O Registro de Imóveis e o Processo Constituinte de 1988.
Ricardo Dip
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
O que me levou a aceitar o convite para apresentar o trabalho do Ricardo Dip foi a certeza de que ninguém lê a apresentação, ficando, portanto, eliminado qualquer risco de comprometimento do opúsculo.
Parece relevante, em primeiro lugar, despertar o interesse de todos para as discussões que a questão cartorária possa provocar na elaboração da constituição. Seja para provar a propriedade e a cidadania, seja para provar a própria existência, todos temos algum interesse nos cartórios. Assim, qualquer discussão há de envolver não apenas aqueles diretamente interessados - os cartórios -, mas todos os cidadãos, que todos temos direitos e interesses guardados e protegidos nas serventias.
"A Constituição e o Registro de Imóveis" tem, em segundo lugar, o, mérito de chamar a atenção para o íntimo relacionamento entre o direito de propriedade e o registro de imóveis. O tratamento que se der aos cartórios na carta maior terá reflexo direto na disciplina da propriedade. Se se pretender cuidar do cartório como se fora um foco de burocracia eliminável, ao direito de propriedade há de ser dado outro tratamento, porque, induvidosamente, não mais haverá segurança estática.
Outra virtude do trabalho é mostrar que a decantada oficialização do cartório é ilusória. A uma, porque ninguém consegue sustentar juridicamente que o serviço ainda não é público e prestado pelo Estado. A duas, porque, a pretexto de oficializar (rectius: estatizar), corre-se o risco de desorganizar.
A existência de falhas na estrutura atual ninguém nega. Mas sua correção deve levar ao aprimoramento e não ao lugar comum, ao ridículo estágio do serviço público no Brasil.
Para os estudiosos do registro de imóveis, o opúsculo serve a dois propósitos. Confesso que, dedicado apenas a estudos práticos da matéria, li avidamente o que escreveu o autor, sentindo-me, a final, vexado. Não acreditava que, em poucas páginas, pudesse haver tanta prova da superficialidade de meus estudos. Depois, para quem não o conhece, serve o trabalho para apresentar Ricardo Dip, nome que não mais será esquecido impunemente em qualquer estudo que se faça sobre direito registrário no Brasil.
São Paulo, abril de 1987.
NARCISO ORLANDI NETO
INTRODUÇÃO
A projetada edição de uma nova lei fundamental para o Brasil e a noticiada revisão normativa da Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015, de 31.12.73) reclamam, dos que vivem no mundo da registração imobiliária - a que se refere García Coni1 -, o exame crítico dos princípios, finalidade, organização e vicissitudes do registro predial pátrio.
Precedida de marcadas inclinações ideológicas, justificada pela teoria do pouvoir constituant de Siéyès2, assentada na indefinida e retórica volonté générale de Jean-Jacques Rousseau3, mais esta constituição política brasileira parece aguardar-se como uma criação ex nihilo, uma constituição - tal como observa José Pedro Galvão de Sousa - que "brota da mente do legislador, como Minerva irrompendo da cabeça de Júpiter"4.
A secularização política, originária da teoria da souveranineté de Jean Bodin, e a laicização jurídica, sobretudo com Grotius e Hobbes56, degeneraram no voluntarismo absolutista, primeiro das monarquias7, depois das democracias. Assim o resume Gounot, citado por Marcel Waline:
"Jusque-là l'édifice juridique repousait sur l'idée de loi naturelle, sur l'affirmation d'un ordre providentiel déterminé par Dieu, et par lui imposé aux hommes et aux sociétés. Les droits subjectifs des individus dérivaient de ce droit objectif primordial... Désormais, il n'y a plus d'ordre divin, plus de lois providentielles, les individus humains son conçus comme des êtres absolus, autonomes, qu'aucune volunté supérieure ne commande. A i'idée de loi naturelle s'est substituée celle de liberté naturrelle"8.
Diagnosticando-se na projetada constituição o que Oliveira Vianna chamava de "desapreço à realidade circundante - revelada pela observação - e à realidade experimental - revelada pela história"9, a tarefa de refletir acerca do registro imobiliário - quer como instituição, considerando-se as exigências de sua teleologia, seus princípios, sua adequação ao dinamismo social, - quer como organismo de serviço público, em que desponta o controvertido e atual problema de sua estatização -, a tarefa de refletir sobre a filosofia e a realidade do registro predial mais se impõe aos representados do que aos representantes políticos, e, entre aqueles, mais exige dos que têm particular dever de ciência e consciência da relevância de um sistema imobiliário registral hígido, atento à realidade circundante e histórica em que se situa.
O REGISTRO IMOBILIÁRIO, COMO INSTITUIÇÃO
Consiste o registro imobiliário, sob o aspecto institucional, em que um sistema de publicidade provocada e estável de situações jurídica prediais, que opera mediante inscriação de fatos jurídicos (lato sensu), e cuja finalidade é a de assegurar, formalmente, determinados interesses da comunidade.
O registro imobiliário está voltado às exigências da segurança estática do domínio e direitos reais menores sobre imóveis e da segurança dinâmica do comércio e do crédito predial. Por isso, López Medel inicia sua conferência "Filosofia de la Institución Registral y cambio social" com essa afirmação: "La filosofía de la Institución Registral responde - para decirlo resumidamente - a la idea de la Seguridad Jurídica."10. (Assinale-se que, ao cuidar-se da segurança jurídica imobiliária, não se versa propriamente acerca da teleologia registral mas da inteléquia dos registros prediais, da plenitude dessa instituição).
A segurança jurídica pressupõe organização social11, ordem eficaz e justa12, dado objetivo, estado de fato de que deriva a certeza jurídica13, elemento este subjetivo, a rigor reduzido ao conhecimento do conteúdo e das fontes positivas das liberdades, dos direitos, das obrigações, em determinada sociedade política14.
