São taxativos os atos registráveis?
Ricardo Dip
1. A adoção de um aforismo, em que pese às suas vantagens gráficas e expressivas, traz consigo, freqüentemente, riscos de simplificação. E, o que é mais temível, de implicitação de juízos a que não se dirigia a referência tópica.
Não se trata só de aludir a conhecidas equivocações históricas. Por exemplo, como a que se acha na divertida suspeita de que o princípio da legalidade penal vem do direito romano. Ou melhor: teria forçosamente de vir dali, porque em Roma se falava o latim e em latim se diz até hoje nullum crimen, nulla poena sine lege. E, no entanto, esse travestimento latino do princípio da legalidade não vem dos tempos antigos. Não se deve a Paulo ou a Modestino, nem ao jus honorarium romano, senão que a Feuerbach, o penalista.
Ainda caberia lembrar a persistente boutade que se encontra em supor que as constituições — ao menos as que, por uns tantos critérios, se dizem democráticas (com perdão) — são tributárias, na realidade histórica, da Magna Charta com que, em 1215, se tentou pôr freios à jurisdição de João Sem Terra sobre os nobres e os vassalos maiores. Tanto é assim, dizem uns — e apontam a prova —, que as constituições atuais são comumente designadas pela expressão magna carta. Tudo o que basta, enfim e com um sólido critério ao que se vê, para fazer prova de uma realidade histórica. E, sem embargo, foi em 1188, em terras da Hispânia, que Dom Alfonso IX — dominus Aldefonsus Rex Legionis et Galletie — jurou a primeira constituição dessas que, por agora, se nomeiam democráticas. Com ela jurou junto o princípio da legalidade penal. É o que se lê no item XV de seu juramento às Cortes de León e Galícia.
O que mais desconforta os aforismos — cujo uso, em todo caso, não se deve descartar simpliciter, até porque um aforismo vem pronto em socorro dizer que abusus non tollit usum — não é, pois, como ficou dito, o risco de uma precipitação referencial–histórica. Mas o da simplificação do objeto de seu conceito e o muita vez implícito desbordamento de sua extensão, com indissociável reflexo, portanto, em sua compreensão. Não há forma de evitar, já se fez ver desde Aristóteles, o relacionamento inverso entre essas propriedades lógicas, extensão e compreensão.
2. Faz alguns anos, no ambiente do direito registral brasileiro, difundiu–se, calcado patentemente numa conhecida formulação processual, o aforismo quod non est in tabula, non est in mundo. Sua função originária — a exemplo da matriz de que copiado: quod non est in acta, non est in mundo — era de caráter procedimental, voltado à operatividade da qualificação registrária.
Não era assim por acaso. Quando se afirma a inclusão do registro público no plano principaliter de um direito formal, põe–se prontamente sua familiaridade no campo do processo. Não falta, é certo, que se divida cada espécie do direito registral em substantivo e adjetivo, ou, noutros termos, em material e formal. Mas, para essa classificação, no plano material — primeiro, aqui, considere–se o direito do registro imobiliário, registro público de que se disse o ser por antonomásia —, tem–se de importar realidades e noções versadas principalmente em outros segmentos jurídicos. Imóvel, fatos jurídicos — e toda sua panóplia: obrigações, negócios, contratos, vícios, nulidades, etc. —, relações jurídicas, pessoa. O mesmo se passa, noutro exemplo, com o direito do registro civil das pessoas naturais. Nascimento, morte, emancipação, casamento, adoção, tudo isso é matéria primeira de outros ramos do direito, que somente num aspecto se põem à frente para o procedimento registral e nessa perspectiva passam a interessar–lhe. Fazem–se seu objeto, mas eram realidades que, primeiro e diretamente, eram e seguem sendo objeto próprio de um direito material logicamente anterior. O registro é essencialmente um processo, em sentido lato. Da mesma sorte que a ninguém ocorrerá que, versando a ação de despejo, o processo civil seja o segmento científico mais apropriado para tratar do instituto da locação. Da mesma forma como não se dirá que, cuidando de desconstituir, numa revisão criminal, a condenação de um questionável homicida à pena privativa de liberdade, o processo penal seja o campo do saber jurídico mais azado para estudar o crime de homicídio. Assim também, o fato de registrar–se uma venda e compra ou um nascimento, não faz do direito registral a esfera propícia para estudar contratos e bens da personalidade.
