuito de esclarecer um ponto de grande importância para a execução do programa de georreferenciamento de imóveis rurais, que é a definição da “unidade imobiliária rural”, porque, sem a determinação de um sólido marco jurídico, os geomensores não saberão como proceder para que seus trabalhos técnicos estejam aptos tanto para o sistema cadastral do Incra como para o fiel cumprimento da Lei de Registros Públicos.
Visando a facilitar a compreensão e a tornar o texto menos cansativo, o termo “georreferenciamento” foi utilizado neste parecer como “o integral cumprimento da legislação em vigor visando à obtenção da certificação do Incra e posterior ingresso na matrícula”, e não como uma mera técnica de agrimensura. Com o mesmo objetivo, foi denominado “geomensor” o profissional devidamente habilitado e credenciado para a elaboração dos trabalhos técnicos.
1. Conceito de Imóvel Rural
Afinal, o que é um imóvel rural?
Essa é a questão que está causando dúvidas em todo o Brasil devido a um equívoco que, mesmo pequeno, gera sérias repercussões. O equívoco está exatamente na divergência sobre o conceito de imóvel rural.
Questiona-se se o imóvel rural é a unidade econômica agropastoril constante do cadastro do Incra, a unidade descrita na matrícula ou, até mesmo, se é a área englobada na declaração do ITR.
Esse problema de interpretação ocorre porque compete ao Incra efetuar o cadastro rural, fiscalizar a correção dos trabalhos georreferenciados e, principalmente, porque também é sua a missão de emitir a certificação de que os vértices do imóvel georreferenciado não invadem a área de outro imóvel rural certificado. E, para o Incra, imóvel é, e sempre foi, a unidade econômica rural.
Torna-se necessário, portanto, analisar a divergência para, depois, dirimir esse equívoco.
Imóvel, pela lei civil, é “o solo e suas acessões”. Apenas e tão-somente isso.
Código Civil — Lei nº 10.406/2002:
Art. 79 - São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.
Sob esse prisma, poderiam ser considerados unidades imobiliárias um país inteiro, um município, uma fazenda ou até mesmo uma diminuta área delimitada por uma cerca de arame. Não existem normas para definição dessa “unidade” e nem será possível criá-las, por total inviabilidade técnica e, até mesmo, prática.
Portanto, não há e nem será possível haver uma regra geral, quer técnica ou jurídica, que defina a “unidade imobiliária” de forma a atender todas as atuais necessidades públicas ou privadas.
O Estatuto da Terra, legislação diretamente ligada às atividades específicas do Incra, define o que vem a ser imóvel rural. Apesar de não-muito esclarecedor seu texto (há inclusive divergências sobre sua abrangência), uma coisa está bastante clara na norma legal, que esse conceito vale apenas “para os efeitos dessa lei”.
Estatuto da Terra — Lei nº 4.504/64:
Art. 4º - Para os efeitos desta Lei, definem-se:
I - Imóvel Rural, o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada.
Segundo o que se extrai desse conceito legal, o imóvel rural:
a) deve possuir potencial para exploração agropecuária, agroindustrial ou extrativista;
b) não perde sua característica tão-somente por estar localizado no perímetro urbano; e
c) deve ter área contínua (eis aqui um outro foco de divergência).
Portanto, a legislação agrária enfatiza aquilo que está diretamente ligado aos seus objetivos, que é a característica rural do imóvel, em que o incentivo, a regulação e o controle da produtividade agropecuária e agroindustrial reflete diretamente na economia e no desenvolvimento do país.
O controle efetuado pelo Estado sob o aspecto agrário não depende diretamente das informações sobre a titularidade, os ônus reais eventualmente existentes ou a forma e os valores das transações no comércio imobiliário, mas sim do potencial produtivo da terra, com o intuito de incentivar o desenvolvimento desse importante setor econômico, promover o assentamento de famílias em busca de sua dignidade e, também, identificar as terras não aproveitadas e desapropriá-las para fins de reforma agrária (missão do Incra).
Dessa forma, é comum um imóvel rural cadastrado no Incra ser formado por uma pluralidade de matrículas ou transcrições (ou seja, são várias propriedades rurais) ou ainda por áreas não tituladas (áreas de posse). Esse fato nunca atrapalhou os objetivos funcionais da autarquia, haja vista não serem relevantes, até então, as informações quanto à titularidade ou aos ônus reais que pesam sobre os imóveis.
Por esse motivo, o cadastro do imóvel rural nunca precisou coincidir exatamente com a propriedade rural (que é representada pela matrícula), bastando que esse “imóvel rural” a ser incluído no cadastro se encaixasse no conceito na legislação agrária.
Para o Registro de Imóveis, o que vem a ser “unidade imobiliária”?
Apesar da singela definição de bem imóvel, o Código Civil reservou vários dispositivos com potencial suficiente para esclarecer o assunto. Disciplinou com tradicional rigor os direitos reais sobre bens imóveis e condicionou a aquisição desses direitos ao prévio registro público imobiliário.
