Negativa Fiscal e a validade dos atos jurídicos
Décio Antônio Erpen
Sumário: 1. Considerações preliminares: a propriedade. 2. Estágios da propriedade no Brasil. 3. Da Lei das Escrituras Públicas. 4 Ensaio para simplificação dos atos. 5. Das Cautelares Fiscais. 6. Precedentes jurisprudenciais: da nulidade e da ineficácia. 7. As Negativas fiscais e o Juízo Falimentar. 8. Dos instrumentos particulares e da clandestinidade. 9. O Código Civil de 2002 e as Negativas Fiscais. 10. Conclusão.
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: a propriedade
Estamos insistindo, há muito, que a Constituição ao consagrar o instituto da propriedade, fez uma única ressalva no sentido de que ela “atenderá a sua função social” (art.5O, XXII e XXIII). Ao admitir o instituto da desapropriação, adotou normas rígidas em torno dos casos e do pagamento.
Em momento algum dispôs que a alienação da propriedade ficaria condicionada ao prévio pagamento dos tributos eventualmente devidos às Pessoas do Direito Público Interno ou às Autarquias, quer em razão de imposto incidente sobre a coisa vendida (propter rem), quer em razão de débitos pessoais do alienante. Não criou a Constituição nenhuma Hipoteca Fiscal coletiva. O legislador ordinário, na defesa e comodidade do Fisco, é que invadiu, de cheio, a cidadania, passando a condicionar a validade do ato jurídico à prévia declaração do Poder Público de que o alienante nada estaria a dever. Caso contrário, seu patrimônio estaria bloqueado por uma indisponibilidade genérica.
2. ESTÁGIOS DA PROPRIEDADE NO BRASIL
Num exame do instituto da propriedade, no Brasil, constatam-se três estágios distintos. O primeiro diz respeito ao período do Império, quando o instituto do crédito precedeu o instituto da propriedade. Isso se vê quando se adotou o Registro Hipotecário (1864) antes do instituto da propriedade. O segundo ciclo está no Código Civil, disciplinando o instituto da propriedade na sua forma mais edificante. Os atributos da propriedade foram preservados, bem assim a posição da Fazenda Pública ao se proclamar que “A certidão negativa exonera o imóvel e isenta o adquirente de toda responsabilidade.” (art. 1.137 - CCB). O terceiro ciclo foi o chamado Fazendário, quando o Estado-fiscal pensou haver descoberto uma fórmula mágica de truncar a vida do cidadão, condicionando o tráfego imobiliário à prévia manifestação do Poder Público para deferir seu placet. Isso se iniciou com o Estatuto da Terra, que exige a prévia prova do pagamento do imposto sobre o imóvel, seguindo-se a Lei da Previdência Social, até que foi consagrada tal prática no cotidiano.
Os Tabeliães e Registradores passaram a ser os verdadeiros fiscais do poder público e o cidadão teve seu patrimônio bloqueado, este e aqueles sempre intimidados com cominações legais, as mais graves, em caso de descumprimento de norma manifestamente ilegítima.
Tudo se agrava quando o Poder Público dispõe de mecanismo legal consistente na Execução Fiscal – Lei 6.830/80, onde está consagrada a presunção legal de validade e eficácia da Certidão de Dívida.
3. DA LEI DAS ESCRITURAS PÚBLICAS
Em boa hora sobreveio a Lei 7.433/85, chamada Lei das Escrituras Públicas e que diz serem necessárias as certidões fiscais, a certidão de feitos ajuizados e certidão de ônus reais. A Lei utiliza, sugestivamente, o advérbio de modo “somente”, para dispor que unicamente aqueles documentos arrolados em lei seriam os exigidos, com isso afastando ilações outras.
O Decreto 93.240/86 regulamentou a mesma lei, explicitando que a certidão fiscal seria aquela relativa ao imóvel. Chegou a detalhar dizendo que se for urbano, as certidões dos tributos “que incidam sobre o imóvel”; se rural, o certificado de cadastro emitido pelo INCRA.
Adiante disse que a certidão relativa ao imóvel urbano poderia ser dispensada pelo adquirente, que passaria a responder pelo pagamento dos débitos fiscais existentes.
Nenhum outro documento fiscal foi exigido, mantido o caráter da obrigação fiscal propter rem, ou seja, relativa ao imóvel e não à pessoa do contribuinte. Obrigação real e não pessoal. A transferência do imóvel não poria em risco o tributo eventualmente devido, porque o mesmo imóvel persistiria como garantia da obrigação fiscal.