Quando se disse, originariamente, quod non est in tabula, non est in mundo, queria dizer–se que o registrador, na sua função primordial de decidir sobre a inscrição concreta de um título, está limitado ao que se acha no registro. O registro é seu mundo oficial. Foi logo depois necessário esclarecer que o próprio título em via de registração se engastava, enquanto tal, no aforismo. Daí a versão explicitada quod non est in tabula et in instrumentum, non est in mundo. Não bastou essa explicitação de sentido, porque pronto se fez interpelante a possibilidade de que conflitasse o conteúdo de títulos (assim, no plural). É bem verdade que, num e noutro caso, já se achavam as idéias ajustadas à expressão tabula, mas a resistência da praxis — melhor: a obstinação da praxis — induzia à explicitação de sentido. Em vez de instrumentum, instrumenta. Ficou assim: quod non est in tabula et in instrumenta, non est in mundo.
Fez–se largo período de tréguas, ao cabo do qual parece se ter dado uma implícita e variada substantivização do conceito exprimido no aforismo. A tópica originária resumia–se ao plano procedimental, não se dirigindo mais que a sintetizar um estatuto epistêmico para o registrador. Passou agora a perspectivar–se uma referência mais amplificada e própria do direito material. Em rigor, se se considera ainda o aforismo, já não se pensa em quod non est in tabula, non est in mundo, mas variadamente numa série de outros juízos inteiramente estranhos à estimação originária. Do tipo quod non est in mundo, non est in tabula, talvez non est in tabula, quia non est in mundo, ou mais longe:non est in mundo, quia non est in tabula.
Algumas dessas variantes tópicas substantivizadas — ditas em vernáculo, porque, no fim de contas, causa (non) locuta, Roma finita — suportaria a seguinte esquematização argumentativa:
· não há direitos reais relativos a imóveis, num sistema constitutivo, qual o brasileiro, que os objeto de registro,
· de onde segue que o registro imobiliário está dirigido à inscrição de direitos reais,
· e porque os mesmos direitos reais, sabidamente, são elencados no direito brasileiro em numerus clausus (um pequeno latim),
· ergo, os fatos suscetíveis de registro estão igualmente previstos de modo taxativo na Lei de Registros Públicos.
3. Quanto à primeira proposição — não há direitos reais relativos a imóveis, num sistema constitutivo, qual o brasileiro, que os objeto de registro —, distingue–se. Se se está a referir a direitos reais imobiliários constituídos por negócios inter vivos, concede–se. Em âmbito mais geral, exclusor da sucessão hereditária, das divisões, da usucapião e das acessões, nega–se. E prova–se, brevitatis causa, a distinção: basta ler o que dispõem os artigos 1.572, 631 e 530, incisos II, III e IV, todos do Código Civil brasileiro.
Quanto à segunda proposição, à margem de não ser conseqüente do aparente entimema — o registro imobiliário está dirigido à inscrição de direitos reais —, também se distingue. Que assim o seja ut in pluribus, concede–se. Que o seja sempre, nega–se. Prova–se a distinção: basta cogitar do fato de que são registráveis, no direito brasileiro posto, as locações de prédios, as penhoras, os arrestos e os seqüestros de imóveis, as convenções antenupciais, as citações — maxime as relativas a ações pessoais reipersecutórias relativas a imóveis, os dotes (artigo 167, inciso I, números 3, 5, 12, 21 27, Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973). Mas a locação, a penhora, o arresto, o seqüestro, o pacto antenupcial, a citação e o dote, nunca se pensou que, no direito nacional, fossem direitos reais. Uma coisa, por certo, é admitir que o registro imobiliário está voltado tendencialmente a albergar direitos reais — seja para constituí–los ou não; coisa diversa é dizer que o registro predial somente se dirija a publicar direitos reais.
No que concerne à terceira proposição — os mesmos direitos reais, sabidamente, são elencados no direito brasileiro em numerus clausus —, concede–se juxta modum. É certo que se adotou no direito pátrio o critério da taxatividade dos direitos reais, mas cabe ao intérprete dizer quais dos direitos alinhados são reais e quais não o são, o que, de conseguinte, afasta um critério de oficialidade literal (a direta doutrina do sens clair normative).
