Quando o Princípio da Contiuidade, aparentemente, não é obedecido
Jether Sottano
Considerando o título acima se faz mister, primeiramente, conceituar o princípio da continuidade e para essa conceituação ninguém melhor que Afranio de Carvalho: "O princípio de continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidades à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram sempre a preexistência de imóvel no patrimônio de transmitente.
Ao exigir que cada inscrição encontre sua procedência em outra anterior, que assegure a legitimidade da transmissão ou da oneração do direito, acaba por transformá-la no elo de uma corrente ininterrupta de assentos, cada um dos quais se liga ao seu antecedente, como o seu subsequente a ele se ligará posteriormente. Graças a isso o Registro de Imóveis inspira confìança ao público.
O encadeamento de titularidades, em que se apóia a confiança do público, recebe o nome de princípio de continuidade".
É sobejamente sabido que o mais importante atributo do direito real é acompanhar a coisa independentemente de quem a detenha, é o direito de seqüela.
O sempre lembrado Serpa Lopes no seu Curso de Direito Civil (V. VI pag.32) ensina com sua clareza de sempre: "O característico do direito de seqüela consiste, pois, na prerrogativa concedida ao titular do direito real de pôr em movimento o exercício do seu direito sobre essa coisa a ele vinculada, contra todo aquele que a possua injustamente ou seja seu detentor. Representa, assim, uma expressão cômoda para traduzir esta oponibilidade do direito de propriedade.
Todavia a seqüela é peculiar a toda espécie de direito real e pode volver-se, mesmo, contra o próprio proprietário, como se, v. g., este violasse o direito real do usufrutuário, bem como em relação aos direitos reais de garantia. O direito de preferência também é outra forma de manifestação de um direito real. A idéia de preferência representa a comparação entre duas coisas, de que resultaria a preferência por uma delas, por ser a de maior conveniência. No direito real, a idéia de preferência tem um sentido próprio que se projeta em duas direções: na primeira, preferência, quer dizer um elemento próprio aos direitos reais de garantia, por força do qual o credor, assim garantido, deve ser preferencialmente satisfeito em seu crédito, resultando daí a
possibilidade do bem onerado com essa garantia real se vendido e com o produto dessa venda, efetuar-se o pagamento ao respectivo credor preferencial, ficando os demais credores sujeitos a rateio, pelo valor do remanescente; na segunda direção, a preferência consiste na prioridade, no tempo, de um direito real colidente com outro, de modo que, entre dois direitos reais contrapostos, prevalece o que houver sido transcrito ou inscrito em primeiro luga."
Verifica-se, assim, que ficou patente e claro nesse texto, o conceito do direito de seqüela e conseqüente direito de preferência.
Por outro lado, o eminente Juiz do 1° TAC-SP e Professor de Direito Processual Civil, Dr. Sidnei Agostinho Beneti num sintético mas profundo artigo publicado na Revista dos Tribunais, Vol. 717/324, aborda o artigo 659 § 4° do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei 8.953/94, e com rara sabedoria comenta esse artigo, dele extraindo-se esses tópicos: "Diz o art. 659 § 4°, do CPC: "A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, e inscrição no respetivo registro".
Vê-se que o texto obriga ao registro da penhora, vale dizer, da penhora já efetiva. Só depois de completa a penhora é que ela se registra. Ora, não se terá penhora, se não quando finda a série de atos por intennédio dos quais ela se compõe. A penhora é ato processual complexo, que se forma à custa da prática de atos antecedentes, entre os quais relevam a citação para pagamento ou nomeação (CPC. art. 652), a nomeação por termo (CPC. art. 657) ou a apreensão e o depósito (CPC. art. 664), seguindo-se, no procedimento de efetivação da penhora, a intimação do devedor (CPC. art. 669).
Nenhum texto de lei diz que o registro precede à intimação. Nem deveria dizer, porque isso seria inversão da ordem normal do procedimento da penhora, que corre com o mandado em mãos do Oficial de Justiça até efetivação, com o termo de nomeação ou a intimação, sem interesse registrário. Nada se altera, pois, no tocante ao cumprimento do mandado de citação e penhora.
Por isso é que o prazo para oferecimento de embargos pelo devedor se
conta "da juntada aos autos da prova da intimação da penhora" (CPC. art. 738, I). Realiza-se e completa-se a penhora com a intimação do devedor. Com a juntada do mandado de penhora cumprido aos autos, começa a correr o prazo para embargos (CPC. art. 738, I citado). Só ulteriormente é que se cogitará do registro da penhora (CPC. art. 659, § 4°).