A humanidade aspiração de justiça não entorpece o anelo de segurança e de certeza jurídicas, porque a sociedade civil reclama estabilidade15, a segurança e a certeza de que suas liberdades e seus direitos não serão asfixiadas e suprimidos por intervenções desordenadas ou "inovações irrefletidas"16, partam da "massa"17, de elites ideológicas ou argentárias, ou ainda do Estado, o persistente Leviathan de Hobbes.
O direito não existe apenas para servir à justiça, senão que igualmente eliminar a insegurança18, de sorte que pode dizer-se que o bem comum reclama uma ordem justa, quanto a reclama também segura e eficaz19. Sem abdicar da eqüidade, a assinação apenas casuística do justo traduz remédio pior do que a enfermidade que pretende sanear20. A interdependência da justiça e da segurança exige que ambas guardem reta observância da ordem natural, critério objetivo que inibe, de um lado, o nihilismo normativo escudado no erro de uma "justiça ad hoc", e, de outro, impede a "falsa segurança" de sistemas que desconhecem os imperativos da lei natural: enfim, tanto indesejável é a "segurança" injusta, quanto o é a "justiça" insegura.
a) REGISTRO E PROPRIEDADE PRIVADA.
A imprescindibilidade do sistema publicitário relativo a imóveis deduz-se da relevância do direito maior que a estes se refere e impõe-se por exigências sociais, historicamente apuradas.
Salienta Paul Roubier que "toute entreprise qui tende à clarifier l'ordre juridique et à determiner les situations juridiques respectives des particuliers, par des moyens extérieurs, formes, délais ou procédures, est à base de formalisme", formalismo que é reclamado sempre que se revele "le besoin d'accéder à un régime où les droits soient biens définis et non douteux"21. Assim como a exigência de segurança pode exigir a adoção do formalismo, em contrapartida a abdicação do sistema formal de garantias pode conduzir à vulneração daquela segurança, e, com ela, a afronta da ordem justa.
A segurança positiva ou criadora22, em que se perfecciona o registro predial, é tanto mais importante quanto se refira ao domínio privado de bens imóveis - certo que a propriedade privada foi imposta pela razão natural para utilidade da vida humana23, de tal sorte que sua supressão importaria em ofensa, quando não na eliminação da própria liberdade: "Desde el momento en que los ciudadanos y sus familias dependen completamente del Estado en el terreno material - diz Johannes Messner -, ya no existe obstáculo institucional alguno que se oponga al éxito de la pretensión totalitaria por parte del poder político"24. E, por isso que o direito de propriedade privada não deriva da lei positiva mas da mesma natureza humana, o Estado não pode aboli-lo, senão que temperar seu exercício, afeiçoando-o ao bem comum.
Compreende-se, assim, a razão de López Medel asseverar que o domínio e os direitos reais menores sobre imóveis se movem em um cenário de liberdades concretas25, em que os assentos registrais desempenham o valioso papel de "pequeñas constituciones declarativas de derechos individuales"26.
b) NOTÍCIA HISTÓRICA DA PUBLICIDADE PREDIAL.
A despeito da autorizada opinião de Coviello, para quem a publicidade imobiliária non è antichissima27, remontando-a ao direito medievo, com a investidura, a saisine, o nantissement e a appropriance28, parece mais acertado o entendimento de que as manifestações públicas de transferência dominial, em povos da antiguidade, representassem verdadeira formalidade publicitária, ainda que nelas acaso não se vislumbrasse a preocupação de garantir direitos de terceiros29.
Na Babilônia, além dos cadastros e arquivos que, instituídos com finalidade administrativa, se prestavam a consultas para dirimir conflitos referentes a situações prediais, outra forma de notoriedade dominial de imóveis se manifestava com as "pedras de limites" (koudourrous), que remontariam à ascensão dos cassitas (aproximadamente por volta de 1750 a.C.). Tais pedras, que se colocavam sobre os terrenos, ademais da finalidade religiosa de atrair a proteção dos deuses, eram - no dizer de Pugliatti - "mezzo di prova durevole", realizando "una generica funzione pubblicitaria"30.
Lembra López de Zavalía que, assentado na base ptolemaica, o Egito possuiu o mais perfeito sistema de publicidade imobiliária que o mundo antigo conheceu31. Cadastros e arquivos, voltados embora a finalidade primeiramente fiscal, foram instituídos também com relevância publicitária no âmbito das situações jurídicas prediais32.
Graças a um documento, conhecido como "petição de Dionísia", que retrata uma querela jurídica entre a requerente e seu pai, Queremone, acerca de uma restituição de dote, foi possível conhecer o esclarecedor decreto de Rufus (89 d.C.). O sistema publicitário egípcio, com os subsídios grego e romano33, era formado de dois órgãos: a bibliotheke demosion logon, organismo cadastral, e a bibliotheke egktaseon, pela qual respondiam dois superintendentes (os bibliophylakes) e que correspondia aproximadamente ao atual registro imobiliário, e em que se inscreviam as transferências de domínio, direitos reais limitados e hipotecas.
O procedimento registral, junto à bibliotheke egktaseon, dividia-se em duas fases. Na primeira, o interessado dirigia ao bibliophylake uma solicitação (prosaggelia), visando a que se autorizasse a elaboração de documento idôneo para a constituição ou modificação de uma situação real imobiliária. A prosaggelia era então qualificada por um estratego (ou exegeta), que, entendendo admissível a formação do título, apunha na petição uma nota final autorizada (epistalma). De posse da prosaggelia, já com o epistalma, o interessado dirigia-se a um notário público (agoranome)34, a quem incumbia redigir o documento (Katagraphe)35 para a inscrição registrária.
O segundo estádio do procedimento registral na bibliotheke egktaseon iniciava-se com nova solicitação (apographe), a que se integrava a escritura pública (Katagraphe), elaborada pelo agoranome. O apographe era exibido em duas vias, uma das quais permanecia no registro; a outra era devolvida ao interessado, com a nota de que se procedera à inscrição. O assentamento registral (parathesis) era efetivado com o apographe que ficava em poder da bibliotheke, segundo um sistema de fólio pessoal, com dois lançamentos (p.e., na transferência dominial, a inscrição fazia-se quer no fólio referente ao alienante, quer no relativo ao adquirente). Esses fólios eram reunidos, depois, em livro com índice (diastroma ou diastromata)36.