A proposta de conclusão sub examine — os fatos suscetíveis de registro estão igualmente previstos de modo taxativo na Lei de Registros Públicos — não se infere das premissas. Desde o plano estritamente lógico–formal não se pode extrair da taxatividade dos direitos reais uma correlata enumeração exaustiva dos atos suscetíveis de registração predial. Apropositam–se a isso alguns tantos fundamentos. Primeiro, o de que o registro imobiliário, como visto, destina–se a acolher títulos não–referentes a direitos reais. Segundo, o de que a taxatividade dos direitos reais não implica restrição conseqüente dos títulos relativos a esses direitos: ¿ter–se–á notado acaso que, na mescla de uma terminologia criticável, o artigo 167 da vigente Lei de Registros Públicos, tratando do registro em sentido estrito, não se refere expressamente à propriedade? Mais além: não se diz que espécie de título permitiria o registro — por sinal, declarativo — de aquisição imobiliária por aluvião (artigos 530, inciso II, 536, inciso III e 538, Código Civil).
Isso não é nenhuma defectividade da normativa registral, mas próprio de um sistema processual lato sensu, que, por seu caráter fundamentalmente instrumentário, se proporciona mediante uma formulação de subsídio à realização do direito material. Negar que se possa registrar um título no ofício imobiliário porque não no prevê expressamente inscritível a regulativa específica ou lei extravagante é, em síntese, desprezar o caráter instrumental do registro e, no fim e ao cabo, denegar a realização de um direito que, recognoscível na ordem substantiva, não poderia já efetuar–se. Seria, guardadas as distinções, o mesmo que dizer que o locador tem direito a reaver o imóvel de um locatário inadimplente, e negar–lhe toda possibilidade de manejar uma ação de despejo.
Nem sempre se adverte com clareza que o direito real é uma atualização que depende de uma potência, scl., de um título, e que esse título é de direito obrigacional. Ora,
· se o registro imobiliário atualiza o título para, freqüentemente, constituir um direito real.
· se esse título, no sistema obrigacional vigente, é resultado possível de uma autonomia de vontades contratantes,
· se esse título, não menos, é alheio de exigências tipológicas e restritivas,
tem–se de admitir que, longe de afirmar–se a taxatividade dos atos suscetíveis de registro imobiliário, deve antes e ao revés dizer–se que todos os atos aos quais, sem vícios, se possa atribuir potencialidade para constituir (ou modificar) direitos reais imobiliários são suscetíveis de registração predial.
Há possíveis explicações para o equívoco de que se está a tratar. Primeira, a de que a idéia de um sistema formal de garantias — assim, o registro público — induz um critério formal de compreensão e de interpretação. O engano está em pensar que esse critério opera na seleção dos atos registráveis, quando o campo de sua atuação está antes internalizado no procedimento registral. De toda sorte, que haja mais ou menos atos suscetíveis de registração, não é isso que torna mais ou menos rígido um sistema de segurança jurídica. Segunda, a de que, pensam alguns, se registram direitos e ainda por cima direitos reais. Mas a verdade é que não se registram direitos, e sim fatos jurídicos para publicar uma situação jurídica. Terceira, a de que alguns fatos, se inscritos, implicariam um entrave persistente ao tráfico jurídico (p.ex., o protesto contra a alienação de bens). Mas aqui é preciso distinguir o que é um impedimento pontual e, para mais, transitório, do que configura um obstáculo essencial: o protesto contra alienação de bens só não pode ser registrado porque falta ao sistema brasileiro a metódica da inscrição provisória; contasse o direito nacional com essa técnica, a medida de protesto não só poderia mas, como é patente, deveria ser registrável. Por agora, o julgamento das hipóteses de inscrição, inclusa a do protesto, deve ser tomado à luz do princípio mais principal do registro: a segurança jurídica.
Não se trata, é bem verdade, de afirmar quod tabellio vel judex placuit, tabula habet vigorem, mas tampouco se pode chegar a dizer quod judex vel tabellio non placuit, non est in tabula et non est in mundo.
4. Como se não fora pouca essa extensão da tópica inicial, agora tem–se outra nascente: uma espécie de propter est in tabula, ergo est in mundo.
Não se trata — o que não estaria mal — de vincular essa derivação do aforismo fundamental à hipótese prevista no artigo 252 da Lei n. 6.015, de 1973 ("O registro, enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido"). É intrigante essa fórmula redacional e surpreende que um ato se desvincule tão aberta mas tão sabiamente de sua potência. Nesse caso sim: porque está no registro, está no mundo (est in mundo, quia est in tabula,).
Coisa muito diversa é que se pretenda que estando algo registrado se torne direito real. Ou o que dá na mesma: o que é suscetível de registro, direito real deve ser. Com símile argumentação e inteira justificativa interna, converteremos o dote, a locação, as citações, as penhoras, seqüestros e arrestos em direito real.
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