Com a precisão da Lei 7.433/85, não há que se falar mais em negativas da Fazenda Estadual, da Receita Federal ou mesmo da Previdência Social, ainda que o Decreto supramencionado aluda às demais certidões fiscais exigidas em lei. Aí o legislador delirou.
Quando a Constituição quis condicionar o exercício de eventual direito à prova da prévia quitação fiscal, o fez, e aí era o local adequado, nos casos nela explicitados. Observa-se no art.195, §3º a seguinte disposição:
“A pessoa jurídica em débito com o sistema de seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios”.
A norma em foco impede que a pessoa jurídica contrate com o Poder Público, ao mesmo tempo em que afasta as pessoas jurídicas de outras sanções políticas.
O Estado-legislador, o Estado-administrador ou o Estado-juiz estão sujeitos, negativa e positivamente, às regras jurídico-constitucionais materiais e às regras jurídico-constitucionais organizatórias, daí porque, toda e qualquer norma ou ato que iniba o cidadão de alienar ou onerar, a qualquer título, bem imóvel ou direito a ele relativo, está maculada com o vício da inconstitucionalidade.
O confronto entre a consagração do Direito de propriedade com a liberdade de contratar com o Poder Público dá a clara idéia de que, na última hipótese, exige-se a chamada quitação fiscal, diferentemente do que ocorre com o direito de dispor.
O comportamento estatal que foi direcionado contra o patrimônio particular para haver prestações tributárias foi, várias vezes, repelido pelos Tribunais nacionais ao condenarem os meios coercitivos, em especial a interdição de estabelecimento para haver créditos fiscais. Tais comandos judiciais inspiraram as Súmulas 70, 323 e 547 do STF.
4. ENSAIO PARA SIMPLIFICAÇÃO DOS ATOS
No ano de l995 realizou-se em Porto Alegre, sob os auspícios da Corregedoria-Geral da Justiça, do Colégio Notarial e do Colégio Registral, o Simpósio sobre cidadania plena e segurança jurídica, sendo lançadas as seguintes premissas:
1. É necessária uma definição legal inequívoca em torno dos documentos que ponham, verdadeiramente, a salvo o negócio jurídico;
2. No conceito de propriedade, mesmo afastando-se do clássico, não se faz restrição ao tráfego imobiliário quando os intervenientes no negócio têm relações fiscais, porquanto o Poder público dispõe de mecanismos outros para assegurar seus créditos;
3. É da tradição brasileira a assunção, pelo adquirente, de eventuais débitos que incidam sobre o imóvel (obligatio propter rem), recomendando-se o questionamento judicial, mesmo através do processo de dúvida, em torno da exigência;
4. É questionável a prévia exigência do tributo sobre a alienação da propriedade imobiliária, uma vez que ela retarda a elaboração do ato, truncando a circulação dos negócios jurídicos imobiliários, e também porque o fato gerador somente existe com o registro;
5. Impõe-se a adoção do instituto da reserva de prioridade ante o risco existente de o outorgante estar, simultaneamente, alienando ou onerando a propriedade a outrem.
6. Seja repensado o instituto da Fraude à Execução, em especial ante o novo regramento legal que exige o prévio registro da penhora para que ela seja oponível a terceiros;
7. Que o sistema registral deve ser completo, concentrando-se numa única matrícula a inscrição de todos os atos relativos ao imóvel;
8. É urgente a adoção de um seguro sobre a transação imobiliária, evitando-se danos irreparáveis, especialmente, quando se cuida da aquisição da casa própria ou quando se cuida de uma perspectiva eminentemente social”.
Por derradeiro, recomendou-se a criação de uma cultura de segurança jurídica para evitar surpresa e acautelar melhor o exercício dos direitos da cidadania assegurados na Constituição.
Cumpre reafirmar-se que a existência de uma certidão, positiva ou negativa, existe tão-só para que o adquirente saiba da real situação da coisa adquirida, mesmo com débitos pendentes. A decisão sobre a conveniência do negócio é do adquirente. O negócio pode lhe convir ainda que pendente de hipoteca ou direito real de fruição de outrem.
