O ganho de capital na lei 11.196/2005: parte final
Adriano Ebolato Melo
No Boletim Eletrônico n.º 2398 (BE 2398) de 20 de abril passado, comentamos alguns pontos relacionados com a isenção do imposto de renda sobre o lucro imobiliário na Lei n.º 11.196, de 21 de novembro de 2005.
Naquela oportunidade, foi abordado o artigo 39 e o alcance da “venda/aquisição de imóveis residenciais”.
De lá para cá, outros pontos de discussão nos foram trazidos por colegas registradores e por usuários do tabelionato.
Esses últimos, ainda um pouco atordoados pelo alcance que a Receita Federal do Brasil (RFB) acabou por conferir às disposições da lei, quando da divulgação dos aplicativos disponibilizados em seu site para utilização na declaração do imposto do contribuinte relativo ao exercício 2005, particularmente o “Demonstrativo da Apuração dos Ganhos de Capital da Declaração de Ajuste Anual”.
Importante se frisar que, embora obrigatória a declaração dessas informações na DIRPF, Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física, anualmente até o último dia útil do mês de abril, a data para vencimento do imposto relativo ao ganho nas operações imobiliárias sempre será o último dia útil do mês subseqüente à operação.
Assim, pouco tempo é conferido ao contribuinte para decidir se resta ou não auto-enquadrado na hipótese da lei de isenção, que, relembre-se é irretratável.
Voltemos por derradeiro ao assunto para tratar de dois outros aspectos da legislação, deixados de lado no BE 2398, mas que pela relevância teórica e prática da matéria, mormente em eventuais medidas administrativas e/ou judiciais desejadas pelo contribuinte, para que se veja amparado pela norma de isenção, devem ser aqui abordados.
O primeiro ponto, embora disciplinado pela Instrução Normativa n.º 599, de 28/12/2005, parece padecer de inúmeros equívocos jurídicos, os quais, espera-se, sejam reparados pela administração, ou, em pior sorte, afastados por nossos tribunais. Trata-se da limitação ao objeto dos negócios jurídicos previstos na Lei n.º 11.196/2005.
Diz a norma regulamentadora editada pela então Secretaria da Receita Federal:
“Art. 2º Fica isento do imposto de renda o ganho auferido por pessoa física residente no País na venda de imóveis residenciais, desde que o alienante, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contado da celebração do contrato, aplique o produto da venda na aquisição, em seu nome, de imóveis residenciais localizados no País.”
...
§ 11. O disposto neste artigo não se aplica, dentre outros:
I - à hipótese de venda de imóvel residencial com o objetivo de quitar, total ou parcialmente, débito remanescente de aquisição a prazo ou à prestação de imóvel residencial já possuído pelo alienante;
II - à venda ou aquisição de terreno;
III - à aquisição somente de vaga de garagem ou de boxe de estacionamento.”
Não nos insurgimos quanto à limitação do inciso primeiro do artigo em questão, pois como já dito anteriormente, tendo sido o objetivo principal da lei promover o incremento do tráfico imobiliário, razão não assistiria ao contribuinte que desejasse obter o privilégio tributário em negócio jurídico anterior a venda do imóvel residencial cuja alienação implicou ganho de capital.
Entretanto, as outras duas vedações à aplicação da lei, parecerem absolutamente descoladas do instituto criado pelo legislador, limitações estas nascidas da competência regulamentadora que detém o órgão vinculado ao Poder Executivo.
Sabe-se que o conteúdo e a amplitude da regulamentação da lei deve guardar sempre coerência com ela. Quando a norma infra legal extrapola os comandos do legislador padecerá de vício de legalidade. Isto porque, ao contrário da lei, fonte primária do direito, o regulamento e todos os atos emanados do Poder Executivo são fontes secundárias[1].
Ademais, o conteúdo do princípio da legalidade tributária vai além da simples autorização do Legislativo para que o Estado cobre tal ou qual tributo. Na lição do sempre citado Luciano Amaro[2], “É mister que a lei defina in abstracto todos os aspectos relevantes para que, in concreto, se possa determinar quem terá de pagar, quanto, a quem, à vista de que fatos ou circunstâncias”.