Código Civil — Lei nº 10.406/2002:
Art. 1.227 - Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (artigos 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.
O registro público imobiliário cuida essencialmente do registro dos direitos reais imobiliários, abrangendo desde o maior deles, a propriedade, aos demais direitos reais previstos em lei, como o usufruto e a hipoteca.
Código Civil — Lei nº 10.406/2002:
Art. 1.225 - São direitos reais:
I - a propriedade;
II - a superfície;
III - as servidões;
IV - o usufruto;
V - o uso;
VI - a habitação;
VII - o direito do promitente comprador do imóvel;
VIII - o penhor;
IX - a hipoteca;
X - a anticrese.
Da atenta leitura do Código Civil, extraem-se as seguintes informações:
a) bem imóvel corresponde ao solo e o que a ele se incorporar;
b) os direitos reais sobre imóveis incluem o direito de propriedade; e
c) os direitos reais são registrados no Cartório de Registro de Imóveis.
A Lei nº 6.015/73, a Lei dos Registros Públicos (LRP), complementa essas regras, estabelecendo os princípios informadores do sistema registral imobiliário e disciplinando a forma e o procedimento para o registro dos direitos reais.
Alguns de seus dispositivos são importantes para melhor compreender sua sistemática, dispostos a seguir numa ordem mais didática:
Lei dos Registros Públicos — Lei nº 6.015/73:
Art. 227 - Todo imóvel objeto de título a ser registrado deve estar matriculado no Livro nº 2 - Registro Geral - obedecido o disposto no artigo 176.
Art. 236 - Nenhum registro poderá ser feito sem que o imóvel a que se referir esteja matriculado.
Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro geral - será destinado à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no artigo 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.
§1º - A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas:
I - cada imóvel terá matrícula própria, que será aberta por ocasião do primeiro registro a ser feito na vigência desta lei;
II - são requisitos da matrícula:
3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação:
a - se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área;
b - se urbano, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, nº e de sua designação cadastral, se houver.
§§ 3º e 4º - …“imposição do georreferenciamento dos imóveis rurais”.
Esses dispositivos da Lei de Registros Públicos conduzem às seguintes conclusões:
a) todo imóvel possui uma única matrícula e toda matrícula se refere a um único imóvel (princípio da unitariedade da matrícula);
b) na matrícula deve haver a completa identificação do imóvel, que engloba uma descrição técnica que deve seguir as regras da agrimensura (princípio da especialidade objetiva); e
c) nas hipóteses legais, essa descrição técnica deve cumprir as novas regras do “georreferenciamento”.
Diante do exposto, a unidade imobiliária possui dois conceitos distintos:
a) para o Incra: unidade econômica rural, englobando áreas registradas e áreas de posse; e
b) para o Registro de Imóveis: a matrícula, ou seja, a “propriedade imobiliária” juridicamente constituída.
Afinal, qual dessas interpretações deve prevalecer?
2. A inutilidade do aspecto quantitativo de imóveis rurais
Em muitas ocasiões, houve estimativas sobre a quantidade de imóveis rurais que estariam fora do registro público. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, elaborou um projeto intitulado “Programa de Cadastro de Terras e Regularização Fundiária do Brasil”, datado de 31/5/2005, em que relata o panorama da situação fundiária do país. Nesse estudo, há uma tabela efetuada com base no cadastro do Incra, que traz a informação de que o Brasil possuía 4,56 milhões de imóveis rurais, sendo 1,5 milhão sem titulação (33% do total).
Costuma-se dizer que a matemática é uma ciência exata e que seus resultados são inquestionáveis. Neste caso em particular, o problema não está nos cálculos, mas sim no método escolhido de apuração, que falhou na definição do objeto, considerado unidade, para a geração dos resultados.
Mesmo que fosse possível definir a unidade imobiliária e até mesmo facilmente quantificado o número de imóveis, o que representaria essa estatística? que fim prático teria ela? Na verdade, nenhum.
Vamos analisar esse desacerto primeiramente sob o enfoque da produtividade rural, em que uma boa estatística é fundamental para a definição de políticas públicas. A hipótese compara dois supostos municípios de mesma área territorial (utilizando dados do IBGE) e com a mesma quantidade de imóveis rurais (utilizando os dados cadastrais do Incra).
Numa primeira análise, o Município B possui um problema bem maior que o outro município, merecendo, portanto, uma maior atenção do Governo. Entretanto, ao analisar o caso de forma mais realista, verifica-se que o problema não está no Município B, sendo de maior complexidade a situação do outro município.
O Município B tem apenas 3% de seu território rural não aproveitado, ao passo que mais da metade da área rural do outro município não está cumprindo sua função social de colaborar para o desenvolvimento do país.
