Uma longa história de confusões!
Sergio Jacomino
Introdução. A penada da Princesa Isabel.
Notário, tabelião e escrivão.
Tabelliones e tabularii.
Notarius.
O Escrevente e o Tabelião.
As novelas justinianéias.
Constituição XLV - Dos tabeliães e de que deixem os protocolos nos instrumentos.
Prefácio.
Capítulo I
Capítulo II
Epílogo.
CONST. XLV -DE TABELLIONIBUS ET UT PROTOCOLLA DIMITTANT IN CHARTIS (COLL. IV. tit. 7.)
Praefatio.
Cap. I
Cap. II
Epilogus.
Introdução. A penada da Princesa Isabel
Nosso amigo e colega Túllio Formícola, quando Oficial-Maior do 24.º Tabelionato de Notas da Capital de São Paulo, escreveu um pequeno artigo sobre as vicissitudes do notariado brasileiro, texto que foi publicado na edição 110 do Boletim da Associação dos Serventuários de Justiça do Estado de São Paulo (jul.1980-jun. 1981, p. 3 e seguintes, reproduzido no CD – Thesaurus, editado pelo Irib – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil).
Do texto recolhemos a seguinte passagem: “Exceto as disposições contidas no Código Civil Brasileiro que tratam de testamentos, e alguma outra disposição esparsa, repetidora das Ordenações, tivemos, em 1871, promulgada pela Princesa Isabel, a Lei n.º 2.033 que, em seu artigo 29, § 8o, permitia aos tabeliães lavrar escrituras através de escreventes juramentados, escrituras essas que dependeriam de ser subscritas por ditos tabeliães, sob sua inteira responsabilidade”.
Registra o Presidente do Colégio Notarial (seção São Paulo) que “é bem provável que resida aí a origem da hipertrofia do tabelionato no Brasil, especialmente o das grandes cidades. Com efeito, com a necessidade de atender a uma demanda cada vez maior de serviços, os tabeliães viram-se na contingência de admitir um número cada vez maior de escreventes juramentados, agigantando os tabelionatos quando o desejável seria a ampliação da carreira de Tabelião que deveria ser estruturada com certas exigências mínimas para nela ingressar-se”. (id., ib.)
Segue o notário bandeirante apontando os desajustes e desequilíbrios que a organização do serviço no Brasil experimenta: “há tabelionatos no Brasil que funcionam com mais de uma centena de escreventes juramentados, permitindo que se indague: há condições de se cumprir o disposto na lei promulgada pela Princesa Isabel? Não teria sido melhor ampliar o número de notários nas cidades, exigindo dos postulantes alguns pré-requisitos - tais como o titulo de bacharel em direito, certa especialização na matéria e reputação ilibada? Nos países de civilização avançada, que praticam o notariado latino, este fato (existência de tabelionatos com grande número de escreventes, muitas vezes, semi-alfabetizados) é encarado com incontida apreensão. E a razão é meridiana. A subscrição do ato pelo tabelião não tem o condão de aperfeiçoá-lo se foi mal elaborado pelo escrevente juramentado. Nem mesmo de expungi-lo de eventuais nulidades, eis que o tabelião só tomará conhecimento de sua existência após feito pelo escrevente e assinado pelas partes; ou seja, quando já terminado. Quantas nulidades poderão advir deste processo errôneo possibilitado pelo advento da Lei 2.033, de 1871? O ideal teria sido adotar, além da ampliação da carreira, a figura do notário adstrito, de menor competência, habilitado a certos atos, funcionando ao lado do notário propriamente dito, como os há em vários países avançados nesta matéria”.
Além das judiciosas considerações expendidas pelo Presidente do Colégio Notarial do Brasil (seção de São Paulo), é preciso reconhecer que a referência que faz da legislação Isabelina é essencialmente correta. No bojo de ampla reforma do processo judicial, a lei trouxe claras, embora econômicas, disposições sobre os auxiliares de tabeliães. Vamos ao texto:
“Artigo 29 – (omissis) - § 8º Os Tabelliães de Notas poderão fazer lavrar as escripturas por escreventes juramentados, subscrevendo-as elles e carregando com a inteira responsabilidade; e ser-lhes-ha permittido ter mais de um livro dellas como fôr marcado em regulamento”.