A exemplo das "pedras de confrontações" ou "de limites" babilônicas, também no direito hitita revela-se um certo caráter religioso ao lado da prática publicitária das situações prediais. Ao princípio desta centúria, vários documentos hititas foram recuperados, em escavações realizadas em Boghaz-keui, descobrindo-se então a prevalência, já entre os séculos XIV a XII a.C., do sistema de domínio privado, quase insignificante a propriedade coletiva. Grife-se que a transferência dominial sempre se efetivava publicamente, em presença da autoridade37
Conhecido é o episódio bíblico38 referente à aquisição, por Abraão, de uma terra que pertencia a Efrom, para nela enterrar-se o corpo de Sara, que morrera em Quiriat-Arbé (depois, Hebron). Abraão pediu aos filhos de Het para que interviessem junto a Efrom, no sentido de que este lhe vendesse a cova de Macpela. Efrom, que era hitita, comportou-se à maneira dos heteus, alienando o campo, com seus acessórios, mediante o pagamento de quatrocentos siclos de prata, pesados publicamente por Abraão, que da terra se tornou proprietário, "em presença dos filhos de Het e de todos aqueles que entravam pela porta da cidade"39.
Quando Booz adquiriu as terras de Noêmi, subrogou-se no direito de resgate40 de que Elimelec era titular. A aquisição fez-se de conformidade com o direito hebreu, perante dez anciãos que testemunharam a renúncia ao direito de preferência e a aquisição do Booz41. Também publicamente, Jeremias, encarcerado por ordem de Sedecias, rei de Judá, exercitou, na prisão, o direito de resgate, adquirindo de Hanameel, seu primo, a terra de Ananot, por dezessete siclos de prata, que foram pesados na presença de testemunhas; a seguir, diante de Hanameel e "de todos os judeus que estavam no átrio da prisão"42, Jeremias entregou uma das vias do ato de compra a Baruc, para que a conservasse.
Em Atenas, tabuletas de pedra (os oroi) eram colocadas sobre os imóveis garantes de hipotecas, com função publicitária da oneração real43. Além do oros, o direito grego antigo possuía um sistema de publicidade de técnica semelhante aos registros modernos: o anagraphe, inscrição dos contratos relativos, especialmente, às transferências dominiais. Em Rodes, o anagraphe era condição de validez para a aquisição do direito; em Éfeso, as alienações de imóveis eram, primeiramente, objeto de publicação em um quadro exposto no templo de Diana, e, depois, inscritas, podiam ser consultadas pelos interessados44.
No direito romano, enquanto a res nec mancipi podia adquirir-se por ato despido de publicidade, a res mancipi sempre reclamava o que Colorni chamou de nominatività45, característica a forma solene de publicidade de sua tranferência. Sabido que as res mancipi, no direito clássico, apresentavam muito maior relevância do que as res nec mancipi, infere-se a importância publicitária a que se destinava a mancipatio. Exigia esta a presença de cinco testemunhas para o ato de transferência dominial e ainda a intervenção do libripens, com a balança em que se pesava o metal de pagamento; com a in iure cessio, a assistência testemunhal da mancipatio foi substituída pela presença de um magistrado46.
Salienta-se ainda, na publicidade imobiliária romana, o instituto da insinuatio, em que o ato de transferência, apresentado ao exame de funcionários do governador provincial, era, depois, transcrito literalmente na acta ou gesta, de que se davam cópias autênticas a interessados47. Ainda a traditio, que, com o direito justinianeu - supressor da distinção entre a res mancipi e a res nec mancipi -, se tornou o modo por excelência de transferir o domínio, reclamava não apenas certa publicidade mas ainda alguma função qualificadora por oficial público48.
No direito germânico primitivo, a transmissão imobiliária realizava-se necessariamente diante de testemunhas, entre as quais deviam contar-se crianças, com a finalidade de que memória houvesse, por mais tempo, da transferência dominial. Observa Lacruz Berdejo que, para estimular as crianças a melhor guardarem o presenciado, não faltava quem recomendasse lhes fossem aplicados algumas bofetadas e uns puxões de orelhas (alapes donet et torquat auriculas)49. O procedimento de transmissão dominial que, originariamente, reclamava, ao lado da Sale (convênio causal de transferência do imóvel), um ato material de investidura (entrega corporal da coisa, com a assunção da Gewere pelo adquirente e a abdicatio do alienante que abandonava a posse do prédio)50, passou a realizar-se perante um magistrado, de modo semelhante à in iure cessio romana51: as partes de claravam perante o magistrado a deixação e a sucessão corporal do imóvel (Auflassung: a resignatio do alienante e a susceptio do adquirente).
O direito medievo apresenta sistemas publicitários muito próximos dos registros modernos. Se já a investidura da época do feudalismo francês passou, a partir do século XIII, a ser objeto de registro nas chancelarias das cortes feudais, o surgimento do nantissement, ao norte da França e na Bélgica, e da appropriance, na Bretanha, mostra mais assinaladamente a perseverança do caráter publicitário em relação à constituição e modificação de direitos reais imobiliários52, a ponto de serem os sistemas a que Coviello remonte a filiação dos registros modernos. Tanto o nantissement, quanto a appropriance reclamavam a intervenção de um magistrado, com a diferença fundamental de que aquele possuía eficácia declarativa, enquanto a segunda, sobre possuir efeito constitutivo53, apresentava presunção iure et de iure de exatidão; ambos os procedimentos, contudo, convergiam em que indispensável a inscrição publicitária para a produção plena dos efeitos negociais.
Ao explodir a revolução de 1789, o nantissement do norte e a appropriance da Bretanha coexistiam com a insinuation para as doações e as lettres de ratification54,vigentes nas restantes regiões do reino de França.