A estatística apresentada no programa elaborado pelo BID diz haver 4,5 milhões de imóveis rurais no Brasil, sendo 1,5 milhão sem titulação. Como se chegou nesse total de 4,5 milhões? Se foi pelo cadastro do Incra, cuja unidade imobiliária não coincide com a matrícula (unidade titulada), como foi possível o cálculo dos imóveis sem titulação, se os titulados depende da quantidade de matrículas? Não há como utilizar um mesmo método para coisas distintas.
Além disso, é juridicamente impossível calcular a quantidade de propriedades imobiliárias não tituladas. Por não haver sua descrição no registro público imobiliário, a propriedade imobiliária inexiste, havendo apenas uma determinada extensão de terra sem reconhecimento jurídico.
Mesmo que se utilize exclusivamente o cadastro rural do Incra, que engloba terras rurais tituladas e áreas de posse, ainda assim essa estatística não é representativa. Isso ocorre por uma série de fatores que, certamente, não é culpa nem do Incra nem do registro imobiliário, mas sim o simples resultado da forma como ocorreu a colonização do país.
Muitos imóveis estão cadastrados no Incra (e no registro público) em duplicidade (em alguns casos, até em multiplicidade). A grande parte das ações judiciais de usucapião limitam-se a declarar a propriedade imobiliária em favor do posseiro sem, no entanto, definir quais títulos registrados foram afetados. Isso ocorre não necessariamente por falha do Judiciário ou omissão do posseiro, mas pela dificuldade de se determinar quais títulos e cadastros representavam aquela extensão territorial ora usucapida. Assim, tanto no registro imobiliário como no Incra, permanecem vigentes as matrículas e os cadastros anteriores, e são abertas novas matrículas e novos cadastros, como se representassem áreas distintas, mas incidentes sobre uma mesma superfície territorial.
Situação que era muito comum é a existência de uma pluralidade cadastral sobre uma mesma área. No quadro seguinte, foi demonstrada uma situação hipotética que representa a realidade constatada em vários “imóveis” do município de Bofete, da comarca de Conchas-SP, em 2003, quando assumi a delegação pública do registro imobiliário daquela comarca.
Isso sem contar a infinidade de cadastros de “frações ideais”, quantificados em hectares apesar da inexistência jurídica dessa posse certa e localizada. Se ao menos cada abertura de novo cadastro fosse acompanhada da necessária baixa (total ou parcial) do cadastro anterior, esse tratamento diferenciado da fração ideal não geraria tanto prejuízo.
Essa complexa situação ocorria não por desídia do Incra, mas pela imperfeição do sistema cadastral até então em vigor (que dependia exclusivamente da declaração espontânea dos proprietários rurais e posseiros, que nem sempre se preocupavam em atualizar seu cadastro, principalmente pela inexistência de sanções) e pela falta de pessoal e de condições financeiras para efetuar as atualizações de ofício.
No entanto, esse panorama mudou após a legislação do georreferenciamento, principalmente após a publicação do Decreto nº 5.570/2005 e dos novos atos normativos que o acompanharam. Hoje o sistema cadastral foi aperfeiçoado, a interconexão Incra-Registro é uma realidade e o Incra está sendo melhor aparelhado para o cumprimento de sua importante missão.
3. O Imóvel Rural e o Georreferenciamento – definição do marco jurídico
O georreferenciamento é uma obrigação imposta ao proprietário rural em decorrência da Lei nº 10.267/2001.
Essa Lei não existe de forma autônoma, não havendo um único artigo com efetiva vigência. Trata-se de uma lei ordinária que apenas efetuou alterações em outras leis preexistentes. Possui apenas 6 artigos, dos quais 5 efetuaram revisões em outras leis e 1 tratou da vigência (dessas alterações) a contar da publicação.
Os 5 artigos da Lei nº 10.267/2001 trataram das seguintes alterações:
a) artigo 1º: alterou a Lei nº 4.497/66 (normas gerais de direito agrário)
b) artigo 2º: alterou a Lei nº 5.868/72 (sistema nacional de cadastro rural)
c) artigo 3º: alterou a Lei nº 6.015/73 (lei dos registros públicos)
d) artigo 4º: alterou a Lei nº 6.739/79 (retificação referente a imóvel público)
e) artigo 5º: alterou a Lei nº 9.393/96 (legislação do ITR)
Analisando cada uma dessas cinco leis, somente na Lei nº 6.015/73 (LRP) é encontrada a norma impositiva para o georreferenciamento dos imóveis rurais. Tal obrigatoriedade foi inserida apenas nos artigos 176 e 225, ou seja, é a Lei dos Registros Públicos que determina o georreferenciamento do imóvel rural.
Em ambos os artigos, a referência que se faz é quanto à obrigatoriedade do georreferenciamento dos “imóveis rurais”. E aí surge a questão: o que é esse “imóvel rural” citado na LRP? Eis a necessidade de definir esse importante marco conceitual, que deverá acompanhar o programa do georreferenciamento.
Como já explicado, a LRP cuida tão somente da “propriedade imobiliária” juridicamente constituída. Toda vez que essa lei traz o termo imóvel, sua referência é a propriedade imobiliária descrita e caracterizada em uma matrícula.
