O direito de superfície na legislação brasileira
Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho
1 - conflito aparente de normas. Diálogo das fontes.
Circunstâncias históricas fizeram com que o direito de superfície fosse introduzido na legislação brasileira[1] em dois textos distintos e cronologicamente muito próximos – o Estatuto da Cidade e o Novo Código Civil –, apresentando unidade estrutural, mas com campos de incidência distintos, além de normas conflitantes, fato que gera alguma dificuldade na sua aplicação.
Necessário, pois, antes de analisar o instituto, solucionar uma questão prévia, consistente em saber se houve ou não revogação do Estatuto da Cidade pelo Novo Código Civil no que toca ao regime superficiário.
O problema é tormentoso, impondo-se criar uma solução conciliatória, calcada no bom-senso e no pragmatismo.
Há quem sustente ter havido revogação do Estatuto da Cidade pelo Código Civil, uma vez que teria regulado a mesma matéria (direito de superfície), na forma do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil.
É que o Novo Código Civil, tendo entrado em vigor em 2004, teria revogado, neste particular, o Estatuto da Cidade, que é de 2001.
Nesse sentido, veja-se o entendimento de Joel Dias Figueira Jr., na obra denominada “O Novo Código Civil Comentado”, coordenada por Ricardo Fiúza, Editora Saraiva, página 1.210.
Como variante dessa idéia, J. Miguel Lobato Gómez[2], argumenta que o código civil em vigor, além de ter incorporado os princípios da nova ordem constitucional, é uma lei geral posterior, revogando, assim, as anteriores, naquilo em que houver incompatibilidade:
“O Novo Código Civil é posterior à Constituição e, praticamente, a todas as leis especiais vigentes, incluindo o Estatuto da Cidade. Além disso, não cabe dúvida que os princípios fundamentais que inspiram o novo Código em matéria patrimonial podem considerar-se formal e materialmente, conformes a atual Carta Magna do Brasil, especialmente em matéria de função social da propriedade e do contrato. Portanto, ninguém pode argumentar que o código civil vigente, por mais que seja o resultado de um processo iniciado nos anos setenta, por mais que assuma conceitos, regras e princípios de direito patrimonial já consagrados no vetusto texto de 1916, não teve em conta a Constituição e não respeitou seus princípios fundamentais. Além disso, embora seja uma lei geral, é uma lei posterior que, se não derroga por completo nenhuma lei anterior, ao menos derroga tacitamente todos os preceitos das leis vigentes com antecedência, gerais e especiais, em tudo o que sejam claramente contrárias ou se oponham ao estabelecido nelas”.
Por outro lado, há aqueles que sustentam que o critério[3] da especialidade deve impor-se, uma vez que o Estatuto da Cidade seria um microssistema, tal qual o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Locações (lex specialis derogat generalis).
Na verdade, a questão é complexa, inexistindo um critério definitivo, como observa Maria Helena Diniz[4]:
“Em caso de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derrogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica. Esse metacritério é parcialmente inefetivo, por ser menos seguro do que o anterior, podendo gerar uma antinomia real. A meta-regra lex posterior generalis non derrogat priori speciali não tem valor absoluto, dado que, às vezes, lex posterior generalis derogat priori speciali, tendo em vista certas circunstâncias presentes. A preferência entre um critério e outro não é evidente, pois se constata uma oscilação entre eles. Não há uma regra definida; conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério”.
Considerando não ter havido revogação, mas coexistência de ambos os diplomas legais, cada qual com seu campo de incidência próprio, veja-se a seguinte conclusão, aprovada na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, realizada no período de 11 a 13 de setembro de 2002:
Enunciado nº 93 – “As normas previstas no Código Civil, regulando o direito de superfície, não revogam as normas relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), por ser instrumento de política urbana”.
Instaura-se, por seu turno, acirrada divergência entre aqueles que consideram haver convivência entre os dois diplomas legais, no que diz respeito a estabelecer qual o critério de determinação da especialidade.
A questão, portanto, está em saber qual o aspecto que irá determinar a aplicação de um ou de outro texto.
Em primeiro lugar, existem aqueles que elegem como objeto determinante da especialidade o fator localização do imóvel (a). Desse modo, quando o imóvel sobre o qual se institui a superfície se localizar em área urbana, aplica-se o Estatuto da Cidade, ao passo que o Código Civil estaria reservado aos imóveis rurais.
Outros, por sua vez, consideram que a especialidade do Estatuto da Cidade não seria no sentido de aplicá-lo sempre que o solo fosse urbano, mas sim quando o direito superficiário fosse utilizado como instrumento de política urbanística.(b).