Um decreto de setembro de 1790 substituiu o nantissement pela transcrição, quer para a transferência dominial, quer para a constituição de hipoteca, sem afetar a continuidade, entretanto, da insinuation e das lettres de ratification; uma lei de 11 do Brumário do ano VII (1º de novembro de1798), de efêmera aplicação, estabeleceu a inscrição para as hipotecas55, subordinada já ao princípio da especialidade56. O Código Civil de 1804, admitindo a aquisição solo consensu57, representou "un franco retroceso en el sistema registral"58, porque apenas impunha a transcrição para os atos gratuitos de transferência dominial e a inscrição de hipotecas convencionais, sem qualquer exigência de sua especialização; a partir de 1851, na Bélgica, e com a Lei de 23 de março de 1855, em França, restabeleceu-se a eficácia do registro para a oponibilidade frente a terceiros, em que pese à exclusão de alguns títulos relevantes para as situações jurídicas reais59.
A investidura germânica, inicialmente direta, depois tendente ao caráter ideal, realizando-se sem a imediatidade do imóvel sujeito à Gewere do adquirente, era comumente documentada por um título justificativo60, que, com freqüência, se arquivava ou, quando não, se copiava em livro de caráter privado. Esse livro particular, que especialmente era escriturado nas igrejas e monastérios, mas também por grandes proprietários laicos61, serviu de modelo para os livros públicos que, a partir de Colônia, no século XII, se estenderam por outras cidades teutônicas. Primitivamente, os registros abrangiam negócios mobiliários e prediais, em sucessão cronológica62, mas, com o tempo, destacaram-se em diferentes livros as diversas categorias negociais, e tenderam, paulatinamente, ao fólio real: "Dedicaram-se livros ou seções especiais - diz Martin Wolff - a cada distrito municipal; logo, a cada rua; por último, a cada casa; e deixavam-se espaços em branco depois de cada inscrição para as futuras inscrições relativas ao mesmo imóvel"63. Surge, assim, o sistema da entabulação, do Landtafeln, que, por acolhido no Código da Áustria de 1811, é também conhecido como sistema austríaco64, e de cujas virtudes - sem embargo de sobrelevadas, muita vez65 - dá notícia o direito alemão contemporâneo.
Do exposto pode concluir-se que, até onde lograram chegar os estudos históricos, sempre se apurou, com diferentes modos de manifestação, a necessidade societária do conhecimento das situações jurídicas imobiliárias. É relevante observar que, ao decesso das culturas e das sociedades mais antigas, nem sempre, nas que as sucederam, se revelou estádio progredido da publicidade imobiliária, mas, segura e invariavelmente, essa publicidade se manifestava nas instituições particulares, umas após outras sociedades civis.
c) A PUBLICIDADE PREDIAL: SUA INDISPENSABILIDADE.
Essa constante histórica pode explicar-se pela conjugação da exigência natural do domínio privado com o reclamo de notoriedade da situação dominial. Já se fez ver que a propriedade privada é de direito natural secundário; o que agora impende explicar é a razão pela qual o domínio imobiliário conduziu a um sistema de publicidade, ao passo que a propriedade dos bens móveis, em regra66, não exigiu instituição similar. Bem a antecipa, a propósito, e vale reproduzi-la, a distinção que Coviello assinalou entre esses bens:
"Os objetos móveis podem produzir-se e reproduzir-se indefinidamente; os imóveis constituem quantidade limitada por natureza. Os móveis deterioram-se e destróem-se facilmente; a terra, ao reverso, in aeternum stat, e os edifícios, que, por sua aderência a ela, são imóveis, à terra devem principalmente sua duração e consistência maior que a de outros produtos do trabalho humano. Os móveis satisfazem necessidades transitórias e secundárias; a terra, por seu turno, provê as necessidades essenciais e permanentes da espécie humana"67.
Ao passo, ademais, que a aparência ou notoriedade do domínio mobiliário se dá, freqüentemente, pela simples possesão, visível à comunidade, a cognoscibilidade do domínio predial e, sobretudo, dos direitos reais imobiliários menores (brevitatis causa, cogite-se da hipoteca) não se infere, de comum, do signo exterior possessório. Demais disso, a inscritibilidade reclama objeto duradouro e de fácil identificação, características que muita vez não se encontram nos bens móveis68. Por fim, apresentando os prédios, em geral, maior valor econômico do que os bens móveis, justifica-se também por isso a prevalência de um sistema formal em relação aos primeiros.
As necessidades humanas implicam, assim, a indispensabilidade de um sistema institucional que conceda alguma publicidade às situações imobiliárias, caminhando de par com a maior ou menor complexidade dos organismos sociais. Não é mais relevante saber que um sistema registral possua uma eficácia preclusiva69 ou uma eficácia de garantia de titularidades70, do que saber que, em toda parte, ao longo da história, sem que importassem latitude ou longitude, autocracia ou feudalismo, monarquia ou república, sempre se revelou indispensável a publicidade imobiliária. Só não se julgará imprescindível a instituição registral quando se entenda suprimível o direito de propriedade privada - e com sua supressão, admissível o aviltamento da dignidade humana.
d) SEGURANÇA ESTÁTICA E DINÂMICA.
Já se fez ver que a enteléquia da publicidade imobiliária é a segurança (estática e dinâmica), a cujo propósito célebre é a lição de Ehrenberg:
"À segurança jurídica é necessário, antes de tudo, que o titular tenha uma existência jurídica segura, isto é, que se não possa realizar uma perda e uma lesão do seu direito sem sua vontade: compreende-se isto, em sentido estrito e próprio, como "segurança jurídica", e aqui está, precisamente, onde segurança jurídica e segurança do comércio entram, facilmente, em conflito.
(...)
"A segurança jurídica (em sentido estrito da palavra) consiste em que se não efetue uma modificação desfavorável da existência atual nas relações jurídico-patrimoniais de uma pessoa sem a sua vontade.
(...)
"Evidentemente, contrapõe-se a isto o interesse daquele que quer, antes de tudo, adquirir um direito; ele tem o maior interesse em que a aquisição visada - e isto assim como ele tinha em vista - seja bem sucedida e não se fruste por circunstâncias que a ele adquirente são desconhecidas, p.e., por isso que o alienante da cousa não estava absolutamente autorizado à alienação ou que a cousa era gravada por um direito pignoratício: isto é, evidentemente, um requisito eficaz da segurança do comércio.