Nem seria possível interpretar de forma diversa, pois não haveria como ingressar no Registro de Imóveis uma descrição envolvendo área de posse (posse não é direito real, portanto não sujeito a registro) nem uma descrição envolvendo uma pluralidade de matrículas sem que fosse efetivada (se juridicamente viável) a unificação de todas essas propriedades imobiliárias. A obrigação de georreferenciar, portanto, deve sempre resultar numa nova descrição que será inserida no corpo da matrícula do imóvel.
Analisando em conjunto as disposições do direto civil (Código Civil e LRP) com as regras do direito agrário, chega-se às seguintes conclusões:
a) o direito de propriedade refere-se ao imóvel-matrícula e não a qualquer outro conceito de imóvel eventualmente existente;
b) a legislação agrária conceitua “imóvel rural” e apenas para os fins específicos do direito agrário e não do direito de propriedade, cuja unidade imobiliária é representada pela matrícula;
c) o registro de imóveis constitui e torna público os direitos reais imobiliários e não tem competência para fiscalizar a destinação socioeconômica dos imóveis, como ocorre com o Incra;
d) o Incra cadastra e fiscaliza os imóveis sob o aspecto produtivo, visando a identificar o descumprimento da função social e a proceder a reforma agrária nas hipóteses legais.
Como o registro imobiliário cuida de “direitos reais” e não de “cadastro territorial”, a matrícula representa não necessariamente “um imóvel”, mas sim “uma propriedade imobiliária”, pois o termo “imóvel” pode incluir, como já afirmado, áreas não tituladas, enquanto que a propriedade imobiliária engloba apenas a área juridicamente titulada em favor de uma ou mais pessoas.
Dessa forma, o imóvel que deve ser georreferenciado, segundo a legislação pátria (Lei de Registros Públicos), é a “propriedade imobiliária”, ou seja, o imóvel descrito e caracterizado na matrícula do registro público imobiliário competente e não outra eventual configuração existente no cadastro do Incra (CCIR) ou no cadastro da Receita Federal (DIAC-ITR).
Qualquer trabalho georreferenciado que abranja área não adequada ao conceito jurídico de “propriedade imobiliária”, mesmo que devidamente certificada pelo Incra, não terá ingresso na matrícula, continuando o imóvel sujeito às restrições legais até o integral cumprimento da legislação do georreferenciamento.
As situações mais comuns que descaracterizam a “propriedade imobiliária”, impedindo o ingresso do levantamento georreferenciado no registro, são as seguintes:
a) inclusão de área não titulada à área registrada (ex.: parcela de área do confrontante com a sua anuência);
b) levantamento de parcela do imóvel de posse exclusiva do condômino (inexiste “fração ideal localizada”);
c) várias matrículas numa única poligonal sem que seja possível a sua fusão (ex.: titulares diferentes);
d) inclusão de área pública no levantamento (ruas, estradas, rios públicos, ferrovias, escolas).
De todas essas, a situação referente à necessária separação entre bens públicos e privados talvez seja a de maior complexidade, merecendo uma maior atenção por parte de todos os envolvidos no programa do georreferenciamento.
4. Conceito de Bem Público
O Código Civil definiu bem público no artigo 98:
Art. 98 - São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
E como observa Renan Lotufo, "cumpre salientar que essa classificação é feita não do ponto de vista dos proprietários, mas do ponto de vista do modo pelo qual se exerce o domínio sobre os bens" (Código Civil Comentado, Ed. 2003, Vol. I, pág. 251). Assim se o Estado se apodera de um imóvel e passa a utilizá-lo com finalidade pública, mesmo que o apossamento tenha sido realizado de maneira irregular, sem o consentimento dos titulares do domínio, esse bem imóvel passará a condição de bem público, pela simples destinação pública que lhe foi conferida.
Convém observar que, em se tratando de bens imóveis e seja quem for o titular, a Constituição Federal estabelece a função social da propriedade e, portanto, estará sempre presente o interesse da coletividade.
Art. 99 - São bens públicos:
I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.
A lei classificou os bens públicos em bens de uso comum, de uso especial e dominicais.
Os bens de uso comum do povo, embora pertencentes a uma entidade de direito público, em geral estão franqueados a todos como os rios e as estradas. Os bens de uso especial são aqueles que as entidades públicas destinam aos seus serviços ou a fins determinados, como os edifícios ou terrenos aplicados ao seu funcionamento. E os bens públicos dominicais são aqueles que integram o acervo da riqueza da entidade, não sendo diretamente utilizado pelo poder público ou pelo povo em geral.
Esclarecido esse ponto, falta apenas destacar que o imóvel público não necessita de registro para a constituição do direto de propriedade, principalmente os imóveis (conceito “latíssimo”) destinados ao uso comum do povo.
Assim, uma estrada que corta um imóvel passou para o domínio público automaticamente pela sua destinação. Isso independentemente de desapropriação ou de acordo formal entre Estado e particular.