Destarte, nos casos em que o direito de superfície não fosse utilizado como instrumento de política urbana, mas como simples aproveitamento econômico da propriedade[5] pelos particulares incidiria o Código Civil, mesmo que o solo fosse situado no perímetro urbano.
Isto porque o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01, foi editado para dar cumprimento ao artigo 182 da CF/88, que trata da política de desenvolvimento urbano.
Nesse sentido, veja-se Ricardo Pereira Lira[6], uma das maiores autoridades nessa matéria:
“Não incide no caso a regra da Lei de Introdução segundo a qual a lei posterior, que regula inteiramente a matéria tratada na lei anterior, a revoga. Isso porque o direito de superfície contemplado no Estatuto da Cidade é um instituto de vocação diversa daquele previsto no novo Código Civil, voltado aquele para as necessidades do desenvolvimento urbano, editado como categoria necessária à organização regular e equânime dos assentamentos urbanos, como fator de institucionalização eventual da função social da cidade. No novo Código Civil, o direito de superfície será um instrumento destinado a atender interesses e necessidades privados”.
Destarte, se o município, por exemplo, desafetar uma praça e instituir o direito de superfície para explorar como estacionamento, incidirá as regras do Estatuto da Cidade.
Se, todavia, é o particular que constrói uma piscina no terreno vizinho sob o regime superficiário, aplicar-se-ia o Código Civil.
Por fim, invoque-se o artigo 1377 do CC que estabelece o caráter generalista de suas disposições, prevalecendo disposições de lei especial na hipótese de instituição do direito de superfície pelo poder público.
Aqui o critério da especialidade é em razão da pessoa que institui [7]o direito de superfície (c) e não pelo objeto.
Defendendo essa tese, invoque-se a lição de Francisco Eduardo Loureiro[8]:
“No caso, o CC – bem ou mal –, tratou do direito de superfície sobre bens particulares, de tal modo que não há diferenciação possível com o destinatários das regras do Estatuto da Cidade. Remanesceria os dispositivos do EC apenas disciplinando os casos de superfície constituído por pessoa jurídica de direito público interno, como, de resto, ressalva o artigo 1377 CC”.
De nossa parte, entretanto, concluímos que o direito positivo brasileiro, a exemplo do alienígena, não contém regras absolutas que resolvam o conflito intertemporal de normas, seja no sentido de acolher o critério da especialidade ou o cronológico.
O novo Código Civil, por sua vez, não revogou expressamente a lei especial anterior, limitando-se a revogar o antigo Código Civil e a primeira parte do Código Comercial, na forma do artigo 2045.
Somente o exame da hipótese concreta é que permitirá concluir a prevalência ou não de uma ou outra regra, seja do Código Civil, seja do Estatuto da Cidade ou se é o caso de integrar ambos os sistemas.
O aplicador do direito, no atual estágio histórico, deve procurar harmonizar as normas provenientes de múltiplas fontes.
Nesse sentido, veja-se a observação de Cláudia Lima Marques[9]:
“Seguirei aqui novamente a teoria de Erik Jayme, que propõe – em resumo – no lugar do conflito de leis, a visualização da possibilidade de coordenação sistemática destas fontes: o diálogo das fontes. Uma coordenação flexível e útil (effet utile) das normas em conflito no sistema, a fim de restabelecer a sua coerência. Muda-se, assim, o paradigma: da retirada simples (revogação) de uma das normas em conflito do sistema jurídico ou do ‘monólogo’ de uma só norma (a ‘comunicar’ a solução justa), à convivência destas normas, ao ‘diálogo’ das normas para alcançar a sua ratio, a finalidade visada ou narrada em ambas. Este atual e necessário diálogo das fontes permite e leva à aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas convergentes, com finalidades de proteção efetiva”.
Destarte, o correto é procurar integrar os dois textos que, na verdade, tem a mesma filosofia e estrutura, sendo possível superar supostas contradições.
É evidente que o legislador não quis revogar o Estatuto da Cidade, ocorrendo, involuntariamente, a edição de dupla legislação sobre o mesmo tema, como afirma J.Miguel Lobato Gómez[10]:
“Entretanto, o mais adequado é pensar que ambas as regulamentações se integram em um todo orgânico, o ordenamento jurídico brasileiro, e, em conseqüência, deve proceder-se a uma interpretação sistemática, única, conjunta e integrada, de todo o complexo normativo relativo ao tema”.