(...)
"A segurança do comércio consiste em que se não fruste um visada modificação favorável da existência atual nas relações jurídico-patrimoniais de uma pessoa, por circunstâncias que lhe são desconhecidas"71.
O conflito entre as seguranças estática e dinâmica constitui a grande aporia do direito registral, e sua solução tem variado de consonância com o substrato político e econômico das sociedades civis72.
Põe-se sublinha, freqüentemente, na finalidade externa que deu origem aos modernos registros públicos, instituídos, em regra - em face da necessidade de garantia de crédito73 -, para tornar cognoscíveis limitações do domínio não dotadas de visibilidade intrínseca.
Essa finalidade externa (finis operantis), no entanto, que muito se tem salientado em relação ao registro predial, não deve conduzir à impressão de que seja de pouca relevância ou menor a finalidade interna (finis operis) dos registros prediais, na medida mesma em que a estes convergem também os interesses dos titulares de direitos subjetivos imobiliários (estática). Ainda que o antecedente histórico do moderno registro imobiliário, pois, indique essa primazia intencional relativa à proteção do tráfico, a execução do sistema registrário não pode prescindir da concentração da tutela quer da segurança estática, quer da dinâmica, e assim a questão não se solverá pela visão genética do sistema.
Não pode admitir-se que os interesses de créditos (embora merecedores de proteção), secundados por direitos reais menores, prevaleçam sobre os do domínio, figura principal do direito das coisas. "A maior parte dos seres humanos - diz Hedemann -, contemporâneos nossos, nunca nada teve a ver com uma hipoteca ou um usufruto; ao contrário, não há um só a quem lhe seja estranha a propriedade. Ainda o mendigo é dono dos farrapos que o cobrem e do cajado em que se apóia"74.
A prevalência da segurança estática no que concerne ao registro imobiliário, impõe-se, entre outros motivos, pela inconveniência da mobilização do solo - vulnerando-se a natureza da instituição da propriedade predial - , saliente a vantagem derivada de um sistema que melhor acautele diretamente a estabilidade, porque a segurança dinâmica esperada do registro permanece, em certo aspecto, exterior à tábua, e, de outro lado, restringida ao passado: antes da aquisição dominial ou da constituição de direito real menor ela é simples confiança nos efeitos da segurança estática; depois da inscrição aquisitiva, ela só ressona em relação ao pretérito (na eventualidade de litígios sobre direitos anteriores), porque o adquirente ou credor com garantia real, uma vez inscrito seu título, passa a gozar da proteção contemporânea decorrente do direito posicional adquirido.
"La propriedad inmueble - diz Roca Sastre - siempre constituirá el suelo nacional y será el asiento de la familia"75, de sorte que a instituição registrária não pode menosprezar a circunstância de que o domínio, sobre elevar-se para além do aspecto individual76, é o conceito e a realidade a partir dos quais se pode cogitar do desenvolvimento do crédito imobiliário. Diz Vallet de Goytisolo:
"Hace unos años, en la propria Alemania se empezó a clamar contra la excesiva mobilización de la propiedad inmueble. Es decir, contra su organización, orientada exclusivamente hacia la seguridad dinámica.
"A principios de siglo, Hedemann, en un trabajo titulado "Los Progresos del Código civil en el siglo XIX", acusabla a la lagislación inmobiliaria de haber conducido a tres peligrosos resultados, que intitulaba endeudamiento,pulverización y egoísmo de la tierra"77.
No mesmo sentido, dizia Rafael Atard, em extensa nota preliminar ao "Tratado de Derecho Hipotecario Alemán", de Nussbaum:
"Estamos viviendo todavía, una época de uso extraordinario del crédito real y de la movilización del valor da la propriedad inmueble. Digotodavia, no porque pueda ni deba prever la muerte del crédito real y de la movilización de los valores fundiarios - que hacen falta y son, por lo mismo, legitimos -, sino pensando en cómo se abusa de las instituciones de crédito y cómo se desnaturalizan en sus desarrollos. El crédito real no se ha inventado para negociar, en vago, con él, ni la movilización de la propiedad ha nacido para negocios semejantes a los del comisionista, del intermediario, del tratante, del agiotista o del jugador de Bolsa. La propiedad de los bienes inmuebles representa cosa muy distinta de lo que significan estos juegos: dificiles, muchas veces, de apreciar y perseguir como todo lo que implica una indelicadeza o un abuso posible, no siempre seguro y, en la mayoría de las ocasiones, no punible. Las instituciones de movilización del valor da la propiedad inmobiliaria existen para las necesidades de un uso honrado y digno del crédito y para las conveniencias de la misma propiedad inmueble, ya dotándola de los elementos que reclama su mejor utilización y productividad, ya facilitando su adquisición a los más capaces. Pero esto no significa, en modo alguno, que a la propiedad inmueble, como tal, no convenga, en su titularidad y en su explotación, una buena estabilidad"78.
Assim como se impõe a proteção do domínio, no plano fenomênico, prevenindo-se esbulhos possessórios ou recompondo-se, com rapidez e energia, a ordem violada - melhor: a afronta do justo -, também impende preservar a preeminência do domínio, no plano registral, sem dar incentivo desmesurado ao crédito imobiliário, com os graves riscos econômicos que decorrem da exarcerbada mobilização do solo. A fiel observância do princípio da continuidade, princípio que, no direito brasileiro, surgiu, ao menos, já com o Decreto nº 18,542, de 24 de dezembro de 192879, e a permanência da presunção iuris tantum de exatidão das inscrições prediais80 constituem meios indispensáveis para evitar que se enferme a instituição registrária do vício da insegurança, de par com reflexos indesejáveis na vida jurídica, social e econômica do País. Enfrentar e vencer formalismos ocos, burocracias inúteis, que esclerosam o registro predial, não importam em negligenciar a observância de princípios que mantêm viva a propiedad imobiliária privada e, com ela, não apenas os direitos reais menores mas as liberdades concretas dos indivíduos e dos corpos intermediários da sociedade política. Nenhuma segurança dinâmica se alcançará, quando se suponha adquirida à custa do maltrato da segurança estática.