Esse problema, tão bem apanhado por Túllio Formícola, está na raiz de muitos desajustes que vêm de ser superados, em parte, pelos concursos e pela renovação dos quadros notariais. Contudo, gostaria de assinalar que a legislação de 1871, citada como fonte dos problemas, recolhe uma larga tradição da atividade tabelioa reinol, trasladada para cá e mantida, como se sabe, com uma pureza que ainda denuncia seus signos medievais. Aliás, a propósito deste tema, gostaria de referir o trabalho de João Teodoro da Silva que na 1ª edição da tradicional Revista de Direito Imobiliário (Desnecessidade das testemunhas dentre os requisitos essenciais do intrumento público com efeito inter vivos. São Paulo: RT/Irib, jan./jun. 1978, p. 44) que já apontava a necessidade do notariado pátrio desvestir-se de formalismos vazios e arcaizantes.
Sem esgotar o assunto – o que ultrapassaria as parcas capacidades deste registrador – gostaria de assinalar que a figura do auxiliar do tabelião é muito mais antiga do que a leitura da legislação do Brasil Império poderia sugerir. Vamos encontrar claras referências na legislação medieval portuguesa apontando para essa figura coadjuvante dos afazeres notariais.
Não gostaria de seguir adiante sem antes fazer um pequeno parêntese para aclarar algumas dúvidas que ainda cercam as expressões notário, tabelião e escriba.
Durante muitos anos – desde os glosadores! – se vem confundindo a origem dos tabeliães com os tabulários. À parte o núcleo dos vocábulos, de que nos dá pistas a etimologia, veremos que os tabularii diferiam muito dos tabelliones. Vejamos com maior detalhe.
Fernandez Casado, no seu alentado Tratado de Notaría (Madrid: Imprenta de la Viuda de M. Minuesa de Los Rios, 1895, Tomo I, p. 56) registra que no território dominado pelo povo romano existiram diferentes funcionários conhecidos com os nomes de notarii, scribæ, tabeliones, tabularii, chartularii, actuarii, librarii, emanuenses, logographi, refrendarii, cancelarii, diastoleos, censuales, libelenses, numerarii, scriniarii, cornicularii, exceptores, epistolares, consiliarii, cognitores e outros mais, “os quais participaram mais ou menos do caráter notarial”.
Obviamente, o elenco compreende uma série muito grande de atividades que, a rigor, não poderiam ser consideradas antecessoras da figura que singulariza o profissional das notas. O fato de terem existido pessoas que tiveram uma atividade relacionada ou assemelhada àquela que é própria do notário “não assevera que, na realidade, devamos tê-los como antecessores”, destaca Eduardo Bautista Pondé (Origen e historia del notariado. Buenos Aires: De Palma, 1967, p. 30).
Já Gimenez-Arnau identifica na rica diversidade de nomenclatura uma prova de que a função notarial estaria dispersa e atribuída a uma “variedade de oficiais públicos e privados sem que originariamente se reúnam todas as atribuições a uma só pessoa”. (Gimenez-Arnau, Enrique. Derecho notarial. 2ª ed. Pamplona: Universidad de Navarra, S.A. 1976, p. 93).
Registra José Bono (Historia del derecho notarial español. La edad media. Madri: Junta de Decanos de los Colégios Notariales de España. 1979, p. 46) que, em Roma, desde a época imperial (século III) se desenvolve um tipo de escriba profissional dedicado à escrituração dos negócios jurídicos dos particulares. Eram profissionais da escrita que se incumbiam da lavratura de instrumentos contratuais, bem assim de testamentos e declarações testificais para os tribunais. Importante destacar que não tinham a consideração de funcionários públicos e, por conseguinte, não gozavam do ius actorum conficiendorum, nem podiam imprimir aos atos a fides publica.
Um pequeno parêntese para a questão da fé pública – que ao contrário do que se imagina não era a marca distintiva dos tabeliães na origem. Segundo o mesmo Bono, a fides publica, em matéria de direito privado, estava reservada, no Ocidente, às autoridades que possuíam o ius actorum conficiendorum (faculdade de formar e autorizar expedientes e autos – acta, gesta). Atuavam nos procedimentos que ante essas autoridades tinham lugar e cujo conteúdo, manifestado nas cópias autênticas que emitiam, tinham fé pública. “Estes publica monumenta tinham valor probatório não só em relação às ditas autoridades, mas igualmente ante qualquer organismo do Estado, especialmente ante os tribunais, ainda que, naturalmente, se pudesse produzir prova em contrário em relação ao seu conteúdo” (op. cit. p. 52).