A idéia acima mencionada está incorporada a este trabalho, pois tratarei, de forma conjunta, ambos os diplomas legais, salientando as diferenças, quando necessário.
Um exame mais acurado revelará que, de fato, não há incompatibilidade insuperável entre os dois regramentos, mas antinomias aparentes, que são facilmente ultrapassadas pelo diálogo das fontes.
2 - Compreensão do instituto.
Tradicionalmente vigora o princípio superficies solo cedit que expressa o vínculo indissociável existente entre o solo e a superfície, de sorte que tudo aquilo que se planta ou se constrói pertence ao dono do solo.
Essa regra nada mais é do que a particularização do princípio genérico de que o acessório segue o principal (acessorium sequitor principale).
O artigo 1299 estabelece que “a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidades úteis ao seu exercício”.
Por sua vez, reza o artigo 1.255 NCC: “Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções;se procedeu de boa-fé terá direito de indenização”.
Observar que essa noção de principal e acessório tem sido abrandada e tornada relativa. Veja-se o disposto no parágrafo único do 1255, regra que não tinha similar no código de 1916:
“Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo”.
De igual modo, o artigo 1230 daquele diploma legal, retira do proprietário do solo o domínio sobre jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia elétrica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos em lei especial, sendo certo que parágrafo único assegura a exploração imediata do subsolo pelo proprietário.
Tal disposição está em consonância com a Constituição Federal de 1988, especialmente os artigos 20, IX e X, 21, 176 e 178, dentre outros.
Pois bem, apesar de não ser uma regra absoluta como acima visto, o direito de superfície excepciona a regra do superficie solo cedit, já que permite a separação entre o domínio daquilo que é construído ou plantado e a propriedade do solo que abriga a construção ou plantação.
Não se apresenta, nessa situação, a figura jurídica de co-propriedade, mas coexistência de dois direitos reais distintos.
Dessa maneira, o titular do solo poderá continuar a usar e dispor de sua propriedade, que é uma propriedade limitada pelo direito real de superfície, não podendo, entretanto, fazê-lo de forma a embaraçar o uso pelo superficiário.
José Guilherme Braga Teixeira[11], afirma que o proprietário terá a fruição do solo e do próprio terreno enquanto não iniciada a obra ou plantação, a exemplo do que dispõe o artigo 1532 do Código Civil Português.
Outros, entretanto, consideram que o proprietário continuará a usar e dispor do solo naquilo que não é ocupado pela construção, não podendo, obviamente, atrapalhar o uso do superficiário.
A solução do problema deverá ser oferecida pelo contrato celebrado entre o fundeiro e o superficiário, como de resto acontecerá com a maioria das questões decorrentes da relação, diante da parcimoniosa regulamentação legal.
É certo que também poderá o fundeiro usar o subsolo, mesmo após a construção ou plantação, desde que não embarace o direito do superficiário. De igual modo, também poderá o fundeiro usar o solo, caso o direito de superfície incida sobre o subsolo.
Por fim, há consenso de que é possível instituir hipoteca ou alienação fiduciária sobre a propriedade do fundeiro , independentemente da propriedade superficiária, assim como admite-se a oneração da propriedade superficiária sem atingir a propriedade do fundeiro.
Isto, inclusive, é um fator indispensável para que o instituto venha a ter emprego prático como instrumento de política habitacional.
A constituição da hipoteca sobre a propriedade do fundeiro não alcançará a construção ou plantação objeto da superfície anteriormente constituída, derrogando, assim, o artigo 1474 do CC.
Logo, a hipoteca não abrangerá todas as acessões e melhoramentos do imóvel, como indica a primeira parte do dispositivo mencionado, incidindo a parte final dessa norma, no sentido de que subsistem os ônus reais registrados anteriormente à hipoteca.
3 - definição do direito de superfície.
Constitui-se a superfície um direito real autônomo. Embora não esteja inscrito no rol dos direitos reais em coisa alheia, esse é o entendimento majoritário da doutrina, como ensina J. Miguel Lobato Gomes[12].
Nelson Rosenvald[13], entretanto, observa, com lucidez, o seguinte:
“Em virtude da omissão do Estatuto da Cidade e do Código Civil quanto à natureza jurídica do modelo, repercute-se na doutrina uma polêmica. Seria o direito real de superfície uma verdadeira propriedade ou um direito real em coisa alheia? A resposta é: ambos. O direito de superfície é um direito real sobre coisa alheia(lote ou gleba), pois sua formação resulta de uma concessão do titular da propriedade para fins de futura edificação (sobre ou sob o solo) ou plantação, que, quando concretizada pelo superficiário (concessionário), converterá o direito inicialmente incorpóreo, em um bem materialmente autônomo à propriedade do solo do concedente”.
