Inexatidões, Retificações e Cancelamento de Registro
Ricardo Dip
1. Considerando a circunstância de que esta minha pequena comunicação — sob o título "Inexatidões, Retificações e Cancelamento de Registro" — se inclui na pauta de um simpósio internacional de registro imobiliário, parece-me convir aqui adotar uma perspectiva menos limitada pela situação jurídica local; não estou a referir-me só à situação normativa mas também à da chamada "justiça registral" paulista, cujo vulto histórico, de toda sorte, é justo sublinhar, realça não apenas na tarefa de problematização das questões registrárias, mas também na de indicação de suas adequadas soluções: a história da ciência do registro imobiliário no Brasil não se pode lealmente escrever sem o arrolamento dos que — juízes, advogados, promotores de justiça, registradores e notários — deram forte contributo na Justiça de São Paulo para a cientifização e autonomia do direito registral imobiliário em nosso País. Em todo caso, ainda que vincado nessa angulação mais ampla, não é aqui de meu intento desconsiderar alguns temas que se foram propiciando ao largo do tempo desde a riquíssima casuística da nossa "justiça registral"; podem esse temas situar-se no nível de uma teoria geral do registro público sem perder sua referência aos condicionamentos externos, de modo que minhas ligeiras incursões doutrinárias conservem ainda, no fim de contas, uma função prático-prática derradeira.
2. O termo verbal retificar provém: ou (a) do indo-europeu reg — mover em linha reta; daí o latim rego — dirigir, governar; dirigo: pôr em linha reta; derectus. E também o grego rexia — tender, fazer esforços para alcançar —, de que decorrem, p.ex., anorexia, cinorexia, poliorexia; ou (b) do indo-europeu dhe — pôr, arrumar —, que deu origem ao latim rectum. Não deixa de ser logo interpelante a circunstância, aqui tomada por mera ilustração, de que a palavra hipoteca, de intermediação grega, também derive do indo-europeu dhe (como sufixo seguido de k), a que prontamente vêm ajuntar-se outros vocábulos de mesma origem: biblioteca, hemeroteca, apoteca. Nessa mesma trilha, agora com intermediação latina, surgem termos como classificar e codificar.
Duas idéias sugerem-se de pronto à raiz do termo retificação: são a de variedade ou pluralidade (biblioteca, apoteca, hemeroteca) e de unidade (classificar, codificar). Dar unidade à variedade — agregando-se os conceitos — é o mesmo que ordenar. Por isso, retificar é, em um certo sentido, ordenar, que é o mesmo que tornar reto; mas, tornar reto no sentido de um objetivo: é para este que tende a retidão; é também esse objetivo ou fim o que formula um critério e uma metódica. Só mediante um fim a que se tenda é possível ordenar ou retificar a variedade das coisas, segundo um caminho percorrido criteriosamente — ou acaso melhor dito: criticamente. Nossa primeira tarefa deve ser aqui a de apontar o fim, o critério e a metódica da retificação do registro imobiliário.
Conforme se trate de umas ou de outras coisas, a ordem — ou a retidão em algo e para algo — pode variar. Também relativamente a mesmas coisas, conforme o critério ou o fim que se adotem, a retidão ou ordem a seguir pode levar a resultado diverso.
Na Ética, fala-se em retificação de conduta. Essa mesma expressão pode ser empregada, p.ex., no domínio esportivo: retificar a conduta de um atleta que não tem habilidade suficiente. Mas retificar a conduta, na Ética, é referi-la a seu fim prático (i.e., o bem moral). Já retificar uma conduta esportiva é ordená-la a seu fim próprio, que não é o da praxis, mas o da poiesis, o do facere. ¿Que coisa é retificar uma conduta jurídica? É referi-la a seu fim próprio: o justo, que é o bem ético, mas com uma reduplicação: esse mesmo bem moral enquanto jurídico, i.e., enquanto realiza o bem, não qualquer, mas o devido a outrem ou evita o mal, não qualquer, mas o nocivo a outrem.