Lógico que, sem a desapropriação, o Estado não terá uma matrícula em seu nome. Mas isso não dá direito ao particular em constar em seu título de propriedade um bem que não mais lhe pertence.
É direito líquido e certo do proprietário prejudicado, caso queira, o acionamento judicial do Estado, requerendo a desapropriação indireta (salvo raríssimas exceções, sem direito à restituição do bem). Esse direito de ação possui prazo prescricional de 10 anos (artigo 205 do Código Civil) ou, caso o fato tenha ocorrido mais de 10 anos antes da entrada em vigor do atual Código Civil (12/1/2003), o prazo prescricional a ser considerado é de 20 anos, conforme o artigo 2.028 da atual lei civil. O prazo vintenário do código anterior foi resultado de construção jurisprudencial sumulada pelo STJ:
Súmula 119/STJ: "a ação de desapropriação indireta prescreve em vinte anos".
Independentemente de desapropriação direta ou indireta, de acordo ou não entre Estado e particular, e mesmo de ter ou não havido a prescrição pela desapropriação indireta, o certo é que bem público (em especial “bem de uso comum do povo”) não pode estar incluído na matrícula de um imóvel privado.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 450-6/5, da Comarca de RIBEIRÃO PRETO-SP (DOE-SP, de 20/6/2006)
As áreas podem ser integradas “no domínio público, excepcionalmente, por simples destinação, que as tornam irreivindicáveis por seus primitivos proprietários. Esta transferência por destinação se opera pelo só fato da transformação da propriedade privada em via pública sem oportuna oposição do particular, independente, para tanto, de qualquer transcrição ou formalidade administrativa” (Direito Administrativo Brasileiro, Hely Lopes Meirelles, Ed. RT, 1976, p. 509).
José Cretella Júnior ensina que pela destinação, que tem sentido de afetação em direito administrativo, “o bem ou coisa muda de categoria, passando a integrar, em definitivo, o domínio público. Nessas condições, o bem afetado fica submetido a um regime jurídico público, regulando-se por princípios diversos daqueles que vigoram no campo do direito privado” (Bens Públicos, EUD, 1975, p. 124).
A área abrangida por uma estrada que cortou um imóvel particular, mesmo que não tenha havido desapropriação ou acordo com o proprietário, deverá ser excluída do levantamento da propriedade privada. A propriedade imobiliária original (uma matrícula) poderá resultar em dois ou mais imóveis (“n” matrículas), se o seu remanescente constituir áreas seccionadas, sem continuidade territorial.
1. Levantamento equivocado de 170 hectares incluindo a estrada. |
2. Área Privada: Gleba A + Gleba B = 160 ha (a estrada ocupa 10 ha). |
Estrada, rua, avenida e rodovia são bens de uso comum do povo, portanto uma modalidade de bem público, inalienável e insuscetível de usucapião. Como não necessita de registro para a constituição de sua natureza pública, mas apenas da destinação, não há como manter tais parcelas no cômputo de áreas privadas, o que resultaria em um aumento artificial da dimensão do imóvel e na total insegurança da publicidade registral.
Uma questão fica em aberto: do ponto de vista registral, para onde vão essas áreas públicas?
Não há como estabelecer uma regra que atenda satisfatoriamente a todas as situações. Nos exemplos apresentados, é possível contemplar no levantamento todas as parcelas resultantes: cada uma das glebas de propriedade privada terá uma matrícula própria em nome do particular; e a gleba com destinação pública será descrita no remanescente da matrícula-mãe ou, caso o registrador entenda ser de melhor técnica e controle, será descrita e caracterizada em matrícula própria em nome do particular com averbação esclarecendo tratar-se de área inteiramente ocupada pela via pública.
Mesmo sendo óbvia e jurídica a titularidade pública desse novo imóvel (da parcela ocupada pela estrada que interceptou o imóvel, por exemplo), não há possibilidade, pela legislação atual, da matrícula descrevendo essa estrada ser aberta diretamente em nome do Estado.
No entanto, há situações em que se torna inviável determinar com exatidão a parcela do imóvel particular que foi abrangida pela área pública. Isso ocorre nas hipóteses de imóveis com descrições precárias cuja parcela expropriada atinge vários vértices e deflexões.
1. Levantamento com mera menção à rodovia. |
2. Área efetivamente ocupada pela rodovia |
3. Missão impossível para o geomensor: |
4. Vértices da gleba D com arbitramento divergente da realidade e vértices das glebas E e F de impossível definição. |
Nesse exemplo, como a materialização dos vértices pelo geomensor é tecnicamente impossível (salvo se existente um prévio levantamento de excelente acurácia), a melhor atitude seria não arbitrar a área ocupada pela estrada, por ser imensurável o quantum da área de cada um desses imóveis foi por ela invadido.
Além disso, não se pode imputar ao proprietário rural, que teve expropriada uma parcela de seu imóvel, a difícil e onerosa função de delimitar essas áreas públicas. Não há lei que o obrigue a assim proceder e, pelo princípio constitucional da legalidade, nenhum ato normativo infralegal poderia lhe imputar tal dever.