2. O REGISTRO DE IMÓVEIS E SUA ORGANIZAÇÃO
O direito predial registrário compreende, além de suas partes substantiva e procedimental, o exame da organização dos registros imobiliários. Dentre as questões mais relevantes no âmbito orgânico do direito registral, avulta, atualmente, a da chamada "oficialização" dos registros. Trata-se de tema controvertido em que, sobremodo, se insinua, ao fundo, de muitas formas, o sovado cenário ideológico da socialização. A "oficialização" dos registros é polêmica encravada no âmbito de cosmovisões que vivamente se adversam no mundo moderno, e sua solução não pode encontrar-se insulada da resposta que, de modo mais amplo e profundo, se há de conferir ao persistente embate dessas filosofias contrapostas: de um lado, com arsenal admirável, escudada na idéia da predominância do valor supostamente social, filiam-se os que apóiam, mais ou menos conscientemente, de forma clara ou dissimudada, a infrene planificação da vida da sociedade civil pelo Estado; de outro lado, com entendimento vário, reúnem-se os que, de algum modo, opõem resistência ao fenômeno da onipotência estatal, vale dizer: resistência ao socialismo.
Debalde se enfrentará um aspecto particular desse combate vital se, antes, não se tomar partido no âmbito medular do confronto. Nas últimas décadas, as atividades humanas tornaram-se, cada vez mais, reciprocamente interdependentes: "Mais do que em qualquer época - diz Louis Salleron - todo mundo depende de todo mundo. Uma pifada na eletricidade agita todas as usinas; uma greve no metrô influi na cidade inteira"81. Não é possível, é mesmo insensato, ater-se à defesa prática de algumas poucas e particulares liberdades - hoje mais propícias à "concessão" estatal -, e, ao mesmo tempo, abdicar de um ideário em favor de todas e de cada uma das liberdades concretas dos indivíduos e dos corpos intermediários; a hodierna interdependência mútua das atividades humanas poderia, em breve, revelar que uma "concessão" de liberdades pelo Estado não é mais do que uma "regalia" que o tempo cuida de abolir, tanto mesmo se fortifique o Estado.
Mal se compreenderia como e tão fragilmente os próprios homens toleram demitir-se de suas liberdades concretas, e para isso às vezes contribuam, não fora a circunstância de uma prévia quebra de resistência de sua cidadela intelectual: muitos, seduzidos pela idéia de um Estado que de tudo se ocupe, livrados de suas responsabilidades, serenizados no espírito intranqüilo, acalentados nas esperanças, toda essa formidável utopia, essa nostalgia do paraíso perdido, tudo isso muitos aceitam, ou a tal se resignam, em troca apenas de uma singela renúncia de suas liberdades. Parece mesmo que se desvela, penosamente, nesse exílio intelectual, uma infortunada ambição de entorpecimento da própria inteligência (o "medo de saber"), que conduz ao désir de totalitarisme, a que se referiu Jean-François Revel82.
Instala-se e mantém-se a totalização planificadora estatal mediante um consistente processo de propaganda: é pelo método Assimil, diz André Glucksmann, que se realiza a revolução83. E, assim, pela repetição massificadora dos slogans da onipotência legalista - apoiada no positivismo jurídico - e das abstratas vantagens (que não se concretizam nunca!) do planejamento econômico pelo Estado84, aprende-se a sedutora arte da cega submissão e da onímoda sobrevivência, em existência modorra frente ao aparato estatal.
E, enquanto as esperanças se mantêm acesas pela insistente retórica das liberdades abstratas, da justiça social vindoura, da felicidade das gerações futuras - enfim, o exercício da política silogística descrita por Joaquim Nabuco, em "Balmaceda"85 -, o Estado planejador prossegue em suas atividades públicas:
"Recenseia, registra e espiona. Conhece os nossos rendimentos e ínventaria-nos as heranças. Sabe se possuímos um piano, um automóvel, um cão ou uma bicicleta. Instrui os nossos filhos e fixa-nos o preço do pão. É industrial, armador, comerciante e médico. Tem arquivos, florestas, estradas de ferro, hospitais e o monopólio dos telefones. Monopoliza a caridade. Se pertencemos ao sexo masculino, manda-nos comparecer na sua frente, pesa-nos, mede-nos, examina-nos o funcionamento do coração, dos pulmões e do fígado. Não podemos dar um passo ou fazer um gesto sem que ele tenha conhecimento disso e encontre um pretexto para intervir. (...) Toda a gente resmunga, mas obedece; e, quando um dos seus agentes é maltratado por um cidadão descontente, há um clamor uníssono para anatematizar esta audácia e pedir prisões e juízes para tal sacrilégio"86.
A idéia de um pouvoir constituant, no Brasil, poder de que, no fim das contas, dispunha já o Legislativo, anteriormente, para emendar a Constituição vigorante87, refomenta o tema da "oficialização" dos cartórios extrajudiciais, flanqueada a discutida questão da natureza jurídica dessas repartições. Não é irrazoável mesmo que se margine esse dissídio referente à caracterização jurídica das serventias extrajudiciais, certo que o efeito de sua "oficialização" não depende da vária natureza que possam a doutrina e a jurisprudência atribuir a esses cartórios.