Retificar o registro é torná-lo reto, é ordená-lo a um fim. Mas ¿que fim se busca mediante a retificação do registro? Por certo um bem — e, se se trata de um registro jurídico —, de um bem jurídico. Ora, os bens jurídicos assim se constituem por uma de duas razões fundamentais: ou pela natureza das coisas — e aqui se abre o amplo campo da lei natural e do direito natural (direito natural que é uma coisa, é res, a res justa, a coisa justa, ela mesma, não regra alguma a seu respeito) — ou por uma determinação pública (lei humana não meramente declarativa da lei natural) ou privada (um acordo de vontades).
O registro jurídico, enquanto instituição, ainda que possa entender-se reclamável de modo remoto pela natureza mesma das coisas, não se impõe diretamente por esta. Nem resulta, de maneira direta, de um convênio particular, senão que advém da lei humana determinativa. E, pois, se é o arbítrio humano que o institui, é ele quem lhe traça a disciplina, os fins adequados — suposto racionalmente ordenados às necessidades que levaram à instituição — e os meios de alcançá-los.
É certo que ainda a lei humana determinativa deve guardar respeito à natureza das coisas, e mais ainda que, uma vez instituído o registro público, há certo gênero de coisas que nele ou por ele não se constituem, porque, antes, foram coisas que lhe ensejaram a constituição. O que significa dizer que há princípios pressupostos no registro, que o antecedem e não são criação legislativa. Uma vez que esses princípios sejam reconhecidos e atuados, a instituição existe como tal. Um exemplo: um registro público não pode ser sigiloso, nem pode deixar de registrar: algo assim que seja um "arquivo privado e secreto" pode decerto existir — cada um de nós tem alguma espécie desse arquivo em casa — e não falta que alguém o designe ou queira designar por "registro público", mas isto não o será, porque não é registro e não é público. E pouco importa que o Estado o denomine registro público: não o será, ressalvada uma revolução verbal ou anarquia terminológica. O problema não se soluciona por meio de uma fala superior ou inferior, mas, objetivamente, pela coisa mesma.
Se, aprofundando um pouco, retomamos a idéia de que o registro responde — ontológica e historicamente — a uma necessidade social, logo vemos que o registro não é um fim em si mesmo, senão que um meio de atender a essa necessidade. Ora, isso nos leva a pensar que a retificação do registro não se dirige a satisfazer o próprio registro — seu fim ou bem não é o registro — mas a satisfazer a necessidade, objetivo ou bem a que se dirige o registro.
Se, por outro lado, considerarmos que o registro jurídico é uma instituição destinada a formalizar ou a representar certas coisas que estavam de algum modo fora do registro, poderemos ver que essas duas vertentes de um mesmo fim — nem sempre em convivência pacífica — se agregam como disciplina para tornar reto um registro torto. O registro está em busca do que é certo — isso quer dizer "do que é reto". Mas o certo e reto do registro, que podemos designar por seguro jurídico, id quod certum est — se obtém exclusivamente com metódica formal. Não é que o registro não tenha por escopo a realização do que é justo, mas é que o seu justo está conformado pela certeza ou, melhor dito, pela segurança jurídica (uma objetivação), e esse certo é, por assim dizer, uma regra do jogo. Não deve haver exceções às regras de um jogo. Porque elas formam, elas dão forma a umas tantas coisas e alguma vez as representam já formadas, coisas que não podem ficar entregues a persistentes proposições de eqüidade. O juiz busca o quod justum est — dobra a regra de chumbo para amoldá-la ao caso; desvenda em cada caso, seu prius metodológico, o mistério de seu próprio e irrepetível justo; reconhece essa coisa (a res justa) em cada caso, compreendendo-a segundo sua matéria e sua forma; depois, compreende a normativa; for fim, interpreta, fazendo a mediação de norma e caso. O registrador, não: ele busca o quod certum est, ocupando-se em cada caso não de matéria e forma, senão que somente da forma pela qual se pauta.