Desta feita, a lei em seu artigo 39 e seus parágrafos já definiu por exclusão todos os aspectos pertinentes ao fato gerador – apenas incidirá o imposto de renda sobre o ganho de capital nos negócios jurídicos de venda e aquisição de imóveis urbanos ou rurais que não se encaixarem no alcance do conceito de imóvel residencial, apresentado no Boletim Eletrônico n.º 2398 do IRIB.
Não tem, portanto, a autoridade administrativa o poder de decisão no caso concreto, se o tributo é ou não devido e qual o seu quantum debeatur.
A lei, e somente ela, é o pressuposto necessário e indispensável à materialização da atividade administrativa. Não se trata de simples preeminência da lei, mas sim de reserva absoluta da lei.
Se não fosse assim, estaria quebrada a relação de isonomia que deve guardar todos os contribuintes que negociam imóveis em situações idênticas, porém por títulos ou nome iuris diversos, ou objetos distintos. A regra da isonomia prevê apenas o tratamento distinto, quando há alguma reparação ou compensação a ser efetuada face à inferioridade de determinado grupo social, como, por exemplo, em razão de condições físicas particulares ou situação econômica inferior: balanceia-se uma equação originariamente desbalanceada.
No caso dos incisos segundo e terceiro acima transcritos a equação foi desbalanceada, porém, onde não deveria tê-lo feito a autoridade administrativa.
Isto porque a extensão que o legislador quis dar ao conceito de imóvel residencial não pode ser mutilada ou delimitada pela regulamentação pura e simples do órgão executivo.
Não se pode afastar esse ou aquele bem, objeto do negócio imobiliário, amparado pela norma de isenção, se a destinação do mesmo também não se afastar do conceito de imóvel residencial.
Assim, a venda ou a aquisição de terreno em loteamento regular ou a alienação do mesmo em bairro localizado em área residencial teria qual outra destinação que não a residencial? Difícil de obter resposta em sentido diverso.
De similar situação a aquisição de vaga de garagem ou de boxe de estacionamento com exclusiva destinação residencial, v.g., os situados em condomínios de prédios residenciais.
De outro lado, a ausência de edificação no terreno não pode constituir óbice ao contribuinte em se ver agasalhado pelo manto da norma.
A adjetivação residencial já foi abordada em momento anterior (BE 2398). Agora, querer se afastar do conceito do Direito Privado de imóvel, colocando como requisito a existência de acessões ou benfeitorias, não encontra amparo na lei que introduziu a isenção, tampouco no Código Civil:
“Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.
Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:
I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;
II - o direito à sucessão aberta.
Art. 81. Não perdem o caráter de imóveis:
I - as edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local;
II - os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem.”
Nesse sentido, a doutrina costuma utilizar indistintamente os vocábulos imóvel e prédio, sendo este último sempre empregado, máxime em sentido jurídico, como terreno, quer de grande ou de pequenas dimensões, contendo, ou não, edificação[3].
Logo, a conclusão para esse caso parece ser simples: se o legislador tributário não quis afastar as duas hipóteses comentadas ou outras quaisquer, claro que a norma regulamentadora não poderia fazê-lo, sob pena de flagrante ilegalidade.
Entretanto, face à vigência e aplicabilidade da Instrução Normativa n.º 599/2005, que peremptoriamente afasta o contribuinte enquadrado nas situações descritas ou similares da isenção do imposto, deve o mesmo buscar autorização judicial para se subsumir aos termos da lei, ou, alternativamente, intentar consulta ao órgão competente a fim de que se resguarde da aplicação de penalidades, nos termos do art. 161 do Código Tributário Nacional (CTN).
O segundo ponto a ser abordado é também outro “avanço” que a autoridade administrativa impôs unilateralmente à dicção da lei.
Essa percepção só veio à tona quando da utilização dos aplicativos para apuração do imposto de renda disponíveis no web site da Receita Federal do Brasil.