Alguns extratos que servem de fundamento para a afirmação se acham no Codex Justiniano, o primeiro em 7.52.0. De re iudicata: (Bono)
“Gesta, quae sunt translata in publica monumenta, habere volumus perpetuam firmitatem. Neque enim morte cognitoris perire debet publica fides” (C. 7.52.6). (Queremos que tenham força perpétua os atos que foram transcritos em documentos públicos. Porque não deve morrer a fé pública com a morte do julgador)
O outro em 8.53.0. De donationibus:
“In donationibus, quae actis insinuantur, non esse necessarium iudicamus vicinos vel alios testes adhibere: nam superfluum est privatum testimonium, cum publica monumenta sufficiant. Verum et alias donationes, quas gestis non est necessarium adlegari, si forte per tabellionem vel alium scribantur, et sine testium subnotatione valere praecipimus, ita tamen, si ipse donator vel alius voluntate eius secundum solitam observationem subscripserit: donationibus, quae sine scriptis conficiuntur, suam firmitatem habentibus secundum constitutionem Theodosii et Valentiniani ad Hierium praefectum praetorio promulgatam”. (C. 8.53.31). (Nas doações que se insinuam em autuações, julgamos que não é necessário apresentar vizinhos ou outras testemunhas; porque é supérfluo o testemunho privado quando sejam suficientes os documentos públicos. Porém mandamos que sejam válidas, mesmo sem a assinatura de testemunhas, também as doações em que não é necessário sujeitar às autuações, se nesse caso foram escritas por tabelião ou por outro, com o que, sem dúvida, o mesmo doador, ou outro por vontade dele, as tivesse firmado na forma costumeira; tendo seu vigor conforme a Constituição de Teodósio e de Valentiniano, dirigida a Hierio, prefeito do pretório, as doações que se fazem sem escrituras).
A confusão entre tabeliães e tabulários (tabelliones e tabularii), segundo Álvaro D´Ors, “corresponde à tendência de equiparar o documento privado notarial ao documento público. A fides publica era propriamente a dos funcionários com ius actorum conficiendorum que levavam os registros (acta, gesta, em grego hypomnemata) em que tais documentos se insinuavam. Ante eles se fazem os instrumenta publica em sentido estrito”. (D´Ors. Álvaro. Documentos y notarios en el derecho romano post-clasico. In Centenário de la Ley Del Notariado, secc. 1ª, estúdios históricos, Vol. I, Madri: Junta de Decanos de los COLÉGIOS Notariales de España, 1964, p. 89).
Não sendo o objetivo desde opúsculo descer a detalhes da confecção, extensão e particularidades da documentação notarial no Império Romano, sigamos com a indicação dos rasgos mais gerais da atividade dos tabelliones.
A atividade do tabellio era jurídica, já que participava do corpo de juristas pós-clássicos. Assumia a condição de assessor em direito. Já a atividade do tabularius, diversamente, se enfeixava entre as atribuições de um funcionário. Freqüentemente, é um escravo público, “que exerce funções notariais, sim, mas como suplente dos magistrados para documentos públicos de menor importância; também intervinham como testemunhas” (D´Ors, op. cit. p. 87-88).
O tabularius, segundo Pondé, era o oficial encarregado de fazer as listas de impostos entre os romanos. Tinha o caráter de personæ publicæ – isto é, condição de funcionário público. Era o funcionário que recebia as declarações de nascimento e registrava as circunstâncias relacionadas com o estado civil das pessoas; fazia inventários da propriedade pública e privada, contabilidade e mantinha sob sua guarda arquivos relacionados com as suas atividades. “Destacamos, então, nos tabularii, estes aspectos unidos à atividade notarial: redator e guardador de documentos privados, mas com a ressalva de que também os redigia e guardava quando eram de caráter oficial e que, neste sentido, desempenhava uma função como partícipe e integrante da administração do Estado”. (op. cit. p.34).
Outra atividade muito importante desempenhada pelos tabularii era o censo. “No princípio os tabularii desempenharam funções oficiais de censo e seguramente pelo hábito na custódia de documentos oficiais (entre os quais o censo era um dos mais importantes) se generalizaria a prática de que se lhes fossem entregues, em custódia, os testamentos, contratos e atos jurídicos que os interessados estimavam devessem estar guardados com a prudência devida para que, a sem tempo, produzissem efeitos”. (Gimenez-Arnau, E. op. cit.p. 94).
