Faixa de Fronteira - Penhor Rural de Ativo Florestal
Eduardo Augusto
SITUAÇÃO
Registro de penhor rural (agrícola) no Livro 3 do Registro de Imóveis; objeto do penhor: madeira de corte (floresta em fase crescimento); imóvel em Faixa de Fronteira; credor pignoratício: empresa brasileira sob controle estrangeiro.
1) Conceito de bem imóvel
O artigo 79 do Código Civil define o conceito de bem imóvel, que engloba o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.
Por esse conceito, um imóvel rural hipotético é composto pelo um conjunto formado pelos seguintes itens (cada um com seus respectivos valores):
pela terra nua (uma área de 20 hectares)
pela plantação nela existente (10 hectares de eucalipto + 2 hectares de soja)
pela floresta nativa (1 hectare de mata virgem na APP às margens de um córrego)
pelas construções (1 paiol, 1 silo, 1 casa sede e 1 piscina)
Se esse imóvel for alienado, o adquirente integrará ao seu patrimônio todos esses itens, ou seja, “o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”. Portanto, o valor do negócio jurídico abrange todo esse conjunto e não apenas o da terra nua.
2) Alienação de imóvel com ativo florestal
As empresas que atuam com ativo florestal costumam adquirir imóveis com tais culturas dividindo o contrato em duas partes: uma para a aquisição da terra nua e outra para a aquisição do ativo florestal.
O intuito é bastante claro: pagar menos ITBI (imposto sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a ele relativos, de competência municipal). O argumento dessas empresas é que se trata de simples "elisão fiscal" (opção pela forma que gera menos tributo a pagar).
No entanto, no ponto de vista do poder tributante (e, no fundo, da própria lei), trata-se de sonegação fiscal, haja vista que a divisão do negócio jurídico em dois contratos configura um negócio simulado com o evidente intuito de "evasão fiscal".
Não há dúvida de que o fato gerador do ITBI é a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis, por natureza ou por acessão física. São bens imóveis por natureza o solo e tudo aquilo que lhe incorporar naturalmente ou artificialmente. Nesse conceito, entram o solo, o subsolo, as árvores enquanto não separadas do solo, os frutos pendentes, as construções e o espaço aéreo.
No entanto, na hipótese de se alienar o imóvel (o bem de raiz), o ITBI incidirá não apenas sobre os valores da terra nua, mas também sobre os valores da construção existente (que pode até vir a ser demolida e ter suas partes reaproveitadas pelo seu novo titular) e sobre os valores de uma floresta de eucaliptos nele existente (que, um dia, será cortada e comercializada como madeiramento), pois ambos são acessões e, segundo o cristalino mandamento constitucional (CF/88, artigo 156, inciso II) , integram a base de cálculo do tributo.
Além disso, uma floresta de eucaliptos não se resume apenas a uma certa quantidade de madeira. Isso porque uma cepa de eucalipto (parte da árvore que fica viva no solo, após o corte de seu caule) produz de 2 a 3 rebrotas, ou seja, uma mesma plantação de eucalipto permite de 3 a 4 colheitas de madeira (ciclo médio de 6 anos); portanto, quem adquirir o imóvel adquire não apenas o futuro bem móvel “madeira de corte” (a próxima colheita), mas também a sua cepa (sempre fixa ao solo; portanto, bem imóvel por acessão), que permitirá a quem for o titular do direito real de propriedade a colheita de muitos frutos nos próximos 24 anos. Portanto, mesmo que a madeira tivesse já tivesse sido cortada, isso não diminuiria o valor do imóvel, que inclui o valor da cultura florestal.
3) Alienação do ativo florestal
O objeto de um negócio jurídico deve ser lícito, possível e determinável. Portanto, não precisa ser determinado no momento da realização do contrato, mas deve ser determinável no momento de sua execução. Nos contratos aleatórios, a determinação do objeto é postergada a um momento futuro, havendo neste caso uma incerteza sobre a possibilidade ou não de determinação, haja vista o risco ser da essência dessa espécie de contrato.
Um exemplo é a aquisição de safra futura, contrato muito comum envolvendo usinas de álcool e açúcar com o produtor de cana-de-açúcar. O preço costuma ser fixado por hectare de plantação, apesar de haver o risco de parte da safra ser prejudicada em decorrência de infortúnios climáticos ou de outra natureza. Isso ocorre também com a aquisição de ativo florestal (madeira de corte).
Portanto, o objeto desse contrato é a “madeira” que, num momento futuro, será separada do solo, caso tal floresta ainda exista. O objeto desse contrato de risco é a “madeira separada do solo”, classificada pela lei como bem móvel.
Conforme vários acórdãos, a alienação pura e simples da madeira, mesmo quando feita por antecipação (enquanto as árvores ainda estão ligadas ao solo), não configura, por si só, o fato gerador do ITBI. Da mesma forma, também não incide ITBI a venda de material de demolição (telhas, portas, janelas, tijolos, madeiramento) retirado de uma construção existente num determinado imóvel, mesmo que o contrato seja feito antes de essa construção ser efetivamente demolida.