Quanto ao seu conteúdo, invoque-se Luiz Guilherme Loureiro[14], que assim define o instituto:
“A superfície é um direito real, fixado por tempo determinado ou indeterminado, que confere ao superficiário a propriedade da construção ou plantação , ainda que em caráter resolúvel, gratuito ou mediante o pagamento de um pensão periódica e que pode ser transmitido por ato entre vivos ou causa mortis”.
José Oliveira Ascensão[15], por sua vez, assevera o seguinte:
“A superfície pode ser simplesmente definida como o direito real de ter a coisa própria incorporada em terreno alheio. Isto basta para distinguir a superfície de qualquer outro direito real e para englobar todas as modalidades previstas ( grifos nossos)”.
Esta observação é de extrema importância prática, sendo suficiente para tornar dispensável criar um longo e desnecessário capítulo buscando diferenciar o direito de superfície de institutos com alguma proximidade conceitual, como, por exemplo, a enfiteuse e o direito real de uso.
4 - Alcance prático do novo instituto.
Maurício Mota[16] tece as seguintes considerações históricas quanto à utilização do direito de superfície:
“Embora tenha uma rica história de construção e elaboração jurídica, o direito de superfície parece ter tido uma escassa utilidade para o desenvolvimento das instituições romanas. As fontes o contemplam de maneira fragmentária e episódica.(...) Com o direito de superfície não é diferente, e, se ele não teve em Roma a aplicação efetiva de todas as suas potencialidades, não quer dizer, de maneira alguma, que não possa a vir a ser um instrumento jurídico bastante útil e necessário em outros ordenamentos.”
Mesmo modernamente o direito superficiário não tem tido a utilização desejável. Na França, por exemplo, Gabriel Marty [17]justifica a pouca utilização do instituto pelo aspecto sociológico, esclarecendo que a mentalidade latina não se adapta a idéia de que a propriedade não seja um direito perpétuo, transmissível aos filhos e netos.
As possibilidades de aplicação da superfície são, todavia, ilimitadas.
Imagine-se o seguinte exemplo prático de aplicação, embora não tenha sido esta a opção governamental adotada: em solo alheio, a Prefeitura do RJ construiria apartamentos para alojar os atletas dos Jogos Pan Americano, ficando os imóveis construídos para o proprietário do solo ao fim de 20 anos, por exemplo.
Não haveria custos com desapropriações ou compra dos terrenos, facilitando a concretização do projeto. Por outro lado, o proprietário e seus herdeiros teriam, ao término do prazo estipulado, a propriedade do imóvel com suas acessões e melhoramentos.
Não seria, pois, inteiramente contrária à mentalidade latina a aplicação do instituto, como antes afirmado, uma vez que no direito brasileiro, como se verá adiante, não é possível haver direito de superfície perpétuo.
Uma outra utilização do instituto se dará em programas de habitação destinado à população de baixa renda.
A construção de casas pelo Poder Público, em terrenos de sua propriedade, ficando o início do pagamento da renda superficiária para o momento posterior ao término da construção. Para a garantia do cumprimento das obrigações, pactuar-se-iam hipotecas sobre a propriedade superficiária.
Finalmente, poderia ser estipulado que o pagamento do solarium se daria por um determinado número de anos, sendo que ao término do prazo a propriedade do solo se transferiria para o superficiário[18], em cujas mãos se consolidaria, assim, o domínio pleno.
Entre particulares, tem-se notícia do emprego do instituto até mesmo por pequenos proprietários que instituem o direito de superfície para que seja construído, por exemplo, um restaurante no seu terreno, voltando o imóvel para a propriedade familiar depois de 20 ou 30 anos, pagando-se o solarium no curso do contrato.
A vantagem é que o superficiário poderá, por exemplo, obter crédito com a hipoteca da sua propriedade superficiária e o dono do terreno, ainda terá a vantagem de não estar atado às rígidas e, por vezes, exageradamente protecionistas normas da Lei de Locações.
5 - Objeto do direito superficiário.
A doutrina majoritária[19] se posiciona no sentido de que o direito de superfície somente pode ser constituído tendo como objeto um terreno, pois este termo é expressamente explicitado pelo legislador.
Há, todavia, opiniões[20] no sentido de que é possível existir esta figura jurídica em terreno já construído, como no direito alemão, suíço e português, especialmente diante da redação do artigo 21, § 1º, do EC.