Três são os aplicativos recentemente disponibilizados: “Ganho de Capital 2005 – versão 1” para alienações ocorridas até 15/06/2005, e desde que não tenha havido nova alienação após essa data; “Ganho de Capital 2005 – versão 2” para alienações ocorridas entre 16/06/2005 e 31/12/2005 e “Ganho de Capital 2006 ”, utilizado para alienações ocorridas a partir de 01/01/2006.
Até o momento em que o contribuinte não dispunha das ferramentas eletrônicas, deveria ele calcular o percentual da isenção a que tinha direito.
Relembremos brevemente as novidades introduzidas pela Lei n.º 11.196/2005:
1) Aumento do teto da isenção no ganho de capital para venda de um único imóvel em um mesmo mês: passou de R$ 20.000,00 para R$ 35.000,00;
2) Redução proporcional do imposto de renda sobre o ganho de capital, desde que utilizasse parte ou todo o produto da venda obtido em até 180 dias da assinatura da escritura ou do contrato;
3) Aproveitamento de benefícios concedidos por legislação anterior e não utilizados até então;
4) Introdução de 04 (quatro) fórmulas de cálculo de redução do imposto, dependendo da época de aquisição do imóvel, da data da alienação deste e da data da nova aquisição.
Clara a dificuldade de obtenção da base de cálculo do imposto e da efetiva redução segundo cada caso em concreto, considerando que o contribuinte e demais profissionais envolvidos com o assunto dispunham apenas da redação da medida provisória e da lei até 28/12/2005, data da edição da instrução normativa, e apenas em fevereiro/2005 dos aplicativos para apuração do imposto segundo as regras editadas.
Especificamente quanto ao item 3, assim tratou a lei:
Lei n.º 11.196/2005:
“Art. 40 Para a apuração da base de cálculo do imposto sobre a renda incidente sobre o ganho de capital por ocasião da alienação, a qualquer título, de bens imóveis realizada por pessoa física residente no País, serão aplicados fatores de redução (FR1 e FR2) do ganho de capital apurado
...
§ 2o Na hipótese de imóveis adquiridos até 31 de dezembro de 1995, o fator de redução de que trata o inciso I do § 1o deste artigo será aplicado a partir de 1o de janeiro de 1996, sem prejuízo do disposto no art. 18 da Lei no 7.713, de 22 de dezembro de 1988.” (grifos nossos)
A obtenção do privilégio criado, para os imóveis adquiridos até 31/12/1988, não poderia afastar outro já existente e instituído pela Lei n.º 7.713/88 que dispôs:
“Art. 18. Para apuração do valor a ser tributado, no caso de alienação de bens imóveis, poderá ser aplicado um percentual de redução sobre o ganho de capital apurado, segundo o ano de aquisição ou incorporação do bem, de acordo com a seguinte tabela:
Ano de Aquisição ou Incorporação |
Percentual de Redução |
Ano de Aquisição ou Incorporação |
Percentual de Redução |
Até 1969 |
100 |
1979 |
50 |
1970 |
95% |
1980 |
45% |
1971 |
90% |
1981 |
40% |
1972 |
85% |
1982 |
35% |
1973 |
80% |
1983 |
30% |
1974 |
75% |
1984 |
25% |
1975 |
70% |
1985 |
20% |
1976 |
65% |
1986 |
15% |
1977 |
60% |
1987 |
10% |
1978 |
55% |
1988 |
5% |
A leitura da lei (com a redação similar a da Medida Provisória 252 – “MP do Bem”) foi assim compreendida pela imensa maioria de seus intérpretes:
“MP prevê isenção do IR na compra e venda de imóveis
...
Outro benefício da medida provisória, de acordo com ele, é que se a aquisição for anterior a 31 de dezembro de 1988 o redutor do ganho agora criado não prejudica a aplicação do redutor já existente (5% para cada ano). Segundo Branco, as aplicações são cumulativas. Ou seja, se um imóvel foi adquirido em 1980 e vendido esse ano aplica-se primeiro o redutor do ganho de 5% nos últimos oito anos (fórmula prevista até 1988). E a nova fórmula será aplicada desde 1996 até a venda do imóvel. (in Gazeta Mercantil, 27/7/2005, grifos nossos)”.