A inviabilidade de materializar as verdadeiras divisas fica mais cristalina quando a área ocupada pelo bem público é de grande extensão e prejudica a maior parte do imóvel. Isso costuma ocorrer nas inundações para a formação das represas para captação de energia.
1. Imóvel originário com descrição registral deficiente. |
2. Cota de inundação da Represa Barra do Forte. |
3. A área pública submersa atingiu quase 60% do imóvel. |
4. Impossível definir os vértices originais, portanto inexigível o levantamento da área pública que foi originada desse imóvel. |
Independentemente de o caso concreto possibilitar ou não a apuração da área expropriada, a regra intransponível é que a propriedade imobiliária privada não pode incluir, dentro de seus limites, terras públicas. A retificação da descrição tabular do imóvel, com ou sem o georreferenciamento, é o momento ideal e essencial para fiscalizar a necessária separação dos bens públicos dos particulares.
Além disso, ignorar uma situação real, que tem incontestável amparo jurídico, significa não cumprir os preceitos e objetivos almejados pelo georreferenciamento.
O que adianta montar um poderoso cadastro com precisão milimétrica se os dados nele inseridos não conferem com a realidade? Quantas estradas e rodovias brasileiras foram regularmente desapropriadas? E dessas desapropriações regulares, quantos títulos foram efetivamente registrados?
Esperar a iniciativa do Poder Público de efetivar as desapropriações para, somente depois, excluir as estradas do imóvel particular, é simplesmente absurdo. Primeiro porque o Estado não tem condições econômicas para tais providências (quase nenhuma estrada foi regularmente desapropriada). E, segundo, porque não seria lícito efetuar pagamento de indenizações após o prazo prescricional da ação de desapropriação indireta (a grande maioria das estradas não regularizadas são anteriores à década de 80), pois o particular perdeu seu direito subjetivo de buscar a compensação financeira pelo apossamento público irregular de sua propriedade.
Tal necessidade de separar o bem público do particular não se limita apenas aos casos de expropriação do imóvel pelo poder público. Há a hipótese não menos complexa de áreas que tecnicamente nunca foram privadas, mas costumavam ser incluídas na matrícula como se pertencessem ao patrimônio particular do cidadão. Trata-se dos rios públicos, definidos como correntes navegáveis pelo Código de Águas.
5. Rios públicos e privados
Quanto aos cursos d'águas, a situação tem causado muita confusão, devido (data vênia) a uma interpretação equivocada da Constituição Federal, que diz serem as águas públicas. O IRIB também entende que a água é pública, assim como o ar que respiramos. Isso significa que o particular não pode dispor dela como quiser, devendo estar atento às regras do meio ambiente e de saneamento. Entretanto, não parece lógico que o intuito do constituinte foi estender o conceito de água aos leitos dos rios, retirando da propriedade privada todos os cursos d’água, que são essenciais para a atividade agrícola e pecuária do país.
Se essa interpretação vingasse, para excluir da propriedade privada todos os cursos d’água existentes, haveria enormes prejuízos a todos, não apenas para a regularização dos registros e cadastros, mas também pela possibilidade jurídica de qualquer um do povo querer “invadir” sítios e fazendas para, por exemplo, banhar-se nos lagos e riachos ali existentes, pois sendo propriedade pública, sua área estará fora da esfera de vigilância do particular (antigo proprietário).
Mas o que predomina hoje na Jurisprudência é o reconhecimento da vigência do Código de Águas. Neste, os cursos d’águas são divididos em públicos e particulares. Rios públicos são os navegáveis; particulares, os não navegáveis. Sobra realmente uma questão: definir o limite entre o rio navegável e o não navegável.
Sendo assim, caso o imóvel esteja seccionado por um rio navegável, o levantamento técnico deverá excluir essa área pública por completo do cômputo da área particular.
1. Levantamento equivocado de 170 hectares incluindo rio público. |
2. Correto: Gleba A + Gleba B = 160 ha (o rio ocupa 10 ha). |
Os cursos d’água não navegáveis (córregos, riachos, arroios, regatos) são privados, portanto integrantes da propriedade imobiliária particular. Portanto esse tipo de rio não é considerado um imóvel autônomo, mas um mero acidente natural integrante do imóvel privado, assim como o são a colina, o rochedo, o talvegue, a grota, o vale e a vertente.
Por não ser imóvel autônomo, também não pode ser considerado confrontação de imóveis, sendo no máximo a linha indicadora das divisas entre dois outros imóveis.
A importância desse outro marco conceitual está na necessidade de obtenção da anuência do titular do imóvel localizado além do curso d’água privado para possibilitar a retificação da descrição tabular do imóvel. Se o rio for navegável, imóvel público portanto, não haverá confrontação entre os dois imóveis particulares, haja vista a existência do rio, que passa a ser o verdadeiro confrontante desses imóveis particulares.