É o que se chama de direito de superfície por cisão, ou seja, já tendo construção erguida no terreno. Apesar de inexistir previsão no direito pátrio, não vejo razão para não se admitir tal possibilidade, pois não contraria a essência do instituto, seja do ponto de vista jurídico, seja do ponto de vista econômico.
6 - Direito de superfície de segundo grau e direito de elevação.
Alguns ordenamentos, como, por exemplo, o suíço, admite aquilo que se denomina direito de superfície de segundo grau, hipótese em que o dono da propriedade superficiária concede a um terceiro a possibilidade de construir sobre sua propriedade, criando novo regime superficiário.
O direito brasileiro não acolheu tal forma de aproveitamento do direito de superfície.
Figura jurídica distinta e igualmente não regulada no direito brasileiro é o que se chama de direito de elevação ou sobreelevação.
Nessa hipótese, alguém constrói um novo andar sob uma construção já erguida, passando, ao término da empreitada, a existir um condomínio edilício (propriedade horizontal), o que não se confunde com direito de superfície.
7 - A utilização do subsolo.
O Código Civil não permite obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão (parágrafo único do artigo 1369 do CC).
Assim, não seria viável um direito de superfície para a construção de uma garagem em terreno alheio, mas seria possível a construção de tal garagem, desde que sobre ela fossem edificados diversos andares, como, por exemplo, uma superfície tendo como objeto a construção de uma centro comercial.
Note-se que no âmbito do Estatuto da Cidade a limitação não incide, pois expressamente refere-se a utilização do subsolo, da superfície e do espaço aéreo.(parágrafo primeiro do artigo 21 do EC).
8 - Plantação no âmbito do estatuto da cidade.
O Estatuto da cidade, diferentemente do Código Civil não menciona a possibilidade de o implante constituir-se de uma plantação.
Seria possível, em tese, instituir um direito de superfície tendo como objeto uma plantação, no campo do Estatuto da Cidade.
Nesse sentido, veja-se a lição de Maria Sylvia Di Pietro Zanelo[21]:
“Porém, como instituto, nessa lei, é previsto apenas como instrumento de política urbana, fica evidente que sua utilização se dará mais especificamente para a construção. Nada veda, no entanto, o uso para plantações, ainda que estas não sejam muito usuais na área urbana”.
Henrique Viegas[22], com acerto, critica a posição acima defendida, sustentando que o Estatuto da Cidade tem por objeto o solo urbano planificado, o que impediria que seu objeto pudesse ser plantações.
9 - Direito de superfície e a propriedade horizontal (condomínio edilício).
É complexa a questão que se põe no sentido de ser ou não permitida a instituição de um condomínio edilício em terreno alheio, aplicando-se o regime superficiário.
Parece, em princípio, estranha tal situação. É que o proprietário da unidade autônoma é titular também de uma fração ideal do solo. Como poderia, pois, compatibilizar essa propriedade da fração ideal do solo com a propriedade do solo já titularizada pelo fundeiro?
Luis A.de Carvalho Fernandes[23] apesar de reconhecer a controvérsia existente em relação ao tema, responde afirmativamente à pergunta formulada, utilizando os seguintes argumentos:
“A primeira dificuldade que se poderia opor a este entendimento resultaria do facto de o direito de propriedade sobre o solo onde existe o edifício pertencer ao fundeiro, não podendo, como tal, ele ser coisa necessariamente comum, contra a estatuiçao do artigo 1241, n 1, al. A). É esta uma questão forma. O superficiário tem direito de manter no solo o edifício, com os poderes correspondentes à sua situação de superficiário. Posto isto, constituída a propriedade horizontal, aos superficiários-condóminos ficam a pertencer, em comum, esses mesmos poderes e tanto basta para satisfazer a exigência do 1421. Não se vê razão para, na propriedade horizontal, o solo ter de pertencer aos condôminos em compropriedade, com exclusão de qualquer outra situação de contitularidade. O que o solo não pode ser é objecto do direito singular de qualquer condômino. Também a situação do fundeiro não é afectada, pois não há alteração dos poderes incidentes sobre o solo, mas somente uma diferente titularidade dos mesmos. Mais significativa se diria, até, à primeira vista, uma outra objecçao, fundada agora na circunstancia de o direito de o superfície poder ser temporário, enquanto o direito de propriedade horizontal se configura, na lei, como perpétuo. Ao qualificarmos este último como um tipo autônomo de direito real de gozo, demarcando-o da propriedade, afasta-se o aparente rigor do argumento. De qualquer modo, não se pode esquecer que, na situação em análise, o titular do direito à fracçao é primordialmente superficiário e só depois condomínio.