Por esse ângulo de interpretação e composição das normas, dois são os percentuais de redução do ganho de capital, que é em outras palavras a base de cálculo do imposto: o percentual da Lei n.º 7.713/88 e outro, o percentual da Lei n.º 11.196/05.
Contudo, assim foi a normatização dada pela instrução normativa, declinando:
“Art. 3º Para a apuração da base de cálculo do imposto sobre a renda incidente sobre o ganho de capital por ocasião da alienação, a qualquer título, de bens imóveis realizada por pessoa física residente no País, serão aplicados fatores de redução do ganho de capital apurado.
§ 1º A base de cálculo do imposto corresponderá à multiplicação do ganho de capital pelos fatores de redução, que serão determinados pelas seguintes fórmulas:
...
§ 2º Aplicam-se, sucessivamente e quando cabíveis:
I - a redução prevista no art. 18 da Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988, na alienação de imóvel adquirido até 31 de dezembro de 1988.” (grifos nossos)
A percepção da diferença das expressões utilizadas – cumulativamente e sucessivamente, impôs uma apuração do imposto a maior, e, para aqueles que a perceberam tardiamente também a aplicação das penalidades decorrentes (juros à Taxa SELIC mais multa).
Isto porque, se aplicados os percentuais relativos à redução de forma cumulada, ou seja, somando-se um ao outro, e após multiplicando-se pela base de cálculo, o benefício final do contribuinte seria maior do que aquele efetivamente praticado pela Receita Federal.
Pelos aplicativos citados, primeiro o contribuinte deve oferecer a base de cálculo do IRPF ao percentual da Lei 7.713/88; o resultado então obtido, oferecer aos percentuais introduzidos pela Lei 11.196/05.
Vejamos um exemplo:
Imóvel adquirido em 1976 com venda em dezembro/2005, obterá pela regra da aplicação cumulativa dos percentuais:
- 65% pela Lei n.º 7.713/88
- 51,26% pela Lei 11.196/05 (50,92% - primeiro fator de redução + 0,34% - segundo fator de redução)
- Percentual total efetivo de redução: 116,26% - isenção total do tributo
Mesmo imóvel adquirido em 1976 com venda em dezembro/2005, obterá pela regra da aplicação sucessiva dos percentuais:
- 65% de redução da base de cálculo pela Lei n.º 7.713/88 – Saldo n. 1º igual a 35% da base de cálculo;
- 50,92% de redução sobre o saldo n.º1 (primeiro fator de redução da Lei 11.196/05) – Saldo n.º2 correspondente a 17,18% da base de cálculo;
- 0,34% de redução sobre o saldo n.º2 (segundo fator de redução da Lei 11.196/05) – Saldo Final de 17,12% da base de cálculo
- Percentual total efetivo de redução: 82,88% - isenção parcial do tributo
Mais uma vez, deparamo-nos com a norma infra legal violando disposição da norma jurídica positivada.
Se o contribuinte tinha um benefício pela lei anterior que se consubstanciava em um percentual de redução da sua base de cálculo do imposto e a lei superveniente, sem qualquer víeis de revogação (ab-rogação ou derrogação) permitiu fosse somado, acrescido, jungido outro percentual da mesma natureza, não se há falar em aplicação de qualquer artifício matemático para penalizar o contribuinte.
Se o legislador o quisesse fazer teria trazido na norma jurídica a disposição que visasse subtrair o alcance do benefício: é novamente o princípio da reserva absoluta da lei.
Por fim, necessário o registro que não se trata de interpretação extensiva da norma de isenção, ou integração por analogia, apenas é o caso de adequação de uma regra jurídica anterior à outra de idêntica natureza, que não pode sofrer mutação sem a intervenção obrigatória do legislador.
Notas
* Adriano Erbolato Melo é o 3. º Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos de Presidente Prudente-SP.
[1] Lenza, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 8.ª ed., São Paulo, Editora Método, 2005, p. 300
[2] Amaro, Luciano. Direito tributário Brasileiro, 11. ª ed. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 112
[3] Teixeira, José Guilherme Braga, Servidões, 1.ª ed, São Paulo, Lejus, 1997, p.12
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