Trata-se de situação diversa da alienação do bem de raiz, que leva consigo as acessões (o valor engloba o solo e suas acessões; incide ITBI); mas a venda das acessões não acarreta da alienação do imóvel, pois “accessio cedat principali” (o acessório segue o principal), mas o principal (o imóvel) não segue o destino de suas acessões (a madeira que será extraída da plantação de eucalipto).
Portanto, a alienação de safra futura, plantada em imóvel rural localizado na Faixa de Fronteira, a empresa de capital estrangeiro não configura fato gerador da exigência do prévio assentamento do Conselho de Defesa Nacional.
4) Penhor de ativo florestal
Dos direitos reais, é a propriedade o seu ápice, em que o titular possui a amplitude máxima dos poderes inerentes a um determinado bem (“plena in re potestas”).
A propriedade possui o atributo da elasticidade, composto pelos fenômenos do desmembramento e da consolidação, pois todos os demais direitos reais são dela derivados e, ao serem constituídos, carregam consigo parcelas de poder do domínio, sem contudo desconfigurá-lo.
Pelo fenômeno do desmembramento, alguns poderes ou utilidades do direito de propriedade são destacados e utilizados para a constituição do novo direito real, ou seja, parte dos poderes é transferida para a constituição do direito real derivado, permanecendo o remanescente no domínio.
O penhor é um direito real derivado do direito de propriedade, ou seja, trata-se de um direito menor, que nasceu vocacionado à extinção, pois a sua existência só se justifica para atender a uma situação transitória e especial (garantir o negócio jurídico principal). Portanto, todos os poderes e faculdades transferidas na constituição desse direito real derivado, quando da extinção, retornam ao conjunto original, tornando plena a propriedade (fenômeno da consolidação).
Portanto, apesar de propriedade e penhor serem direitos reais, o penhor é uma mera derivação daquela, tendo, portanto, uma valoração menos acentuada.
Diante do exposto, conclui-se que, se a aquisição da propriedade de ativo florestal não se enquadra nas regras restritivas da legislação que trata de Faixa de Fronteira e de estrangeiros, não haveria lógica nenhuma interpretar que sobre o penhor incidiria essa obrigação.
5) Incidência da Lei sobre Faixa de Fronteira
O objeto desses contratos (de alienação ou garantia) não é o bem imóvel, mas sim um bem móvel, a "madeira de corte", a qual pode ainda não existir mas já é determinável, sem que isso desconfigure a natureza de seu objeto. O objeto do negócio jurídico não é o que existe hoje (a floresta plantada), mas o que existirá no momento do corte das árvores (toras de madeira).
É o mesmo que ocorre na encomenda de um bolo de aniversário. O objeto do contrato, entre o cliente e a confeitaria, é o bolo. Apesar de tal bolo ainda não ter sido confeccionado (ele ainda não existe), o objeto do contrato continua sendo um bolo e não os ingredientes que estão separados na cozinha para a sua futura confecção.
A legislação sobre Faixa de Fronteira impõe restrições apenas às seguintes hipóteses envolvendo imóvel rural e estrangeiros:
transações com imóvel rural, que impliquem a obtenção, por estrangeiro, do domínio, da posse ou de qualquer direito real sobre o imóvel (Lei nº 6.634/1979, art. 2º, V);
participação, a qualquer título, de estrangeiro, pessoa natural ou jurídica, em pessoa jurídica que seja titular de direito real sobre imóvel rural (Lei nº 6.634/1979, art. 2º, VI); e
negócios jurídicos que, direta ou indiretamente, implicarem obtenção da posse, do domínio ou de qualquer outro direito real sobre imóvel rural situado na Faixa de Fronteira (Decreto nº 85.064/80, art. 29).
Resumindo, a legislação impõe restrições apenas para as seguintes situações jurídicas incidentes sobre imóvel rural:
domínio (aquisição da propriedade);
qualquer outro direito real (hipoteca, usufruto, servidão, etc.); e
posse (comodato, arrendamento, locação).
O objeto do penhor é bem móvel, tanto que o Código Civil dispõe que a constituição dessa garantia ocorre com a efetiva transferência da posse do bem ao credor (artigo 1.431). No entanto, para que tal direito real de garantia não esvazie demais o direito matriz (que é o direito da propriedade) e para viabilizar a utilização de bens cuja determinação é postergada a um momento futuro (contratos aleatórios), a lei prevê que, nas hipóteses de penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar.
Conclusão
O objeto de garantia do penhor agrícola é a madeira (que será cortada após o crescimento da floresta), bem classificado pela lei como bem móvel; portanto, essa espécie de contrato não configura nenhuma das hipóteses restritivas da Lei nº 6.634/1979 (Lei sobre Faixa de Fronteira).
Eduardo Augusto
Diretor de Assuntos Agrários do IRIB
Registrador Imobiliário em Conchas-SP
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