5. DAS CAUTELARES FISCAIS
Outro dado jurídico relevante consiste na adoção pelo legislador federal da chamada Medida Cautelar Fiscal, constante da Lei 8.397, de janeiro de 1992, o que seria inconciliável com outros diplomas legais precedentes. Assim se diz porque, no momento em que o legislador declarou a indisponibilidade de todo um patrimônio de eventual devedor, ou mesmo não-devedor, mas sem ostentar uma negativa fiscal, não careceria mais de uma declaração judicial de indisponibilidade. Aliás, em artigo no qual enfrentamos esse tema e denominado “A Medida Cautelar Fiscal e as Negativas Fiscais” expressamos que o juiz somente pode deferir a cautela se verificados alguns pressupostos objetivos e que estão catalogadas no art. 2º do mesmo diploma legal.
Isso ocorre quando o devedor está sem domicílio certo, ou se ausenta, ou incorre em insolvência, ou quando contrai dívidas que comprometeram a liquidez do patrimônio, ou quando os créditos fiscais ultrapassem 30% do patrimônio conhecido, entre outros casos.
Sustentamos que a medida cautelar fiscal constitui-se em autêntico arresto, devendo atentar, outrossim, ao princípio da especialidade, bem assim ser levada a registro.
Outra diligência em prol do Fisco foi instituída, constituindo-se no chamado Arrolamento de Bens, que possui, igualmente, caráter acautelatório, sendo acessível seu registro no álbum imobiliário, onde se atentou, em boa hora, para o princípio da especialidade.
Ora, se jurídica a pretensão legal de impedir-se a lavratura de atos notariais pela simples ausência de negativas fiscais, via indireta, estar-se-ia deferindo uma indisponibilidade coletiva, mas sem os pressupostos objetivos que o próprio legislador fez exigir para si mesmo.
Reafirmamos a premissa de que, no momento em que o Poder Público pode declarar indisponível parte do patrimônio de devedor, desde que caracterizada alguma situação prevista na respectiva lei, está o mesmo legislador admitindo que, nos demais casos e sem a tutela judicial, não pode tornar indisponível o patrimônio do cidadão, mesmo que o faça por via transversa, ou seja, truncando os negócios jurídicos, condicionando-os à prévia declaração de inexistência de eventual débito com alguma área fiscal.
6. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS: da nulidade e da ineficácia
O Tribunal de Justiça, na Ap. Cível 598 170 876, em que fui Relator, contando com a adesão dos votos dos Desembargadores Antônio Janyr Dall Agnol Junior e João Pedro Freire, lançou a seguinte premissa na ementa que preside o julgado:
“Dúvida suscitada por tabelião em torno da exigência legal de negativa fiscal. Não integrando a negativa fiscal o ato jurídico, possível sua lavratura desde que o adquirente assuma eventual crédito em prol do poder público. O ato realizado, sem a mesma exigência legal é válido, mas pode ser ineficaz frente à fazenda pública ou instituição previdenciária, se a mesma foi preterida. Recurso provido para se autorizar a escrituração, materializando negocio jurídico.”
Cumpre, ao ensejo, trazer-se necessária ponderação de que há dois tipos de atos notariais: os satisfativos e os preparatórios.
De regra, não cabe processo de dúvida sobre ato notarial a ser lavrado, isso porque a previsão legal seria para os atos registrais. Ocorre que já há precedente legislativo (Lei de Protesto de Títulos) a respeito. Isso valeria, em tese, para os atos notariais satisfativos, ou seja, que se realizam por si mesmos, independente de qualquer outro ato. Exemplifico: uma autenticação, um reconhecimento de firma.
Quando o ato notarial é preparatório para alcançar um fim declarado, v.g. a escritura pública para fins de alienação do imóvel, cujo negócio jurídico somente se vai perfectibilizar com o futuro registro, e quando para ambos os atos haja a mesma dúvida, jurídico e coerente que o tabelião se antecipe e busque, desde logo, satisfação judicial para elaboração de seu ato, sabendo adredemente de que terá ele o pleno êxito.
A discussão doutrinária que pontificamos encontrou um precedente jurisprudencial de alta significação, quer pela autoridade da Corte que o emanou, quer pelo conteúdo do venerando aresto. Refiro-me ao Recurso Especial 92.500- AM, quando a egrégia Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça assim ementou o venerando aresto:
“Alienação do imóvel. Contribuições Sociais. Certidão negativa. A falta de apresentação dessa certidão faz o ato ineficaz frente à Previdência, podendo proceder-se à penhora do bem como se alienação não tivesse havido. Não pode ser alegada por terceiro, inteiramente estranho à razão de ser da norma.”