O texto legal (CPC. art. 659, § 4°), é forçoso convir padece de redação deficiente. Além de aludir a "inscrição no respectivo registro", quando a Lei de Registros Públicos fala em registro (LRT, Lei 6.015/73, de 31/12/73, art.l67, I, 5), o texto dada a presença da conjunção aditiva e, fornece a impressão de que ambos os atos, o de intimação do devedor e o de registro, sejam necessários para a constrição da penhora".
E conclui. "Seja essa a interpretação: a) o registro da penhora não é ato dela constitutivo, no que tange ao perfazimento, que se completa com a intimação da penhora ao devedor, independentemente de registro; b) o início do prazo para oferecimento de embargos conta-se a partir da juntada do mandado de penhora, com a intimação do devedor, aos autos, sem obrigatoriedade do registro prévio da penhora; c) o registro da penhora será necessário para conseqüências relativamente à fraude de execução; d) não se levará a hasta pública bem imóvel sem o registro da penhora".
E mais, destaca-se do Acórdão Ag In n° 676267-2 da Comarca de São Paulo, RT-735/293 de 02-O5-96 este trecho: "Ainda que já se encontrem hipotecados os bens, ressalta evidente o interesse do agravante na realização da penhora, pois sua efetiva apreensão e depósito à ordem judicial é garantia que a lei lhe faculta, além daquela já instituída pela hipoteca."
Dessas lições, se extrai quatro princípios básicos:
O primeiro, de que o direito de seqüela acompanha a coisa; o segundo, que esse direito gera a preferência; o terceiro, que processualmente, depois da Lei 8.953, só se alcança a hasta pública, a arrematação, se a penhora que a precede estiver registrada no Registro de Imóveis; e o quarto, consistente em que à penhora decorrente da execução hipotecária, cuja hipoteca se encontra registrada, ainda que o imóvel não esteja mais em nome do devedor executado por ter sido alienado, pelos princípios anteriores pode ser registrada, em aparente desrespeito ao princípio da continuidade.
Antes, bem antes do advento da Lei 8.953/94, essa questão jurídica foi ventilada por uma consulta feita pelo 11° Registro de Imóveis de São Paulo, ao Juízo Corregedor do Cartório que deu origem ao processo n° 128/90 da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, e que teve sentença do ínclito Juiz Kioitsi Chicuta, cuja parte final está vazada nestes termos: "Especificamente ao caso da consulta, não há apenas relação obrigacional entre credor e devedor, quando então o registro seria vedado sob pena de ofensa ao princípio da continuidade. Existe também e principalmente relação jurídica de direito real, entre o credor e "todos", com eficácia "erga onmes", tendo por objeto o bem dado em garantia e destinado à satisfação da dívida".
Daí porque a recusa no acesso do mandado de penhora importa em negativa do direito real de garantia, expresso no registro n° 2, da matrícula n° 134.534, o que é inadmissível. Na hipoteca há "jus in re aliena" potencial por parte do credor, tanto assim que os direitos só serão executados nas hipóteses de descumprimento da obrigação, não importando a pessoa que figura como proprietária.
Desimporta para eventual registro de carta de arrematação ou adjudicação o cancelamento da alienação feita pelo devedor hipotecário, eis que integro e legítimo o direito de dispor. O direito real de garantia vincula imediatamente o bem gravado e que fica sujeito à solução da dívida, e, no caso de alienação, transfere-se, além do imóvel, o ônus que o grava. Desde que inscrita, produz efeitos em relação a terceiros.
Assim, respondendo à consulta, afirmo que não ofende o princípio da continuidade o registro de penhora efetivada em execução movida pelo credor hipotecário, ainda que o imóvel não se encontre em nome do devedor hipotecário, desde que a hipoteca esteja registrada e especializada".
Dessa forma, estando a hipoteca registrada, o Mandado de penhora decorrente da execução do crédito hipotecário deve ser registrado, ainda que o imóvel não esteja mais em nome do primitivo proprietário e devedor da hipoteca, e embora dele não conste ser a alienação ineficaz contra o credor, desse modo, resulta uma aparente quebra do princípio da continuidade.
É corrente o adágio popular de que "não há regras sem exceção", essa figura jurídica caracteriza-se pela excepcionalidade.
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