1. Os imóveis privados não são confrontantes entre si. |
2. Os dois imóveis se confrontam pelo centro do álveo. |
Havendo um curso d’água atravessando o imóvel ou servindo de delimitador, o geomensor primeiramente deverá analisar se o referido rio é ou não navegável, para depois definir a forma do levantamento e as confrontações existentes para a obtenção das anuências.
1. Rio não navegável:
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sendo o rio for privado, trata-se de mero acidente geográfico incluso nos imóveis pelos quais o rio passa;
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neste caso, o curso d’água não secciona juridicamente a propriedade privada, pois é dela integrante;
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estando entre dois imóveis, trata-se de mero indicador das divisas e não um confrontante autônomo;
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neste caso, deve-se obter a anuência do titular do outro imóvel.
2. Rio navegável:
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rio navegável é bem público, portanto a divisão do imóvel por ele seccionado é essencial;
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o trabalho deve ser feito numa única planta, pois a retificação refere-se ainda a uma única matrícula;
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basta a planta trazer as linhas perimetrais, marcos e medidas das duas ou mais glebas resultantes, excluindo totalmente da contagem de sua superfície o espaço ocupado pelo bem público (rio navegável e suas margens).
6. Margens dos rios públicos e o terrenos reservados
Há uma outra questão envolvendo os rios públicos, que é a definição da existência e da titularidade dos terrenos reservados, cuja divergência doutrinária se estende há várias décadas, mas com poucas manifestações jurisprudenciais, haja vista a pouca repercussão prática que havia diante das precárias descrições imobiliárias que eram aceitas no passado. Hoje, no entanto, com um maior rigor na fiscalização do cumprimento do princípio da especialidade objetiva e com a vigência da legislação do georreferenciamento, chegou o momento de fincar mais esse marco jurídico conceitual.
Pelo Código de Águas, de vigência reconhecida pelos tribunais, as margens dos rios públicos são de propriedade estatal, bens dominicais da União ou do Estado, dependendo a quem pertença o próprio rio.
Código de Águas — Decreto nº 24.643/34:
Art. 10 - O álveo será público de uso comum ou dominical conforme a propriedade das respectivas águas e será particular no caso das águas comuns ou das águas particulares.
Art. 11 - São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular:
1 - os terrenos de marinha;
2 - os terrenos reservados nas margens das correntes públicas de uso comum, bem como dos canais, lagos e lagoas da mesma espécie. Salvo quanto às correntes que, não sendo navegáveis nem flutuáveis, concorrem apenas para formar outras simplesmente flutuáveis, e não navegáveis.
Art. 13 - Constituem terrenos de marinha todos os que, banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, vão até 33 metros para a parte da terra, contados desde o ponto a que chega a preamar média. Este ponto refere-se ao estado do lugar no tempo da execução do artigo 51, parágrafo 14, da Lei de 15 de novembro de 1831.
Art. 14 - Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até à distância de 15 metros para a parte da terra, contados desde o ponto médio das enchentes ordinárias.
Portanto, confrontando o imóvel com um rio público, o levantamento técnico de seus vértices deverá respeitar a faixa de propriedade pública, ou seja, estar distante 15 metros do ponto médio das enchentes ordinárias (ou 33 metros da preamar média de 1831, se o rio estiver ao alcance das marés).
Entretanto, o caput do artigo 11 do Código de Águas traz uma importante regra:
Art. 11 - São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular…
No Brasil, o único título legítimo que constitui propriedade sobre bem imóvel é o registro público imobiliário, atualmente representado pela matrícula. Assim, se a descrição tabular do imóvel fizer menção ao rio público como confrontante, sem ressalvar a faixa de terreno reservado, esta é de propriedade particular, conforme estabelece o decreto de 1934.
As margens dos rios navegáveis são, em regra, de domínio público. No entanto, se o particular possui título legítimo de propriedade abrangendo essas áreas, tais prolongamentos das margens não são terrenos reservados, mas sim terras particulares lindeiras ao curso d’água de domínio público.
Em 2004, no Recurso Especial nº 443.370 que tratava desse assunto, a Ministra do STJ Eliana Calmon, atuando como relatora, destacou que a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo não se baseou no parecer da Capitania dos Portos, para concluir pela indenização das terras marginais ao rio Cabuçu de Cima, mas sim no fato de os proprietários possuírem título legítimo, o que afasta a aplicação da Súmula 479 do STF, segundo a qual as margens dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização.
A ministra entendeu que os expropriados, detentores de título legítimo, tinham o direito legal de propriedade, cabendo ao Estado, que expropriou a área por intermédio do Departamento de Águas e Energia do Estado de São Paulo (DAEE), arcar com as verbas indenizatórias.
Esse mesmo entendimento já havia prevalecido no RE 10.042/SP, julgado em 14/11/1950, que recebeu a seguinte ementa: “pertencem ao domínio público as margens dos rios públicos, salvo prova de concessão emanada pelo poder público.”