A essencialidade de um sistema publicitário predial para a consecução do bem comum, conceito e realidade a que se ligam tanto a justiça, quanto a segurança jurídica, não seria bastante para reclamar, senão subsidiariamente, a estatalidade do serviço registral; é um erro pensar, e de lastimáveis conseqüências, que a indispensabilidade social de um corpo intermediário ou de uma atividade humana conduza a sua administração pelo Estado. Não se negará, por exemplo, a essencialidade da educação88; mas nem por isso é de admitir ao Estado mais do que um papel secundário e supletivo na tarefa educacional89. Tampouco se recusará seja a família corpo intermediário natural, anterior ao Estado e fundamental para a sociedade política90, e, no entanto, em que pese à essencialidade social da família não pode tolerar-se nela intervenha o Estado, seja planejando-lhe a prole, retirando-lhe o direito de sua educação, seja promovendo, mediante direito positivo ilegítimo, ofensa da instituição matrimonial, que, por natureza, é consortium omnis vitae, segundo a afortunada expressão de Modestino91.
Não se pense, contudo, que do exposto se há de inferir a conclusão de que o registro predial deva necessária ou prevalecentemente realizar-se à margem de alguma estatalidade. A publicidade imobiliária importa numa tutela de direitos, tutoria preventiva de conflitos pelo sistema formal de garantias, e não convém, por isso mesmo, que essa tarefa permaneça absolutamente alheia de uma certa atuação estatal. Reconhecer, entretanto, algum caráter administrativo no sistema do registro predial, defini-lo como " serviço público"92, não é o que basta para determinar sua direta prestação pelo Estado.
A falta de uniformidade , na doutrina, quanto ao conceito de serviço público93, a indispensável consideração de peculiaridades políticas, econômicas e sociais para seu tratamento94, o dissídio doutrinal e jurisprudencial, no Brasil, quanto à caracterização das serventias extrajudiciais, e, sobretudo, a irrelevância dessa natureza jurídica no concernente ao tema da "oficialização" dos cartórios, conduzem a que,nos limites do problema a solver, possa aqui desprezar-se a incômoda tarefa de perfilhação de uma das teses contrastantes.
Força é salientar que o vocábulo "oficialização" - envoltório verbal certamente obsequioso para com a bancarrota do conceito que expressa - encerra, com a cortesania possível e "encontrando a fórmula"95, a própria idéia de estatização. Traduz, entretanto, adrede ou por descuido - não se sabe ao certo -, adesão ao entendimento de que os cartórios extrajudiciais (enquanto não "oficializados") constituam serviço público delegado. E não falta uma boa e simples razão para assim concluir-se: é que a tese adversa, considerando as serventias extrajudicias como serviços públicos de prestação direta estatal96, suscitaria o inconveniente de que a "oficialização" consistiria na estatização das coisas já estatizadas. Não poderia estranhar que essa razão bastante se revelasse, entretanto, ingênua e inadequada à realidade política: por que caberia surpresa quando o absurdo de um fim - a socialização - venha acolitado de meios absurdos?
Bem é que se ponham as letras e pontos onde caibam nessa matéria: não se deseja retirar da crítica ao socialismo,tout court, repúdio à "oficialiazação" do registro predial. A ser assim, já não caberia sustentar a idéia de que o registro consista em um serviço público. Aquilo, sim, em que se pôs sublinha, é na circunstância de que a propalada "oficialização" do registro imobiliário não vem sendo anunciada por motivos singulares concernentes ao serviço cartório mas apoiada na exclusiva razão ou, ao menos, no clima socialista.
O tema da estatização do registro imobiliário recai na aferição de sua conveniência, à luz da realidade histórica e circundante. É isso, em particular, o que merece análise, para solver fundamentalmente a questão.
Se se examina a prestação dos serviços de registro predial, p.e., no Estado de São Paulo, pode asseverar-se, de logo, seu aprimoramento técnico estendido, a presteza, a urbanidade e a honestidade alargadas, em contraste com umas poucas anomalias que, excepcionais, servem antes, a despeito do estrépito que possam causar, para conferir à fiscalização e revisão hierárquicas motivos para cuidados preventivos e para uma prudente e temperada disciplina correcional97.
Não se desconhece que, no Estado de São Paulo, grande número dos cartórios de registro imobiliário já conta - e de há muito - com sistema de microfilmagem de títulos; em contraste, na Capital de São Paulo, já se observou que, à entrada do arquivo geral de feitos (dependente de verbas estatais), caberia entalhar a inscrição temível que Dante colocou sobre a porta do inferno: lasciate ogni speranza, voi ch'entrate.
Em boa parte das serventias prediais se vem introduzindo, com êxito, há algum tempo, a técnica de processamento de dados. Uma certa morosidade que pode advertir-se nessa implantação tem causa nas dificuldades teóricas e práticas para alcançar o chamado fólio real eletrônico98; nada obstante, além de aplicar-se com êxito na administração cartorária, o processamento de dados vem gerando resultados satisfatórios no controle da tramitação de títulos99, na escrituração do protocolo e dos indicadores. Trata-se, assim, de uma implantação prudencialmente morosa, e para avultar essa conclusão basta ver o que ocorre com a generalidade dos cartórios de protesto e de registro de títulos, na Capital de São Paulo. Em confronto, os ofícios judiciais - subvencionados pelos cofres públicos -, não receberam, senão recente e insuficientemente, os benefícios do processamento de dados - graças, aliás, à visão do Plenário do Tribunal de Justiça do Estado e ao esforço, que poderia dizer-se heroíco, do Desembargador Dínio de Santis Garcia. A Corregedoria Geral da Justiça paulista somente agora, com o decidido empenho do Desembargador Sylvio do Amaral, o contínuo denodo do Desembargador Dínio de Santis Garcia e a diligente contribuição dos Juízes Narciso Orlandi Neto e José Renato Nalini, iniciou um trabalho de informática que se projeta largo e penoso, visando ao aprimoramento de sua missão fiscalizadora e revisional dos serviços auxiliares da Justiça.
Entre tantos aspectos que poderiam ser evocados, merece destaque o dos salários de escreventes e auxiliares dos registros imobiliários100, sobretudo em comparação com os vencimentos que percebem os servidores de ofícios de justiça. Vale, por tudo quanto se poderia indicar, a notícia de um fato que bem resume o ponto: em 1985, na Capital de São Paulo, contou-o pessoa idônea e informada do assunto, uma escrevente de ofício judicial, com mais de um decênio de serviços prestados à Justiça, com responsabilidade na tramitação de feitos judiciais, recebia vencimentos inferiores aos salários de uma auxiliar de um dos registros locais de imóveis, auxiliar cuja exclusiva função na serventia era o de fazer e servir café!