Cumpre, finalmente, salientar, sem pretender dar ao argumento valor decisivo, a circunstancia de ser prática social e jurídica corrente a existência de edifícios sobre que incide um direito de superfície constituído em propriedade horizontal, sem que se tenham verificado, a este respeito, dúvidas, tanto na titulação notarial, como na inscrição registral do correspondente negócio.”
Henrique Viegas[24], por sua vez, considera incabível a constituição de uma propriedade horizontal sobre um imóvel concedido em superfície, em razão da dificuldade já apontada. Todavia, vislumbra a seguinte possibilidade:
“Nada impede que as partes, dentro da faculdade que possuem de pactuar, estabeleçam uma figura semelhante à da propriedade horizontal. Basta que o acordo mencione, especificamente, que o objeto do direito de superfície é a construção de uma edificação a ser dividida em unidades, facultada a sua cessão pelo superficiário a terceiros, pelo tempo que durar a concessão da superfície. Para caracterizar esta forma de propriedade, as partes poderão utilizar-se de algumas normas relativas aos condomínios em edifícios contidas no Código Civil de 2002, desde que não contrariem a natureza jurídica do direito de superfície.”
10 - o aspecto temporal do instituto.
O Nosso Código Civil, de forma clara, não admite a superfície perpétua.
Igualmente, o Estatuto da Cidade, pois prazo indeterminado a que se refere a lei especial não se coaduna com a noção de perpetuidade.
Como não estabeleceu prazo máximo, é fácil burlar a proibição quanto a perpetuidade, bastando, por exemplo, que as partes estabeleçam um direito de superfície de 1000 anos.
Por isso, melhor a legislação que estabelece o tempo máximo de duração: 99 anos no direito inglês; Bélgica 50 anos;. Áustria mínimo 38 e máximo 80 anos; Espanha 75 anos quando instituído por pessoa de direito público e 99 anos entre particulares.
11- constituição, transmissão e extinção.
11.1-Constituição.
Tanto na disciplina do CC, quanto do EC, o direito de superfície somente se constitui por escritura pública registrada no cartório do Registro de imóveis.
Destarte, ainda que o valor do direito de superfície seja inferior ao limite de 30 salários mínimos estabelecidos no artigo 108 do CC, impõe-se a forma pública, o que não deixa de ser uma contradição.
Se para transmitir o direito real mais abrangente -- direito de propriedade--, se dispensa a escritura pública na hipótese de imóvel com valor inferior a 30 salários mínimos, não haveria razão para tratamento diferenciado quanto ao direito de superfície.
De qualquer sorte, é salutar a exigência, uma vez que a complexidade do instituto exige a intervenção de um profissional do direito familiarizado com a matéria e imparcial, que poderá, inclusive, evitar problemas no momento da inscrição do título no registro imobiliário.
Questão que causa certa polêmica é a de saber se é ou não possível surgir o direito de superfície pelo usucapião.
Legislações alienígenas, como a de Macau e da Alemanha, admitem expressamente o usucapião sobre a propriedade superficiária.
Os legisladores de ambos os diplomas que tratam do tema não previram, expressamente, tal hipótese, possivelmente em razão de ser difícil identificar se o possuidor age como dono em relação ao solo ou só em relação à superfície.
A omissão, assim, parece ter sido proposital.
José Guilherme Loureiro[25] , entretanto, sustenta o cabimento do usucapião, afirmando o seguinte:
“Cumpre ressaltar, ainda, que alguém seja possuidor de boa-fé e justo título embora tenha adotado as cautelas legais para a aquisição do direito de superfície (vg., mediante contrato por instrumento público), pode ocorrer que o título fosse eivado de nulidade, desconhecida do adquirente(v.g., aquisição a non domino). Nada impede que o possuidor de boa-fé venha, verificada a prescrição aquisitiva, a usucapir a superfície”.
Essa matéria, como muitas outras, será resolvida pela doutrina e pelo trabalho jurisprudencial, como adverte Ricardo Lira:
“Entendemos que o direito de superfície, como está previsto nos dois diplomas legais, no novo Código Civil e no Estatuto da Cidade, deve sofrer o impacto da experiência vivida, deve receber as achegas do direito aplicado, mas, no entanto, não excluímos a possibilidade de que, dentro de algum tempo, nova formulação seja adotada...”.
11.2- A Transmissão do Direito de Superfície.
O direito de superfície pode ser transmitido por ato inter vivos ou mortis causa.