Em outro Recurso Especial (RE 637.726-SP – julgado em 3/3/2005), a 1ª Turma do STJ manteve o mesmo posicionamento jurídico, enfatizando expressamente um importante trecho do acórdão do tribunal paulista:
“Destaque-se, ademais, que, ainda que demonstrada a navegabilidade do rio Cabuçu de Cima, a indenização das áreas marginais não poderia ser afastada, porquanto, segundo afirmou o juízo de primeiro grau, os expropriados comprovaram a titularidade do imóvel através da matrícula nº 106.283, proveniente do 15º Cartório de Registro de Imóveis.”
Essa recente decisão demonstra claramente que, havendo na matrícula clara menção de que a propriedade imobiliária atinge as margens do rio, não há que se falar em terreno reservado, pois o próprio Código de Águas excetua de seu conceito as faixas lindeiras tituladas em nome do particular.
Ao levantar um imóvel seccionado ou confrontante de um rio público, o geomensor deverá observar se a descrição tabular exclui ou não essas áreas. A simples menção de o imóvel confrontar com o rio e a simples indicação de o rio estar no interior do imóvel são evidências claras da inexistência dos terrenos reservados.
Entretanto, se tal margem estiver com clara destinação pública, independentemente de desapropriação ou mesmo comunicação oficial, mesmo havendo título de propriedade em favor do particular, todo o espaço abrangido por essa utilização pública passou automaticamente ao patrimônio estatal, da mesma forma que ocorre com as estradas que cortaram o imóvel de forma arbitrária.
Isso pode ocorrer no seguinte exemplo: o poder público constrói e mantém um pequeno ancoradouro às margens de um rio piscoso, como forma de fomento à atividade pesqueira da região. Com a destinação pública desse espaço, o proprietário do imóvel ribeirinho, mesmo possuindo título claro em seu favor, perde o domínio dessa área, sobrando-lhe apenas o direito de ajuizar uma ação de desapropriação indireta em face do Estado, para requerer a devida indenização.
Tal situação costuma também ocorrer com as barragens para usinas hidrelétricas, em que existe um decreto expropriatório atingindo todo o solo que esteja situado abaixo de uma determinada cota, às margens do curso d´água e dos afluentes formadores dessa represa.
Nestes casos, independentemente de ter ou não havido indenização, a área abrangida pelo decreto expropriatório é pública e deve ser excluída do levantamento técnico do imóvel privado. Nos casos das represas, em especial, a anuência da empresa concessionária é fundamental para viabilizar a retificação da descrição do imóvel na matrícula.
Outro aspecto importante é a desvantagem de o Estado colocar-se como titular dessas margens estendidas. Enquanto as margens estiverem sobre o domínio do proprietário rural, este é objetivamente responsável pela conservação dessa área que, pela legislação ambiental, está inserida na A.P.P. (área de preservação permanente). Uma A.P.P. possui dimensão variável conforme a largura do rio, mas como sua faixa mínima é de 30 metros, todos os terrenos reservados estão sob proteção ambiental. Além de o Estado não ter condições de fiscalizar todas essas áreas de proteção ambiental, perderá o maior dos fiscais, o proprietário rural que, além de deixar de ser responsável pela conservação dessa faixa ribeirinha, também não terá mais o poder-dever de fiscalização, uma vez que qualquer atitude que venha a tomar contra eventuais agressores deixará de caracterizar o “desforço imediato” e, dependendo do caso, poderá até tipificar a conduta do “exercício arbitrário das próprias razões”.
Por fim, cumpre esclarecer que, mesmo que o proprietário tome a iniciativa de retificar a descrição tabular de seu imóvel, que resultará na exclusão da área pública irregularmente constituída, ele não perde seu direito de ação em face do Estado, caso esta ainda não esteja prescrita. A nova descrição tabular do imóvel omitiu tal área por força do ordenamento jurídico que impede a inclusão de área pública em área privada, não tendo essa “providência compulsória” o caráter de renúncia aos direitos garantidos pela legislação pátria. Além disso, a antiga descrição tabular existente na matrícula ou transcrição anterior continuará escriturada no registro imobiliário, como uma prova perpétua dotada de fé pública juris tantum da existência desse título de propriedade que inclui as áreas invadidas de forma indevida pelo poder público.
Conclusão
A exata compreensão do marco jurídico da “unidade imobiliária” como sendo a “propriedade imobiliária descrita na matrícula” (ou conjunto de matrículas, se for possível a sua fusão) é de suma importância para o sucesso do programa do georreferenciamento. Se isso não for estritamente observado pelos executores do sistema, todo o árduo e dispendioso trabalho será em vão, pois este não resultará no ingresso da nova descrição georreferenciada na matrícula do imóvel e, conseqüentemente, o imóvel continuará sujeito às duras restrições legais dos §§ 4º e 5º do artigo 176 da Lei dos Registros Públicos (proibição para desmembrar, parcelar, remembrar e transferir o imóvel rural).
É o parecer.