O protesto de cota condominial.
Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho
1 - os equivalentes jurisdicionais e o notariado.
Não cabe neste trabalho aprofundar a discussão das causas da morosidade da justiça, normalmente identificada, dentre outras, pelo excessivo número de demandas e de recursos, falta de um eficiente gerenciamento dos serviços judiciais e o pequeno número de juízes para atender a uma demanda exponencialmente crescente.
Este é um problema recorrente em todos os países e não um fenômeno exclusivamente brasileiro.
É certo que o tempo do processo não pode ser o mesmo tempo de outros serviços que não guardam qualquer relação com a natureza da prestação jurisdicional.
Não é possível, todavia, deixar de reconhecer que o modelo atual é insuficiente para atender às novas exigências sociais, sendo imperioso buscar formas alternativas para a solução dos conflitos, visando diminuir a excessiva carga de trabalho a que estão submetidos nossos juízes.
Muitas medidas têm sido implantadas com esta finalidade, valendo citar, a título de ilustração, os institutos da arbitragem, da mediação e dos juizados especiais, sendo o momento de incluir a atividade notarial como importante instrumento para a redução do número de processos judiciais.
O notariado – uma instituição ainda desconhecida e incompreendida – muito tem a contribuir para alterar o quadro antes retratado, bastando que se transfiram para ela os procedimentos de jurisdição voluntária que, pela sua natureza, dispensem a intervenção judicial, como, por exemplo, separações e inventários consensuais em que não houver interesse de menores, como aliás está previsto no Projeto de Lei nº 4979/2001, de autoria do deputado federal Silvio Torres, PSDB-SP.
2 - o instituto do protesto e seu alcance social.
No que diz respeito especificamente ao tabelionato de protesto, apesar da resistência de parte da doutrina em utilizá-lo com maior abrangência, é inegável o seu alcance social.
Não fosse esse serviço, estima-se que quase 100.000 novas ações executivas seriam propostas, mensalmente, só no Estado do Rio de Janeiro, causando efeitos deletérios ao já abarrotado aparelho judicial.
Exemplo sempre lembrado do bom manejo deste instituto é o caso do processo de falência da sociedade comercial Mappin, no qual o juiz determinou o protesto dos títulos em que o falido aparecia como credor, possibilitando, com esta medida, o pagamento dos empregados da massa falida.
Além de comprovar o inadimplemento (artigo 1º da Lei 9792/97), existem muitos outros efeitos decorrentes do protesto não declarados na mencionada lei, como, por exemplo, o de assegurar o direito de regresso contra os endossantes do título cambial, assim como interromper a prescrição (artigo 202, III, do Código Civil ).
Na prática, entretanto, o apresentante do título utiliza o protesto como legítimo instrumento de pressão para obter o recebimento do crédito, sabedor que, na maioria dos casos, alcançará seu objetivo (estima-se que, pelo menos, 60% dos títulos apresentados são pagos antes da lavratura do protesto).
Ressaltando esse caráter e sustentando sua legitimidade, especialmente após a Lei 9492/97, veja-se a análise de Luiz Ricardo da Silva ([1]):
(...) Ato probatório? Sem dúvida, principalmente quando se fala de títulos de crédito. Ato Coativo? Com certeza, mas a coação aqui não deve ser vista como um acontecimento maléfico, prejudicial a alguém. A coação, neste caso, tem um aspecto funcional, isto é, ao mesmo tempo que busca solucionar uma pendência, permite ao Poder Judiciário se libertar para julgar outras lides que realmente merecem a sua atenção e que, muitas vezes, são prejudicadas pela quantidade exacerbada de ações que superlotam este Poder”.
A verdade é que os juristas ficam apegados a fórmulas e técnicas jurídicas ultrapassadas, resistindo a mudanças e renovações de velhos institutos, como acontece com o protesto, entravando com esta postura o desenvolvimento econômico e social.
Por todas essas razões, impõe-se que a atividade interpretativa seja feita no sentido de, respeitando-se os parâmetros legais, possibilitar o protesto de títulos legítimos e não no sentido de restringir o uso desse poderoso instrumento, somente em nome de um anacrônico e injustificável formalismo.
3 - possibilidade do protesto da cota condominial.
O protesto, na sua atual conformação, não se presta, tão-somente, para os títulos cambiários ou a eles equiparados, alargando o legislador, sobremaneira, o rol de títulos que podem ser protestados ([2]).
Esta mudança vem ao encontro da necessidade impostergável de diminuir o número de procedimentos judiciais e de valorizar o crédito.
Nesse diapasão, a Lei de Notários e Registradores (Lei 8935/94), no seu artigo 11, já se referia a documento de dívida, não mais limitando o instituto para os títulos cambiários ou cambiariformes.