Mas a ocupação com a forma não é o mesmo que formularismo. O registro atualiza uma existência — suposta a matéria a formalizar — ou, quando menos, representa o já existente fora e antes da inscrição. Numa ou noutra dessas situações — formalização e representação —, a forma se aprecia numa perspectiva existencial e não ao modo de uma forma hipostasiada centrável em si própria. Em alguns casos, a coisa jurídica não existe antes da inscrição: à matéria, causa ou título inere uma forma, que é o próprio registro, e só a partir dessa inscrição constitutiva e em razão dela é que a coisa adquire existência jurídica: forma-a o registro, aplicando-se a uma causa antecedente. Atualiza uma potência. Noutros supostos, é bem verdade, o registro não opera como forma, senão que se acrescenta, à maneira de um acidente, para conferir certos predicados, p.ex., o de disponibilidade nas inscrições declarativas, ou o de simples difusão com efeitos provativos, nas de mera notícia. Sempre, nessas duas situações, contudo, há uma coisa jurídica a estimar pelo registro, seja para constituí-la, seja para declará-la ou noticiá-la, de tal modo que essa coisa limita a expressão do registro. É seu critério, é seu sinal discriminador. Um critério, ao que se percebe, tanto dirigido ao plano epistêmico — a busca de um dado objeto de conceito —, quanto ao plano da expressão, porque, inevitavelmente, exige um logos externo, i.e., a palavra exterior.
3. Uma reunião redutiva de todas essas idéias, terminaria por levar-nos à conclusão sumária de que a ordenação ou retificação do registro se dá tanto no plexo da apreensão, quanto no da expressão, dentro em limites formais, de uma coisa que, ao menos de comum, realidade extrarregistral, antecede o ato inscritivo. Desse modo, poder-se-ia cogitar:
· primeiro, de uma inexatidão lato sensu não propriamente no produto da apreensão — o que seria impossível conceber, porque o conceito, por definição, não é apofântico —, mas no juízo integrado por uma defectiva percepção da coisa; a deficiência perceptiva atinge a primeira operação intelectual mas o falso lógico se projeta, por definição, sobre a atividade judicativa e o juízo que dela resulta,
· segundo, de uma inexatidão, ainda lato sensu, da expressão registrária da coisa jurídica; o que, freqüentemente, se dá como ressonância de um erro na esfera do logos interior; mas não sempre: cabe destacar que, adotada a técnica da inscrição ou extratação — é o caso do Brasil —, o registrador não é um amanuense, ele cria as inscrições, resumindo em vez de copiar integralmente o título; nessa tarefa, pode o registrador incorrer num equívoco de percepção do actum, repercutível na expressão do registro, ou diversamente num engano quanto ao mero dictum, a configurar propriamente o "erro registral",
· terceiro, de uma inexatidão quanto à metódica ou os limites formais. Aqui, para além dos erros procedimentais, inclusivos de uma usurpação de competência (p.ex., algumas retificações cartorárias dos enunciados referentes às medidas de contorno e de área), caberia salientar a problemática "justicialização" de critérios hermenêuticos, em que se projeta um escopo de buscar a realização da res justa e não, como se exige do registro, somente da res certa — que é, por assim dizer, um justo concreto estatístico, uma res justa ut in pluribus, meta de todo direito formal.
A retificação do registro, prossegue-se, não se acha limitada a ser mera notícia ou denúncia de inexatidões registrárias. Não lhe basta advertir o lapso compreensivo, expressivo ou procedimental, mas se exige dela tornar reto ou ordenar o registro, emendando o erro — o que ora é mera extirpação de dados (retificação negativa: o cancelamento simples), ora é aditamento de indicações (retificação positiva), ora um e outra coisa (retificação mista).
Tanto a inexatidão — que se diz lato sensu, por aqui englobar, numa simplificação cômoda de linguagem, a discordância registral (dissonância superveniente ao registro) e o erro registrário (lapso da atividade própria do registrador), sendo a inexatidão em sentido estrito o equívoco proveniente do título inscritível —, repete-se: tanto a inexatidão lato sensu, quanto sua retificação, são relacionáveis à idéia de verdade. Se bem que o escopo de veracidade — ou acaso melhor: de verificação — seja registrariamente limitado ao plano da forma e ao fim da segurança jurídica, é certo que o registro está voltado a formalizar ou a representar a verdade das coisas: a verdade é o critério das retificações registrais.
Há uma impropriedade nas afirmações redutoras de que o registro se contenta em especular — ou resguardar — uma verdade que lhe é externa. A despeito da freqüência de fato dessa redução conceitual, o registro não está somente voltado ao fim da verdade extrarregistrária mas também ao dever de observar a verdade endorregistral: pense-se, p.ex., numa verdade que é tipicamente tabular, assim a da ordem cronológica de apresentação dos títulos, verdade interna ao registro. Uma e outra, se maltratadas, viabilizam a retificação registrária.