No corpo do venerando aresto, o insigne Relator, o Ministro Eduardo Ribeiro esclarece que o imóvel foi alienado sem as negativas do INSS. Proclamou que o negócio jurídico era válido perante o mundo jurídico, mas ineficaz frente ao credor social. Na mesma trilha seguiram os Ministros Costa Leite, Nilson Naves, restando vencido o Min. Menezes Direito.
Um argumento extremamente inteligente e irrespondível foi utilizado pelo Min. Eduardo Ribeiro ao dizer que seria indefensável a tese de que o ato seria nulo e não somente ineficaz, sem a presença das prévias negativas, no momento em que, após lavrado o ato e declarado nulo, sobreviesse declaração do INSS de que o alienante nada estaria a dever àquela Instituição.
O outro absurdo residiria na circunstância de possuir o alienante outros bens aptos a garantir eventual débito fiscal. Não seria ele insolvente.
O negócio jurídico, pois, deve ser tratado no plano da ineficácia e nunca no plano da nulidade, institutos completamente diversos.
7. AS NEGATIVAS FISCAIS e o JUÍZO FALIMENTAR
Veja-se a injuricidade da pretensão dos Representantes Fazendários ao pleitearem a nulidade do ato, sustentando que a negativa fiscal integra o ato jurídico, se confrontarmos tal exigência com negócios jurídicos realizados pela Massa Falida, com o placet judicial, quando, de regra, todas as Massas estão a dever às Pessoas do Direito Público. Por suposto que não ostentam declaração negativa fiscal e ainda assim promovem-se alienações. O mesmo ocorre com as alienações judiciais, quando os créditos, mesmo fiscais ou previdenciários, deverão ser buscados dentro do instituto da prelação e nunca na substância do ato jurídico.
Tais colocações têm inspirado o magistrado da Vara dos Registros Públicos de Porto Alegre a autorizar a inscrição dos atos notariais no registro imobiliário, independente da apresentação de negativas fiscais ou, mais precisamente, da CND.
8. DOS INSTRUMENTOS PARTICULARES e da CLANDESTINIDADE
A Comunidade Jurídica e os Poderes Públicos ainda não se flagraram dos inconvenientes que a dispensa das escrituras públicas, permitindo que os negócios sejam formalizados por meio de instrumentos particulares, acarreta nas mais diversas áreas da interação social. Quer pela urgência, quer pela comodidade de se diferir para outra oportunidade o pagamento do imposto de transmissão (e as despesas de escrituração e registro), consagra-se a cultura dos instrumentos particulares, com os óbvios inconvenientes. Os contratos de gaveta convêm mais aos acomodados, sonegadores e à lavagem de dinheiro, criando uma nova categoria de propriedade, a chamada propriedade informal, no exato momento em que se está criando a cultura da Regularização Fundiária para levar a registro todas as situações jurídicas consolidadas em torno do instituto da propriedade.
A esse respeito, inicio pelo estímulo à clandestinidade, antítese da publicidade. A escritura pública, ato essencialmente formal, existe para assegurar a segurança jurídica, enquanto que o registro existe para gerar a publicidade, com isso combatendo a clandestinidade.
Havendo dever legal de se comunicar à Receita Federal a lavratura de ato notarial e de ato registral, há um controle social, bem mais amplo que o Fiscal, em torno da circulação da riqueza. Os documentos particulares não inscritos contornam as salutares comunicações.
Além disso, os registros, igualmente, estão a serviço da moralidade, porque dificultam a fraude. A clandestinidade, representada nos chamados “contratos de gaveta”, muitas vezes interessa a quem pretende ocultar patrimônio do Fisco, nas mais diversas áreas; dos credores, que ficam inibidos de pleitear a constrição sobre determinado bem ou direitos e ações; da criminalidade, porque serve para a chamada lavagem de dinheiro; à sonegação, porque escusa a origem; à ordem jurídica em geral, porque os registros devem espelhar, quanto mais possível, uma realidade. À medida que se desprestigia a chamada propriedade formal, cresce a chamada propriedade informal. Estamos num autêntico “mercado persa”.
Os cadastros, de regra são alimentados unilateralmente, não sendo passíveis do criterioso exame de um profissional registrador.