Ao contrário do que ocorre com a enfiteuse, em que é devido o laudêmio, não pode haver pagamento de importância pela transmissão, na forma do parágrafo único do artigo 1372 do CC.
Tal regra, embora não prevista expressamente, deve ser aplicada também aos casos submetidos ao Estatuto da Cidade.
Nesse sentido, veja-se Silvio Sálvio Venosa[26]:
“Essa proibição não é mencionada no Estatuto da Cidade e pode dar margem à interpretação que não se aplica às concessões de superfície urbana. A nosso ver, essa restrição deve permanecer em qualquer caso, pois o Código Civil deve ser empregado supletivamente no que for omissa a lei especial”.
De qualquer modo, deve ser observado o direito de preferência recíproco entre fundeiro e superficiário, pois o objetivo é consolidar em um única pessoa a propriedade ( artigo 22 EC e 1373 CC )
O descumprimento do direito de preferência não gera a nulidade do ato. Logo, vedado ao oficial registrador ou ao tabelião exigir prova do alienante no sentido de que notificou os interessados.
Há quem sustente que o descumprimento da norma implicaria em dever de indenizar. A maioria, com razão, entretanto, considera aplicável, por analogia, a norma do artigo 513 do Código Civil, cabendo ao prejudicado realizar, no prazo de 6 meses, o depósito do preço, adjudicando a propriedade.
Sobre esta questão, veja-se J. Miguel Lobato Gómez[27]:
“tampouco será muito fácil dar solução satisfatória a estes problemas acudindo, como propõe venosa, ao regime geral da preempção ou preferência estabelecido, em sede de contrato de compra e venda, pelos artigos 513 do próprio código. Porem, é a única possibilidade lógica de preencher o vazio deixado pelo legislador.” RTDC página 89.
Marco Aurélio Bezerra de Melo[28], por sua vez, invoca os artigos 28 e 29 da Lei 8.245/91;
Também se transmite o direito aos herdeiros por morte do superficiário, na forma do 1.372 CC.
11.3 - Extinção da Superfície.
O direito de superfície se extingue nas seguintes hipóteses: a) término do prazo; b) perecimento do solo; c)dar destinação diversa da contratada; d) desapropriação; e) distrato f) renúncia g) pela reunião na mesma pessoa da qualidade de fundiário e de superficiário
A extinção não gera direito de indenização para o superficiário para cobrir os gastos tidos com a construção ou plantação, salvo estipulação em contrário, na forma do artigo 1375 NCC.
J. Miguel Lobato Gómez[29] considera não ser possível o pacto que atribua a construção ao superficiário, findo o prazo de vigência do contrato:
“Apesar de todas estas razoáveis considerações, parece mais ajustado ao direito pensar , como faz intuitivamente a maioria dos autores que se ocupam do tema, que o pacto em contrário a que aludem estas normas se refere à indenização em favor do superficiário e não à reversão do edificado. (posição do legislador espanhol no artigo 289, 3 do Tr de 1992).
Não vejo, todavia, nenhum inconveniente, seja de ordem econômica, seja de natureza técnica, para que isto não possa ser contratado, sendo, por vezes, necessário para a consecução de resultados sociais a que se presta a utilização do direito superficiário, como no exemplo citado no capítulo referente ao alcance prático do instituto.
12 - O aspecto registral.
Há sistemas registrais, como o alemão e o suíço, que adotam a solução de considerar o direito de superfície quase que um imóvel distinto, abrindo-se matrícula para essa nova forma de propriedade.
Ao término do contrato esse matrícula autônoma seria encerrada, voltando-se a utilizar aquela originalmente aberta.
Apesar de advogar essa idéia, Frederico Viegas[30], reconhece que, diante da legislação em vigor, não se pode imaginar um fólio registral autônomo para o direito de superfície.
Como direito real que é, a superfície será constituída pelo registro na matrícula do imóvel que irá abrigar esse novo direito.
Por outro lado, no momento da extinção do direito, bastará fazer uma averbação dando conta desse fato, como se verifica da simples leitura dos artigos 1369 do Código Civil, artigo 24, 2º, EC , 167, I, 39 e 167, II, 20, da LRP.
Notas
* Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho é Registrador e ex-Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro.
[1]O Código Civil de 1916 não albergou esse direito real. Todavia, no direito primitivo brasileiro, embora não houvesse regramento específico, houve aplicação do instituto. Nesse sentido, veja-se Frederico Henrique Viegas de Lima, em seu livro Direito Imobiliário Registral Na Perspectiva Civil-Constitucional, Editora Sergio Antonio Fabris, página 201, invocando textos de Teixeira de Freitas e Pontes de Miranda, que informam ter sido empregado o direito superficiário no século XIX nas plantações de coco, onde os coqueiros não pertenciam ao dono do solo.