A lei brasileira, a esse propósito, é muito gráfica: o art. 860 do Cód. Civ. prevê que cabe ao prejudicado reclamar a retificação do registro, se este último "não exprimir a verdade". É o que rediz o art. 212 da vigente Lei brasileira de Registros Públicos (Lei 6.015/73): "Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o prejudicado reclamar uma retificação…". E o art. 213 dessa última Lei mencionada reza que "poderá ser retificado o erro constante do registro". Narciso Orlandi Neto, que entre nós escreveu, a meu ver, a melhor obra sobre a retificação de registro imobiliário, nela frisou — e eu aqui a propósito o invoco para sublinhar o papel da tradição — que outras leis registrárias brasileiras também se importaram da verdade como critério da retificação.
Uma verdade endorregistral — que consiste em evitar a inexatidão da metódica da inscrição, num plano assim vistosamente formal ou procedimental — e uma verdade extrarregistral, seja ao nível do objeto do conceito, seja quanto à expressão. Esse é o vasto campo crítico, objetivo e expressivo para as retificações registrais. Vem aqui ao caso consignar duas ligeiras observações, à luz da realidade local, acerca do inevitável dever de o registro respeitar a verdade das coisas.
A primeira observação diz com o risco de um quebrantamento da verdade em favor da aparência. Tem-se notícia de que metamorfoses cirúrgicas envolvendo a aparência genital têm propiciado averbações de mudança de sexo: mutilações castrativas e incorporações de falsos órgãos sexuais são fatos; que se queira admiti-los inscritíveis, vá lá, conceda-se; que, mais além, se permita a averbação anticientífica de que a castração e o simulacro de novos órgãos genitais levem à mudança de sexo, isto é desservir à verdade, é maltratá-la. Sobre esse cultivo da aparência incorrer ademais numa inexatidão de forma — porque não se inscreve aí um fato mas uma suposta situação jurídica, e situações jurídicas não são objeto de inscrição mas somente de publicidade —, calha que, não raro, se propiciem curiosas ressonâncias de semelhante erro: ¡averba-se nos registros de nascimento de filhos de transexuais a falsa modificação de sexo de um de seus genitores! Assim, Semprônia passa a ser filha de Tício I e de Tício II. Mas disso aqui não tratarei mais a fundo, por ser mais adequadamente matéria do registro civil das pessoas naturais.
A segunda projetada observação diz respeito ao relacionamento entre a retificação registral — cujo critério é a verdade — e a legitimação tabular. Admitir a fé pública registral stricto sensu ou a legitimação registrária é um problema decisivamente normativo, ainda que influído da tradição. No direito brasileiro vigente, propende a doutrina — de modo estendido — a sufragar o entendimento de que se adotou o princípio da legitimação registral (arts. 859 e 860, Cód.Civ., e art. 252, Lei n. 6.015/73).
Significa dizer que o assento registrário se presume integral (aspecto negativo) e exato (aspecto positivo). É presumidamente integral, porque não omite nenhum dado que nele deveria obrigatoriamente constar; e é presumidamente exato, porque nele nada se enuncia em dissonância com a realidade. A só previsão da possibilidade retificadora do registro conduz a cogitar do ataque à presunção de sua integralidade e exatidão. E aqui se põe um tema interessante, porque a presunção relativa que pareceria anunciar-se como condicional no caput do art. 860, Cód. Civ. brasileiro, de conseguinte induziria à admissão simplex da prova em contrário do enunciado registral. Se, entretanto, se conjugam as previsões dos arts. 533 e 860, par. ún., do mesmo Código, verifica-se que o sistema brasileiro adotou uma presunção registral intermédia de integralidade e exatidão. Intermédia entre a fé pública e a mera presunção condicional; intermédia, porque admite a prova em contrário ao enunciado tabular, mas resguarda o efeito dessa prova a um certo modo, qual o do cancelamento do registro. É o que se lê também no art. 252 da Lei n. 6.015/73: "O registro, enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais, ainda que por, outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido".