A Lei nº 9492/97, por sua vez, deixa claro no artigo 1º, que não só títulos como outros documentos de dívida podem ser protestados. A mencionada lei faz referência a “outros documentos de dívida” em diversos outros artigos (1º, 3°, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 17º).
Note-se que, mesmo no regime anterior à Lei nº 9492/97, já se admitida o protesto de documentos que não fossem cambiários, como o contrato de câmbio, o contrato de alienação fiduciária, os contratos de compra e venda com reserva de domínio, além de outros títulos para fins de falência.
Os operadores do direito, entretanto, não perceberam, de início, a profunda mudança introduzida, de sorte que, a despeito da referência expressa da lei, continuaram os doutrinadores a mencionar somente o protesto cambial, esquecendo-se dos documentos de dívida.
A inovação não tardou a ser percebida pelos doutrinadores ([3]) e pelos tribunais, mas continuava haver dúvida quanto ao alcance da expressão “documento de dívida”.
Alguns, equivocadamente, consideram ([4]) que documentos de dívida seriam os títulos executivos judiciais e extrajudiciais enumerados nos artigos 584 e 585 do Código de Processo Civil.
O correto, salvo melhor juízo, é considerar que a expressão “títulos” empregada no artigo 1º da Lei nº 9492/97 englobaria não só os títulos de crédito, como também os títulos executivos judiciais e os títulos executivos extrajudiciais, não sendo estes últimos, portanto, encartados no conceito de “documento de dívida”.
Seja como for, não haveria qualquer restrição para que fosse efetuado o protesto do encargo condominial, desde que comprovado por contrato escrito, uma vez que, nestas circunstâncias, é considerado título executivo extrajudicial, na forma do inciso IV do artigo 585 do CPC.
Luiz Fux ([5]) , entretanto, ensina que o dispositivo em comento refere-se, tão-somente, àqueles casos em que a cota condominial decorre de um contrato de locação pelo qual o inquilino obriga-se ao pagamento das cotas condominiais e não à hipótese em que o ente formal cobra o débito do condômino, caso em que se aplicaria o rito sumário, na forma do artigo 275, II, do Código de Processo Civil.
Na hipótese do artigo 585, IV, do CPC, o que se estará protestando e, eventualmente, executando judicialmente, é uma dívida consubstanciada num contrato de locação e não propriamente a cota condominial.
Basta, pois, o credor apresentar o contrato, devidamente instruído com a planilha de cálculos, para que se proceda ao protesto.
Todavia, na hipótese mais corriqueira, em que a cota condominial não constitui título executivo extrajudicial, devendo ser cobrada pelo procedimento sumário (artigo 275,II, b, do CPC), seria possível o manejo do protesto?
A resposta afirmativa se impõe como se passará a demonstrar.
A executividade do título ou do documento não é condição necessária para se lavrar o protesto. Nunca se negou a possibilidade de haver protesto de títulos que, porventura, não mais ostentassem o atributo da executividade.
Não cabe ao interprete criar restrições onde a lei não restringe, máxime se não há qualquer ataque a dispositivos legais ou a qualquer princípio de direito.
Ao revés, o protesto na hipótese aventada é extremamente eficaz, tendo inegável alcance social.
Em termos genéricos, documento de dívida seria todo escrito que represente uma dívida, em dinheiro, de alguém para com outrem.
Vê-se, pois, que o legislador não erige a executividade como elemento caracterizador do documento de dívida, de sorte que absolutamente injustificável e contrária ao espírito da lei nº 9492/97 qualquer restrição ao alcance da norma que estabelece a possibilidade de protestar-se documento de dívida.
Entretanto, é preciso esclarecer que estes documentos de dívida devem se sujeitar a determinados parâmetros para que possam ser protestados, embora não expressamente enunciados. São eles os seguintes: certeza, liquidez e exigibilidade.
A certeza da cota condominial é inequívoca, uma vez que basta ao síndico apresentar certidão da matrícula da unidade condominial, demonstrando a condição de condômino para que este esteja obrigado a contribuir com as despesas de rateio.
Embora existam opiniões divergentes, predomina, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, o entendimento de que a obrigação de pagar as despesas de conservação da coisa comum possui natureza propter rem.
É que o artigo 1336, I, do Novo Código Civil, estabelece que tal obrigação incumbe ao condômino, onerando, portanto, aquele que ostenta essa qualidade no momento da constituição da obrigação.
Esse dever jurídico não decorre da manifestação de vontade do devedor, o que é um traço peculiar da obrigação propter rem, mas do simples fato de o sujeito passivo da obrigação apresentar a qualidade de titular de um direito real.