[2] Lobato Gómez, J. Miguel. A disciplina do direito superficiário no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito Civil número 20 out/dez 2004, Editora Padma página 90.
[3] Francisco, Caramuru Afonso. Estatuto da Cidade Comentado, Editora Juraez de Oliveira, página 176.
Também incidiria, para alguns autores, na espécie, o princípio lex superior derogat inferiori, na medida em que o EC foi editado para regulamentar os artigos 182 e 183 da CF/88, tendo natureza de lei complementar. Nesse particular, não concordo com a argumentação, uma vez que o EC não se enquadra na definição legal de lei complementar, cujo processo legislativo é mais restritivo. Todavia, há quem veja hierarquia no caso simplesmente porque a lei foi editada em obediência a um comando constitucional.
[4]Diniz, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Editora Saraiva, 8 edição, página 78.
[5] Poderá haver dificuldade de identificar, no caso concreto, qual o regramento a ser aplicado, já que, por vezes, é difícil identificar um aproveitamento econômico sem qualquer relação com o direito urbanístico.
[6] Pereira Lira, Ricardo. O direito de Superfície e o Novo Código Civil. Revista Forense 364/ 251.
[7]Menezes Cordeiro. A. Direitos Reais. Lex. Editora, Página 709, observa que em Portugal quando o direito de superfície é constituído por particulares aplica-se o CC, ao passo que incide a legislação especial quando é instituído pelo Estado ( superfície administrativa em contraposição à superfície civil).
[8] Loureiro, Francisco Eduardo. Alguns Aspectos sobre o Novo Código Civil e o Urbanismo.Temas de Direito Urbanístico 4. Imprensa Oficial, página 177.
[9] Lima Marques, Cláudia. Superação das Antinomias Pelo Diálogo das Fontes. Revista de Direito do Consumidor 51/ 34- 67.
[10] Lobato Gómez, J. Miguel. Ob. cit, página 93.
[11] Braga Teixeira, José Guilherme. Direito Real de Superfície.Saraiva, 1993, página 118.
[12] Lobato Gómez, J. Miguel. Ob. cit. pág. 70
[13] Rosenvald, Nelson. Direitos Reais Lúmen Júris Editora, página 403.
[14] Loureiro, Luiz Guilherme. Ob. cit. página 273.
[15] Oliveira Ascensão, José. Direitos Reais, Coimbra Editora, 5 edição, página 525.
[16] Mota, Maurício. http.www.uerj.br-direito/pubicacoes/maruício-mota/mm 2html.
[17] Invocado por Frederico Henrique Viegas de Lima. Direito Imobiliário Registral na Perspectiva Civil-Constitucional. Sergio Antonio Fabris Editor, página 203.
[18] Adiante se examinará a possibilidade de a propriedade se consolidar na figura do superficiário e não nas mãos do fundeiro, como, normalmente, acontece no direito superficiário.
[19] Nesse sentido, veja-se Viegas Lima, Frederico Henrique. O Direito de Superfície Como Instrumento de Planificação Urbana. Renovar, página 379.
[20]Pereira Lira, Ricardo. Ob citada. Em igual sentido, veja-se também Fernando Dias Menezes de Almeida. Estatuto da Cidade. Comentários, 2002, página 117-118.
[21] Zanella di Pietro, Maria Sylvia. Direito de Superfície, Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001), coords. Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz, Malheiros Editora, pagina 181.
[22] Viegas Lima, Frederico Henrique. Ob.cit, pág. 300.
[23] Carvalho Fernandes, Luis A. Lições de Direitos Reais. Quid Júris. Lisboa, página 403-404.
[24] Viegas Lima, Frederico Henrique, ob.cit, pág. 383-384.
[25] Loureiro, Luis Guilherme. Ob. cit, página 267.
[26] Venosa, Silvio Sálvio. Direito Civil. Vol. IV. Direitos Reais. 3 edição, Atlas, pág. 473.
[27]Lobato Gomes, J. Miguel. Ob. Cit, pág. 89
[28] Bezerra de Melo, Marco Aurélio. Código Civil Comentado. Lúmen Iuris. Página
[29] Lobato Gómez, J. Miguel. Ob. cit. páginas 106-107.
[30] Viegas Lima, Frederico Henrique. Ob. cit. , pág. 337.
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