A essa restrição modal do ataque à presunção registrária ou, em outros termos, a essa limitação da consideração jurídico-registral da verdade concorre um outro limite epistêmico: a decisão registrária ambienta-se em seu mundo, de maneira similar ao que ocorre com o juiz que, enquanto tal, somente aprecia e decide o que se encontra nos autos — quod non est in acta, non est in mundo. Ao registrador, enquanto tal, se oferece o limitado mundo tabular, ainda que também habitado por títulos pendentes de inscrição: quod non est in tabula et in instrumenta, non est in mundo.
Casos há em que o registrador e alguma vez, com ele ou contra ele, o juiz em função administrativa, se deixam conduzir por uma tendência, muito sedutora, de suplantar obstáculos de forma para ampliar os lindes do mundo registrário. O pretexto, como isto é de uma tópica já conhecida, é o da vaga realização da justiça. Ora é uma verificação de campo — que afiança inexistir rua implantada onde uma prefeitura diz que há, ou que assinala um edifício em construção onde diz o título haver terreno inedificado que se aliena em frações ideais; ora ainda é uma inclinação de eqüidade corretiva — o título de um foi prenotado antes do de outro, mas se o último, teme-se, foi ludibriado pelo vendedor, pois que se inverta a ordem da prenotação… Não se percebe que esse senso difuso de justiça informal é a forma de uma injustiça: conduz à administrativização de um campo que é só propício à jurisdição contenciosa, para além de consistir em maltrato da legalidade estrita.
4. Vem de molde referir essa legalidade estrita que é um subprincípio muito próximo da segurança jurídica e que traduz garantias sobretudo por meio de textualizações. Primeiramente as textualizações normativas, por certo, que, quando objeto de reserva de fonte legiferante, não podem ser emendadas na via administrativa, incluso a administrativo-judicial. Mas, além dessa referência mais vistosa à textualização normativa, é no terreno das retificações registrais muito freqüente o tema das textualizações indicativas, de marcada importância para a determinação e a especialização tabulares.
Muito se criticou outrora — e com quanta lástima eu próprio e com justos motivos me senti referido — o hermetismo da linguagem jurídica no ambiente registral. A aspiração de sintetizar argumentos e até mesmo de elaborar uma tópica jusregistrária conduziu a um idioma um tanto cifrado, em que a textualização sintética escondia uma panóplia de indicações doutrinárias e dogmáticas, gerando intrincados mistérios e inevitáveis surpresas no debate de casos. Toda linguagem textualizante é, de algum modo, uma linguagem de seu tempo. Profana ou científica, técnica ou literária, ela não pode ter a pretensão de ser a linguagem definitiva. Certamente enunciar lindes prediais com a menção de figueiras e pequenos cursos d’água, valas ou espigões é muito menos preciso do que relacioná-los a lastros mais permanentes e referi-los a medidas geodésicas. Sem embargo, imóveis ainda determinados e especializados, embora segundo a linguagem de seu tempo, não reclamam a providência — que se poderia designar tecnocrática — de revestir-se de uma ultra-avançada textualização técnica que, para além de pouca vantagem representar de fato para a estática e a dinâmica do registro imobiliário, se apóia na ilusória crença de que se está a implantar uma linguagem definitiva. Tem-se notícia de que alguns eloqüentes técnicos dessa novilíngua geodésica dizem que errôneas todas as descrições imobiliárias que não atendam ao perfil da nova linguagem: e sobre dar-se azo, pois, a retificações de registro, com dispêndio de tempo e de custo, delas resultam de pronto uma descrição acaso geodesicamente muito bem acabada, mas que, ao final, não permitem a nenhum pobre profano, desses que não dominam a nova linguagem sectária, saber onde se encontra o diabo do imóvel descrito. A antiga figueira (li outro dia que não era de fato macieira), a antiga figueira, que uma vez já esteve no centro do Paraíso, até que, desfigurada ou pelo que sobrou de sua memória ou de suas raízes, pode ainda, com um pouco de sorte, ser reconhecida pelos que descendemos de Adão, mas olhar com olhos de comprador e descobrir azimutes num imóvel, ponha-se mistério nisso: parece mais numinoso do que achar a árvore do bem e do mal. Permitam-me dizer que o fomento das retificações de descrição predial pode ser vantajoso para a nova classe dos peritos que dominam a novilíngua — seguramente que o é —, mas não menos seguramente malfere o caráter gráfico das matrículas e arrasta ao clandestinismo imobiliário.