Vê-se, pois, que a obrigação de pagar cota condominial decorre da lei, não sendo necessária a manifestação do condômino autorizando a cobrança.
Registre-se que, a rigor, não é preciso sequer comprovar o registro da convenção condominial, uma vez que o parágrafo único do artigo 1333 do Novo Código Civil estabelece que tal registro somente tem o efeito de torná-la oponível a terceiros, significando que entre o condômino e o condomínio a obrigação existe, independentemente do registro.
Não teria sentido admitir-se o protesto de um título consensual, mas que pode ter sido obtido por meios ilegítimos ou em função de negócios jurídicos inexistentes e negar protesto a um título que consubstancia dívida que decorre da lei.
Veja-se que é bastante comum a propositura de ações anulatórias de títulos cambiais pela inexistência de relação jurídica entre as partes, como costuma acontecer na emissão de duplicatas frias.
Raras são, entretanto, as ações, ao menos ajuizadas com seriedade de propósito, em que se põe em dúvida a legitimidade da cobrança de cotas condominiais.
Desde que regularmente aprovadas pelas assembléias condominiais são devidas as despesas de rateio.
A prova deste fato será ministrada facilmente pelo apresentante do documento de dívida, bastando que exiba cópia da ata da assembléia que autorizou a despesa.
Por sua vez, o fato de não haver, eventualmente, assinatura do devedor na convenção ou na assembléia que deliberou sobre a realização da despesa, seja ordinária ou extraordinária, não lhe retira a certeza. Nesse sentido, veja-se opinião do Juiz Ricardo Alberto Pereira, ([6]) afirmando que “qualquer documento que demonstre que seja uma dívida pode ser protestado. Uma dívida não precisa necessariamente estar assinada”.
É que a convenção, uma vez aprovada, obriga os proprietários presentes, assim como aos futuros adquirentes das unidades.
Por outro lado, a cota condominial também é líquida, bastando que o apresentante demonstre que a verba cobrada foi autorizada em assembléia, na forma dos artigos 1341 e 1350 do Novo Código Civil.
O fato de ser necessária a apresentação de uma planilha discriminando os débitos, corrigindo a dívida e incluindo juros moratórios não descaracteriza sua liquidez, segundo posição doutrinária e jurisprudencial já há muito sedimentada.
Por fim, a cota condominial é exigível a partir do momento em que não paga na data estabelecida para o seu vencimento, sendo certo que a partir de então passam a incidir juros moratórios, na forma do parágrafo primeiro do artigo 1336 do Novo Código Civil.
Verifica-se, pois, que cota condominial atende a todos os requisitos para sua cobrança, que são os mesmos aos quais estão sujeitos um título executivo extrajudicial, embora não seja expressamente atribuída a ela tal condição pela lei processual civil.
Pelas razões já explicitadas, a cota condominial, a despeito de não se constituir título executivo (artigo 585 do CPC), é, inequivocamente, um documento de dívida, estando sujeita, portanto, a protesto, na forma do artigo 1º da Lei 9492/97.
* Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho é Tabelião e Ex-Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro.
[1] Da Silva, Luiz Ricardo. O Protesto de Documentos de Dívida. Norton Editor, página 117.
[2] Veja-se excelente artigo de Azeredo Santos, Theophilo. Observações sobre o protesto de títulos e documentos. Revista Forense, volume 346/160-163.
[3] Abrão, Carlos Henrique. Do Protesto. Livraria e Editora Universitária de Direito. Página 28 assevera que: “ Refletidamente, portanto, quaisquer títulos ou documentos que alicercem obrigações liquidas, certas e exigíveis, fazem parte dos indicativos instrumentalizados ao protesto (...).
[4] No Estado de São Paulo, por exemplo, a Lei Estadual 10.710/2000, considerou documento de dívida os títulos executivos judiciais e extrajudiciais. As normas da Corregedoria Paulista, por seu turno, só permite o protesto destes documentos de dívida para fins falimentares, o que não tem qualquer amparo legal.
[5] Fux, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. Forense. Página 1011. No mesmo sentido veja-se J. Nacimento Franco, em sua obra Condomínio, Editora RT, 1997, página 247, informa que “a cobrança das despesas de condomínio se faz pelo rito sumário, nos termos do artigo 275, II, c do CPC. O artigo 585, IV, fundamenta ação executiva de condômino contra seu inquilino, para reembolso de despesas de condomínio”.
[6] Esta opinião foi externada em palestra proferida no 5º Simpósio de Síndicos, consoante informação contida no sítio http://www.protestodetitulos.org.br/cota_condominio.htm
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