Muito ainda poderia ser acrescentado em abono dos cartórios extrajudiciais no confronto com os ofícios estatizados, mas do que se pudesse acrescer menos se retiraria de valor do que daquilo que se pode, com impecável temperamento, adivinhar de uma suposta estatização do registro predial. Mutiplica a imprensa, por exemplo, as notícias de empreguismo nos órgãos públicos101; fala-se, com freqüência, da imaginação criadora para as acumulações de cargos e gratificações; difundem-se histórias de mordomados e ditos potentados - que a línguagem do dia apodou "marajás"; a tal chegou, por exemplo, a burocracia, que ganhou foro de ministério; os Estados dizem-se com as finanças esfalfadas, tanto são os encargos com a remuneração do funcionalismo público102. É o quanto basta, pois do exposto (com parcimônia) bem se vê que não faltará à previdência quem vislumbre na "oficialização" do registro imobiliário a disseminação das vicissitudes que enfermam, de um modo geral, segundo se propala, os quadros da administração pública no País.
Em conclusão: a teleologia tutelar do registro imobiliário reclama organização apta a desempenhar suas valiosas funções, e não se vê possa, atualmente, fazer ali o Estado incursão maior do que a já feita, sob pena de grave risco para a instituição e para o bem comum. Os preconceitos que, por motivos vários, sobretudo ideológicos, impedem ver a importância do registro de imóveis e a inconveniência atual de sua estatização, devem ser iluminados por uma reflexão mais elevada sobre o valor do registro imobiliário, elaborando-se, se para isso ainda for tempo, "uma teoria geral - como diz o Desembargador Décio Antonio Erpen - apta a convencer os aplicadores da lei da exata dimensão desse instituto";103 essa meditação esperada, contudo, não ganhará viço no embate das idéias, nem se arraigará na vida da comunidade nacional, se apartada se mantiver dos fundamentos que a podem vivificar: a dignidade humana, as liberdades concretas, o direito natural.
Para tanto, que Deus nos ajude!
NOTAS
1 Raul García Coni, "El Contencioso Registral", Ed. Depalma, Buenos Aires, 1978, Introdução.
2 Como faz ver Carl Schmitt ("Teoria de la Constitución", Alianza Editorial, Madrid, 1982, págs. 95 e segs.), segundo a concepção medieval, somente Deus possui a potestas constituens. Nesse ponto, convergente é a literatura política da Reforma. A secularização do poder constituinte, prenunciada embora por Althusius, surgiu durante a Revolução Francesa, com a teoria de Siéyès, que chancela o voluntarismo popular, com caráter absolutista. Dá-se, então, a prevalência do direito abstrato sobre o histórico, sacrificando-se, em verdade, o conceito de constituição como "pacto" firmado entre a autoridade e os súditos, pacto que se encontrava concebido já na Idade Média, por exemplo, nos reinos ibéricos, em que o soberano devia jurar respeito aos fueros.
3 Roland Maspétiol assim comenta a ideologia da volonté générale de Jean-Jacques Rousseau, perfilhada, em grande medida, pela Assembléia Constituinte francesa de 1789: "La loi n'est plus dérivée d'une nature des choses, mais participe au sacré. Elle exprime la volonté du corps social dont elle devient le principe de conservation. Elle est par excellence, l'acte de souveraineté, la déclaration solennelle de la volonté générale, une volonté inaliénable, indivisible, infailible et absolue du souverain qui n'est autre que le peuple unanime à tenir pour sienne la volonté exprimée par la majorité des suffrages"("L'État d'aujourd'hui est-il celui d'hier?", in "Archives de philosophie du droit", Ed. Sirey, 1976, tomo 29, pág. 9). Por isso, na medida em que "L'Assemblée décrete des principes d'aprés une notion abstraite du droit et de l'État..." (Maspétiol), compreende-se a supremacia ideológica na elaboração normativa, sobretudo constitucional. Não pode causar surpresa, assim, que o dissídio entre o país real e o país legal, que a abdicação da ordem natural e histórica, que o positivismo jurídico derivado da idéia de uma Assembléia onipotente, que tudo isso conduza ao que Legaz y Lacambra admitia ser o "destino trágico do Estado de direito", melhor advertido ainda nas palavras de Clóvis Lema Garcia: "a tragédia de um Estado de direito suicida"("O Estado de Direito e a Ordem Constitucional do Brasil", in "O Estado de Direito"- atas das Primeiras Jornadas Brasileiras de Direito Natural -, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1980, pág. 79).
4 José Pedro Galvão de Sousa, "O que deve ser uma constituição", série de artigos publicados em "O Estado de S. Paulo", fevereiro de 1987.
5 Francisco Elías de Tejada ensinava: "La Cristiandad muere para nacer Europa cuando esse perfecto organismo se rompe desde 1517 hasta 1648 en cinco rupturas sucesivas, cinco horas de parto y crianza de Europa, cinco puñales en la carne histórica de la Cristiandad. A saber: la ruptura religiosa del protestantismo luterano, la ruptura ética com Maquiavelo, la ruptura política por mano de Bodin, la ruptura jurídica en Grocio y en Hobbes, y la ruptura definitiva del cuerpo místico cristiano en los tratados de Westfalia. Desde 1517 hasta 1648 Europa nace y crece, y a medida que nace y crece Europa, la Cristiandad falece y muere" ("La Monarquía tradicional", Ed. Rialp, Madrid, 1954, págs. 37-38).
6 Em artigo publicado pelo jornal "O Estado de S. Paulo", em 8.3.81, pág. 56, sustentávamos: "A doutrina clássica romana e a medieval desconheceram, como corpo ideológico, o voluntarismo jurídico. (...) A concepção de que a essência da relação jurídica se encontra na vontade e não na razão, sendo pois um poder, o poder da vontade (Willensmacht, Willensherrschaft), o
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