5. Há pouco referi-me à tópica jusregistral, em muito devida à justiça registrária de São Paulo. Nessa tópica, que tem suas virtudes, se foram alistando, com diversa graduação valorativa, vários enunciados que, de algum modo, se relacionam com a retificação de registro, e três deles, a meu ver, poderiam ser aqui sumariamente tratados, até porque se, em parte, o valor da tópica deve ser aferido com a pontualização de cada caso, noutra parte ela deve guardar uma verificação teórica plausível — se não mesmo irrefutável. O que me parece curioso advertir é que esses três enunciados não são verificáveis no sistema registral imobiliário vigente no Brasil. Quero dizer de logo que não me julgo imune de ter incorrido na elaboração e no uso desses enunciados tópicos, mas o reato da culpa não me obriga à reiteração.
Propus-me cuidar de três proposições tópicas: primeira, a de que o registro de imóveis é, no Brasil, um sistema em que se inscrevem direitos reais, incluso de modo constitutivo; segunda, a de que dúvida do registro imobiliário não autoriza nenhuma retificação de registro; terceira, a de que o processo ou procedimento de retificação do registro predial é de natureza contenciosa ou de jurisdição voluntária. Antecipando algumas conclusões, o primeiro desses enunciados, a meu ver, apresenta dúplice falsidade. O segundo, isto o julgo, é falso em algum suposto. O terceiro, permitam-me assim entender, envolve uma divisão incompleta.
Não é verdade, quero acreditar, que, no direito brasileiro posto, o registro de imóveis seja, ponto e basta, um sistema destinado à inscrição (incluso constitutiva) de direitos reais. Essa proposição tópica, muito empregada para rechaçar pretensões inscritivas referentes a direitos pessoais, malfere primeiramente a circunstância de que o sistema registral imobiliário brasileiro, tendencialmente voltado aos direitos reais, alberga normativamente a inscrição de fatos relativos a direitos pessoais (p.ex., locação). Esse equívoco na proposição sob exame é muito visível, mas o outro erro, menos ostensivo, provoca reflexos práticos ruinosos: a verdade é que não há inscrição constitutiva de direitos reais no sistema predial brasileiro. O objeto da inscrição constitutiva — é da inscrição que se está a falar — são fatos jurídicos acaso propícios a constituir direitos reais, mas não é nenhum direito que se inscreve de modo constitutivo. Com o registro o fato inscreve-se, e o que com o registro se publica não é o fato mas a situação jurídica que com ele se relaciona. Dessa versada imprecisão tópica nasceu um dos fundamentos da tese de exaustividade dos atos registráveis na Lei n. 6.015. E é mesmo coerente que, a partir do equívoco de considerar o direito real objeto da inscrição — e seu objeto exclusivo, para mais —, se extraísse da técnica do numerus clausus desses direitos reais o corolário óbvio da lista cerrada dos atos registráveis. Bastaria ver, porém, que os fatos constitutivos dos direitos reais imobiliários — fatos eles todos, em princípio, inscritíveis — são de natureza obrigacional, para concluir por seu número aberto, e, logo, pela exemplificatividade dos atos submetíveis a registro stricto sensu na Lei brasileira.
Já com ressonância procedimental, afirma-se, noutro enunciado tópico, que o procedimento de dúvida do registro imobiliário não se compagina com o escopo da retificação registral. Que não se compadeça a dúvida com um certo número de pleitos retificadores, concede-se. Mas que a dúvida não comporte soluções de retificação de registro, isso não é verdadeiro: bastaria ver os casos em que a pretensão tabular resistida se refere a inscrições declarativas (p.ex., de partilha). Improcedente que se julgue a dúvida, o registro seguinte implicará uma retificação: se o efeito da inscrição declarativa não é o de dar forma para constituir o direito real, o objeto da declaração retifica a publicidade de uma situação jurídica já dissonante com a realidade anterior.