Ademais, não havendo tributação nos pactos particulares, posterga-se o pagamento do Imposto de Transmissão, quando não se subtrai uma transação com o repasse do contrato (cessão de direitos). A escritura pública, instrumentalização definitiva de um negócio, além de outorgar a segurança para as partes e para a comunidade, assegura o prévio pagamento do imposto de transmissão correspondente.
A par da má-fé de alguns que deixaram de formalizar os negócios jurídicos, existem os que são compelidos a agir dessa forma por imposição do Poder Público, que inibe as partes contratantes de regularizarem juridicamente seus pactos ou porque estão em débito, ou porque há urgência na concretização do negócio, quando a negativa os retarda. As partes são levadas, pelas circunstâncias, a assim agirem.
O legislador deveria, sim, cominar de nulidade os pactos instrumentalizados de forma particular, mantendo a primitiva e salutar orientação do Código Civil.
Há, pois, motivações políticas e jurídicas para se prestigiar a forma solene, como ocorre nos demais Países.
De outro lado, a ausência de comprovante de quitação fiscal importa na ineficácia da transação frente ao Poder Público correspondente, resguardados eventuais créditos previdenciários ou fiscais. Com isso não são as partes estimuladas a adentrarem na penumbra da clandestinidade.
A persistir a atual orientação, os efeitos funestos são evidentes, em qualquer ângulo que se olhe a questão.
9. O CÓDIGO CIVIL de 2002 e as NEGATIVAS FISCAIS
O Código Civil de 1916 dispunha no art. 1.137 e parágrafo que a certidão negativa desonerava o adquirente. Nessa linha de pensamento, era corriqueira a dispensa de negativas, assumindo o adquirente eventuais ônus fiscais.
Tal preceito não foi repetido pelo Código Civil de 2002, passando alguns notários a sustentar que a apresentação das negativas fiscais passou a ser obrigatória, integrando o ato jurídico.
A leitura ao art. 215 há que ser atenta e percuciente, isso porque não chego à mesma conclusão.
Os requisitos da escritura pública constam do art. 215, dispondo o inciso V o seguinte:
“ V – referência ao cumprimento das exigências legais e fiscais inerentes à legitimidade do ato;”
A expressão legal “inerentes à legitimidade do ato” é circunstância fundamental e tem endereço certo: as exigências dizem respeito ao ato em si, ou seja, a comprovação do pagamento do imposto correspondente ao negócio jurídico.
Se o legislador pretendesse compelir as partes a trazerem a prova de quitação das Entidades Públicas, teria repetido o preceito contido no art. 1.137 do Código revogado, onde alude “as certidões de se acharem quites com a Fazenda Federal, Estadual de Municipal, de quais impostos a que possam estar sujeitos”.
O preceito legal se endereçava às partes contratantes.
Ora, no momento em que o legislador substituiu as negativas genéricas de todas as Pessoas do Direito Público para restringir as exigências “inerentes à legitimidade do ato” deixou claro o comando de que aquele ritual macabro de extrair negativas fiscais em todas as Repartições não mais existe. Há que se precisar quais as exigências que integram o ato em si. Tudo aliado à pertinência do ato de cidadania, de direito material, qual seja, a transmissão de uma propriedade ou a instituição de um direito real.
Seja como for, persiste a premissa de que a solução está na exata compreensão do que seja nulidade do ato em si, e de possível ineficácia, se preterida alguma Fazenda, ainda que autárquica, como é, costumeiramente, a CND do INSS.
As conclusões que lançara no passado estão, cada vez mais sólidas no sentido de o adquirente correr o risco, e de a ausência de negativas fiscais, inobstante preceito legal específico, não afeta a validade do ato jurídico estampado em escritura pública.
10. CONCLUSÃO
Concluo afirmando que possível a lavratura de atos notariais e registrais sem as negativas fiscais, quando o adquirente, declaradamente ou não, assume todos os ônus existentes na eventualidade de algum débito pendente. Necessária, sim, a comprovação do imposto correspondente à transação. A alienação em tais casos é válida, sendo, todavia ineficaz frente à Fazenda Pública ou à Previdência se o alienante for insolvente, ineficácia restrita ao credor e ao valor do débito. Mas o ato persiste. O ato é válido. As negativas fiscais não integram o ato notarial. A penhora poderá incidir sobre o imóvel alienado, tão-somente, se outros bens inexistirem para garantir o juízo.
Porto Alegre, 21 de abril de 2004.
* Décio Antônio Erpen Desembargador Aposentado – TJ-RS - Professor de Direito Notarial e Registral
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