Preservação ambiental ou moradia? Um falso conflito
Edésio Fernandes
Uma das principais características da urbanização intensa no Brasil ao longo das ultimas décadas tem sido a ocupação crescente de áreas de preservação permanente, áreas de mananciais, áreas non aedificandi e outras áreas que contêm valores ambientais.
Em alguns casos, trata-se de ocupações recentes – como as decorrentes da expansão das favelas cariocas que têm gradualmente comprometido o que sobra da Mata Atlântica local. Em muitos casos, trata-se de situações urbanas já completamente consolidadas ao longo de décadas de ocupação, como é o caso da enorme população que mora nas margens da Represa Billings, na região metropolitana de São Paulo.
Esforços consistentes devem ser feitos no sentido de impedir novas ocupações de
áreas ambientais, não se podendo aceitar a atual atitude de “tolerância 100%" percebida na ação de muitos governos locais. Contudo, o tratamento das ocupações urbanas consolidadas, envolvendo milhões de pessoas, exige que uma outra atitude seja tomada pelos governos e pela sociedade.
Se um numero crescente de brasileiros tem tido que recorrer a processos informais de acesso ao solo urbano e à moradia devido à omissão e/ou à ação do poder publico e de grupos imobiliários, um princípio básico do direito que não mais pode ser ignorado é o de que o tempo criou direitos para os ocupantes de tais áreas - publicas ou privadas - consolidadas.
Esse direito foi reconhecido pela Constituição Federal de 1988, pelo Estatuto da Cidade de 2001, e, no que toca às ocupações de terras publicas, pela Medida Provisória n. 2.220/2001.
Os programas de regularização de assentamentos informais que tem sido promovidos por diversos municípios visam a materializar esse direito, integrando essas áreas informais e suas comunidades na estrutura formal da cidade e na sociedade urbana como um todo.
Contudo, a questão dos assentamentos informais em áreas ambientais continua dividindo opiniões e grupos. Trata-se na verdade de mais uma expressão de um velho conflito entre os defensores da chamada "agenda verde" do meio ambiente e os defensores da chamada "agenda marrom" das cidades, conflito esse que tem se traduzido também no crescimento paralelo, e com freqüência potencialmente antagônico, de dois ramos do Direito Publico brasileiro, quais sejam, o Direito Ambiental e o Direito Urbanístico.
Infelizmente, tais grupos têm sido cada vez mais insensíveis um para com as demandas do outro, o que, dentre outros problemas, tem gerado decisões judiciais conflitantes, que vão da determinação de remoção de milhares de famílias sem uma maior preocupação com sua necessidades de moradia, a recentes decisões judiciais tomadas em prol dos moradores sem uma maior preocupação com valores ambientais. De um modo geral, pode-se dizer que os urbanistas têm feito um esforço maior de inserção de uma preocupação ambiental em suas propostas, do que os ambientalistas têm feito no que toca ao reconhecimento das necessidades sociais de moradia, sobretudo dos grupos mais pobres.
Alguns dispositivos legais do Código Florestal em vigor, por exemplo, totalmente as realidades urbanas do pais.
Mas, haveria mesmo um conflito entre preservação ambiental e moradia?
Trata-se de uma falsa questão: os dois são valores e direitos sociais constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raiz conceitual, qual seja, o principio da função sócio-ambiental da propriedade. O desafio, então, é compatibilizar esses dois valores e direitos, o que somente pode ser feito por meio da construção não de cenários ideais, certamente não de cenários inadmissíveis, mas de cenários possíveis.
A grande novidade da ordem jurídica brasileira, mas que ainda não foi totalmente compreendida, é que onde valores constitucionais forem incompatíveis e um tiver que prevalecer sobre o outro, medidas concretas têm que ser tomadas para mitigar ou compensar o valor afetado. É esse o espírito da mencionada MP n. 2.220/20001: se o direito de moradia dos ocupantes de assentamentos informais em terras publicas não puder ser exercido no mesmo local, devido a razoes ambientais, o direito de moradia continua prevalecendo, devendo ser exercido em outro lugar adequado.
São muitos os exemplos no Brasil de programas locais que têm tentado construir esses cenários possíveis em que preservação e moradia são associados; talvez o melhor exemplo seja o dos "Bairros Ecológicos" de São Bernardo do Campo, para as ocupações consolidadas na margem da Represa Billings, onde uma ampla articulação coordenada pelo Ministério Publico local levou à assinatura de Termos de Ajustamento de Conduta envolvendo diversos atores – moradores, loteadores, Prefeitura, etc. Dado o grau de participação comunitária, novas ocupações têm sido impedidas; remoções foram promovidas em certas áreas, bem como reflorestamento e plantio, implantação de calçadas ecológicas e outras medidas mitigadoras e compensatórias.
A própria comunidade local pagou pela instalação de uma estação de tratamento de esgotos e como resultado a água da represa é hoje melhor do que a água nas origens da represa, poluída por agrotóxicos ou despejos industriais.
Não há porque demonizar a população ocupante de áreas de preservação ambiental: é crucial que governos e a população reconheçam que a promoção da regularização dos assentamentos informais é um direito coletivo, condição de enfrentamento do enorme passivo sócio-ambiental criado ao longo de décadas no pais. Para tanto, é preciso que se adote um conceito antropocêntrico de natureza, bem como que se tomem todas as medidas necessárias para a total reversão do atual modelo de crescimento urbano segregador e poluidor, de tal forma que as cidades brasileiras possam se tornar cidades ecológicas e sustentáveis do ponto de vista sócio-ambiental.
* Jurista e urbanista ([email protected])
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