Por fim, o terceiro referido enunciado tópico é, num certo sentido, mais interpelante, porque, em rigor, não há a seu respeito, por agora, uma solução incontroversa. Trata-se, porém, de desvendar não só a natureza possível in abstracto das pretensões de retificação de registro — e neste passo, a meu ver, a divisão constante da proposição tópica é incompleta —, mas também de apontar critérios para assinalar a cada caso sua correspondente subsunção na espécie procedimental correta.
A classificação mais corrente biparte a pretensão de retificação de registro imobiliário em de natureza jurisdicional (ou contenciosa) e judicial-voluntária (ou de jurisdição voluntária) — não me arrisco, em temas de processo civil, a escolher designações. Com que, não faltando expresso amparo normativo para a referência à jurisdição contenciosa (art. 216, Lei 6.015/73), as demais hipóteses de retificação — sobremodo as do § 1o, art. 213, da mesma Lei 6.015 — estariam ou resumidas no plexo da jurisdição voluntária ou submetidas a uma divisão pelo critério da judiciaridade.
Nada obstante, é preciso, a meu ver, considerar a possibilidade de uma terceira espécie procedimental que, com ou sem a nota de judicialidade, deve estimar-se simpliciter como administrativa.
É bem verdade que uma reta hermenêutica não pode ensejar às normativas inferiores ou de espectro não-nacional, no caso de um Estado composto, a metódica de compreensão do significado normativo de uma lei superior ou nacional. Mas isso não deixa de historicamente, em tantos casos, ser um dado integrante do fato de uma compreensão normativa desse tipo. Dá-se que no Estado de São Paulo as normas de direito organizatório da justiça estadual previram atribuição do Corregedor-Geral da Justiça para a apreciação e decisão de recursos em matéria de procedimentos administrativos comuns, entre os quais se incluem os pedidos de averbação. Como a técnica inscritiva de boa parcela das retificações é o averbamento, freqüentemente a maneira vária como se intitulavam os pleitos de retificação conduziam seu julgamento recursal ou ao Corregedor-Geral ou a uma Câmara do Tribunal de Justiça (hoje, Câmara de Direito Privado da Seção Civil dessa Corte). Isso implicava ainda, de comum, uma outra questão de competência: fora da Capital de São Paulo (Capital em que uma Vara especializada nos registros públicos convoca tanto "pedidos de averbação", quanto "de retificação"), era costumeiro que os primeiros desses pedidos tramitassem pela Corregedoria Permanente do registro de imóveis, os outros, por Vara Cível.
Para corrigir essa turbulência procedimental, tratou-se certa vez de encontrar um critério relacionável à normativa. Manteve-se de logo a linha de considerar jurisdicional — ou contencioso — o pleito retificador previsto no art. 216, da Lei 6.015/73. Até porque seu texto não estimulava entendimento adverso: "O registro poderá também ser retificado ou anulado por sentença em processo contencioso…" (aí estavam indicados a reivindicatória, a demarcatória, a usucapião, etc.). Em seguida, e até para resguardar o sentido normativo útil de a retificação direta ser da competência recursal de Câmaras do Tribunal de Justiça de São Paulo (Lei Complementar paulista 225/79), entendeu-se que essa retificação, com natureza de jurisdição voluntária, era em definitivo a prevista no § 2o, art. 213, Lei 6.015/73, da qual retificação resulta "alteração da descrição das divisas ou da área do imóvel". Restavam então algumas outras espécies retificadoras do registro de imóveis: a de atribuição do registrador (última parte do § 1o, art. 213, Lei 6.015) e a de atribuição do juiz, fora das hipóteses de contenciosidade e de "alteração de descrição de divisas ou da área do imóvel" (art. 216 e § 2o, art. 213, Lei 6.015); entendeu-se que se trataria de retificações com caráter apenas administrativo, de sorte que, diversamente do que ocorre com as retificações de jurisdição voluntária, submetíveis aquelas a eventual superveniência de processo contencioso.
