Responsabilidade territorial
Edésio Fernandes
Embora nas ultimas décadas a construção de edifícios tenha se tornado uma prática importante em muitas cidades, desde a década de 1930 o principal processo de produção das cidades brasileiras sempre foi o crescimento horizontal, isto é, a agregação de novas áreas de ocupação às zonas urbanas dos municípios através de práticas imobiliárias de parcelamentos (loteamento e desmembramento) do solo.
Ao aprovar novos loteamentos, mais do que autorizar a produção de novos lotes para venda no mercado imobiliário, os municípios estão na verdade produzindo cidades, e um certo padrão de cidades. Contudo, de modo geral, o município não tem dado a atenção necessária para a regulação adequada dessas práticas imobiliárias, que têm tido todo tipo de impacto territorial, urbanístico, ambiental e sócio-econômico, a tal ponto que a maioria deles não tem leis próprias de parcelamento do solo urbano.
O fato de que, em cidades de todo porte, as práticas de parcelamentos irregulares - incluindo as favelas, que são formas especificas de parcelamento do solo urbano - são cada vez mais significativas, tem agravado a baixa qualidade da vida urbana, gerando cidades fragmentadas, segregadas, ineficientes, poluídas e injustas.
Por essa razão, é de crucial importância a discussão do projeto de lei que se encontra em fase adiantada de discussão na Câmara dos Deputados, que visa rever amplamente a Lei Federal nº. 6.766 (1979), que é ainda o principal instituto jurídico em vigor para a regulação dos parcelamentos em áreas urbanas.
Por muitas décadas, o crescimento urbano rápido se deu sob a égide de um instrumento jurídico inadequado - o Decreto-Lei nº 58/37 -, que somente foi revogado com a aprovação da Lei Federal de 1979. Contudo, em que pese sua enorme importância ao enfatizar o princípio da função social da propriedade urbana, a verdade é que a Lei Federal nº 6.766/79 sempre deixou a desejar. Mudanças pontuais foram aprovadas em 1999, através da Lei Federal nº 9.785, que modificou algumas exigências urbanísticas para a aprovação de novos parcelamentos e introduziu mecanismos para facilitar o registro dos projetos de regularização de parcelamentos.
Uma ampla revisão da Lei Federal de 1979 continua sendo necessária, e é essa a proposta do atual Projeto de lei.
Reconhecendo a enorme importância de uma tal lei federal de parcelamento do solo urbano - que, juntamente com o capitulo constitucional sobre política urbana e o Estatuto da Cidade, de 2001, compõe o tripé das principais leis urbanísticas no Pais -, o projeto de Lei explicitamente propõe a aprovação de uma Lei de Responsabilidade Territorial a ser obedecida pela sociedade brasileira e em especial pelos municípios, que são os entes federativos que têm a competência constitucional para aprovação de parcelamentos urbanos e de projetos de regularização.
O projeto dispõe sobre três temas principais: critérios e procedimentos para a aprovação de novos parcelamentos; critérios e procedimentos para aprovação de condomínios urbanísticos, prática imobiliária mais recente, mas com enorme impacto urbanístico e ambiental, e que até hoje não está devidamente regulada no Brasil; e critérios e procedimentos para aprovação de projetos de regularização de parcelamentos irregulares consolidados em terras públicas e privadas.
Ao regular a produção de novos parcelamentos, a maior preocupação do projeto de lei é criar um marco jurídico-urbanístico adequado que possibilite a democratização das formas de acesso ao solo urbano e à produção de moradia nas cidades. Nesse contexto, a discussão acerca de critérios urbanísticos e ambientais, bem como de procedimentos de gestão político-institucional, tem que levar em conta as realidades sócio-econômicas de produção das cidades brasileiras e as condições efetivas e capacidades de gestão municipal.
A regulação da prática crescente dos condomínios urbanísticos deve levar em conta critérios como dimensões, impactos na estrutura urbana, responsabilidades por infra-estrutura e serviços, bem como o respeito ao acesso livre aos bens de uso comum como praias, praças e vias públicas.
No que toca à regularização de parcelamentos irregulares consolidados, é necessária uma visão integrada em que a regularização jurídica das áreas e lotes seja combinada com a regularização urbanística das áreas e inclusão social de seus ocupantes; destaque deve ser dado para a uniformização dos procedimentos para o registro imobiliário dos projetos de regularização.
Além do respeito à competência municipal, a aprovação de uma tal federal é sempre difícil em um País profundamente heterogêneo como o Brasil, onde uma enorme diversidade de situações urbanísticas e sócio-ambientais existe em municípios com capacidades completamente diferentes de ação. Não se pode ignorar o fato de que, na enorme maioria dos casos, a regra mínima estabelecida pela lei federal é a regra única aplicável nos municípios, o que só aumenta a importância do projeto em discussão.
* Edésio Fernandes é Jurista e urbanista, professor na Universidade de Londres
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