Esse critério foi adotado em meados da década de 80 e, de algum modo, concorreu para suplantar então conflitos de atribuições e de competências. Nunca, porém, obteve consenso ao menos fundacional e é preciso também reconhecer que a sucessão de casos levou à necessidade de sucessivas distinções: p.ex., tratando-se de agregação, alterando-se a descrição de divisas, entendeu-se que era desnecessária a observância do procedimento previsto no § 2o, art. 213, Lei 6.015/73, decerto não em razão do tema da competência, mas para promover economia de tempo e de gastos — evitando-se citação e perícia. Noutro caso, admitiu-se cumulação de pedidos que, em primeira instância, eram um de atribuição da Corregedoria Permanente, outro de competência de Vara Cível, e, em via recursal, tudo se apreciou e decidiu pelo Corregedor-Geral da Justiça. Por outro lado, não cessou inteiramente a praxe de assinar a competência pelo nome dado ao pleito na petição inicial. Mais complexa ainda é a circunstância de que o cancelamento de registro — que é uma das espécies de retificação — receba um tratamento normativo singular e praticamente apenas se insira na atribuição correcional.
6. Com o cancelamento — que é uma retificação negativa —, dá-se o fato de que, de modo específico, a normativa de regência, no Brasil, admita que sua inscrição se perfaça "a requerimento unânime das partes" (art. 250, II, Lei 6.015) e "a requerimento do interessado, instruído com documento hábil" (art. 250, III, Lei 6.015). Essa previsão de procedimento não-judiciário — a que concorre referência ao "cumprimento de decisão judicial transitada em julgado" (art. 250, I, Lei 6.015) —, faz com que o cancelamento registral se torne uma retificação favorecida em relação às demais. É verdade que o caput do art. 213 da Lei 6.015/73 prevê a retificação de erro constante do registro, "a requerimento do interessado", mas, no rigor da letra legal, parece referi-la a um "despacho judicial" (§ 1o, art. 213), salvo o caso de erro evidente, no qual se admite a atuação direta do registrador (id., segunda parte). Dessa maneira, a retificação do registro imobiliário — ressalvado o caso de cancelamento — é comumente judiciária e, de modo excepcional, atribuída ao registrador.
Na prática da justiça registral, houve duas linhas de alargamento da hipótese exceptiva: por uma delas, ampliando a esfera do erro evidente; pela outra, concedendo a retificação motu proprio que, com rigor, não se acha conformada ao preceito de regência: a norma do § 1o, art. 213, da Lei 6.015/73, não pode compreender-se à margem do caput desse mesmo artigo que inicia com as palavras "a requerimento do interessado, poderá ser retificado, etc".
A maior ou menor bitola da atribuição das retificações ao registrador imobiliário deve-se em certa medida ao fortemente controverso tema de sua função jurídica: ¿o registrador é um funcionário público para-hierarquizado da Justiça ou é, diversamente, um profissional do direito — i.e., um jurista que atua, sob própria responsabilidade, com o exercício de um saber prudencial?
Da resposta a essa indagação — muito dependente, é verdade, de uma normativa menos movediça, mas ainda mais dependente de uma funda meditação sobre as importantes funções desempenhadas pelo registrador e o relevante papel do sistema registrário para a consecução do bem comum —, da resposta a essa indagação fundamental, repito, muito deverá o futuro de todo o registro predial brasileiro. Aí se engastam relevantes questões, inclusivamente para a retificação registral e, de pronto, teme-se que a "justicialização" da prática dos registros, compartindo o mesmo sentido ideológico de sua "administrativização", seja uma espécie de argamassa para perpetrar a Cidade — na linguagem agostiniana, uma pobre Cidade do Mundo — com tijolos recolhidos dos escombros do Muro de Berlim. Talvez não seja demasiado nem impiedoso chamá-los de entulho totalitário. A propriedade (hélas, salva sempre a da nomenklatura), reduzida a ser uma função social; o registrador público, convertido em fiscal do Estado: a trena sob uma das axilas, andará ele a medir — ¿que digo? —, a qualificar quantos metros na casa de um antigo proprietário (salvas sempre as da nomenklatura) podem ser compulsoriamente ocupados por meia dúzia de desvalidos (nem sempre compulsórios).
Para tantas indagações, também — é isso: também — sobre a instituição e a prática registrárias, incluídas algumas questões que permanentemente me assaltam o ânimo — sobretudo a da busca de um caminho confiável para o deslinde casuístico da tensividade entre as exigências do tráfico imobiliário e as da segurança jurídica, conforta-me saber que há um critério bom e bastante para tudo resolver: a humilde e persistente e constante procura da Verdade. É que, em todo caso, só a Verdade nos retificará
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