Já o scriba tinha sob sua responsabilidade o encargo de anotar em tábuas as atas públicas, exercendo um cargo parecido com o do escrivão, com fé pública.
Tanto o scriba, como os notarii e tabularii ostentavam a condição especial de funcionários que estavam de certo modo integrados no aparelho estatal – e esta é uma distinção substancial a ser destacada, pois a essência notarial reside justamente na especial tutela de interesses particulares.
Sobre o antecessor do atual notário, deixemos Pondé concluir: “A especial condição de atuar nos negócios privados, de exercitar uma intervenção claramente particular, completada por sua aptidão redatora; o conhecimento do direito que lhes permitia atuar à maneira de um assessor jurídico e a possibilidade de procurasse a eficaz conservação dos documentos, fazem que seja o tabelião quem, com mais legítimos direitos, se possa considerar um autêntico antecessor do notariado do tipo latino”. (Op. cit p. 35).
Rolandino de’ Passaggeri in cattedra (1482). |
O notarius era uma espécie de taquígrafo; “o que escreve por abreviaturas”, esclarece o Saraiva (Saraiva. Francisco Rodrigues dos Santos. Novíssimo diccionário latino-portuguez, Rio de Janeiro: Garnier, 8ª ed. 1924). É o estenógrafo ou taquígrafo. Dá-nos a sinonímia: escrivão, amanuense, escrevente, copista. Segundo Casado, alguém “que escrevia por siglas ou iniciais, e com tal velocidade que dele disse Sêneca: celeritatem linguæ manus sequitur”. Era o que hoje chamaríamos escrevente, copista ou amanuense – ordinariamente um servo e os romanos os tinham entre seus domésticos.
A palavra notário provém seguramente de nota. Mas a etimologia de nota não é segura. Uma vez mais Álvaro D´Ors nos dá pistas: “nota tem como mais genuína acepção a de mancha na pele, isto é, sinal, seja natural, seja artificial, por marca ou tatuagem, que serve para distinguir uma pessoa, um animal, um objeto qualquer. Numa acepção secundária, nota é o sinal de indignidade pessoal, a infamante nota censoria, ou simplesmente o signo gráfico, literário ou musical”. E continua: “Em especial, nota é a abreviatura estenográfica, e notarii são os taquígrafos que redigem as atas de determinados trâmites – por exemplo, as atas dos magistrados. Mas também podem ser privados. Estes notarii, muito freqüentemente escravos, não são o que hoje entendemos por notários”. Op. cit. p. 80).
Em 472, conforme D´Ors, a palavra notariis se estende aos tabeliães, mas distinguindo-os dos tabularii ou condicionales. Gostaria de disponibilizar o texto original que se acha no Codex, 8.17.11:
Scripturas,quae saepe adsolent a quibusdam secrete fieri, intervenientibus amicis nec ne, transigendi vel paciscendi seu fenerandi vel societatis coeundae gratia seu de aliis quibuscumque causis vel contractibus conficiuntur, quae idiochira graece appellantur, sive tota series eorum manu contrahentium vel notarii aut alterius cuiuslibet scripta fuerit, ipsorum tamen habeant subscriptiones, sive testibus adhibitis sive non, licet condicionales sint, quos vulgo tabularios appellant, sive non, quasi publice scriptas, si personalis actio exerceatur, suum robur habere decernimus. Sin autem ius pignoris vel hypothecae ex huiusmodi instrumentis vindicare quis sibi contenderit, eum qui instrumentis publice confectis nititur praeponi, etiamsi posterior dies his contineatur, nisi forte probatae atque integrae opinionis trium vel amplius virorum subscriptiones isdem idiochiris contineantur: tunc enim quasi publice confecta accipiuntur.
Na idade média, já perdida a distinção entre tabeliães e tabulários, a palavra notarii (ou escribæ) servirá para designar todo aquele que se dedicava a redigir documentos jurídicos ou administrativos. “Esta confusão se fazia em prejuízo da dignidade dos notários, que não eram escravos, mas livres” registra D´Ors.
Finalizo esse parêntese com uma nota pitoresca. No século XIII, nos países de influência do direito romano, os termos notário e tabelião eram considerados sinônimos, de acordo com Paul Fournier, citado por Gama Barros (História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 2ª ed., 1950, p. 363, nota 2). A divulgação do Direito de Justiniano na península favoreceu a circulação e difusão de ambos os termos, mas em Portugal, especificamente, o de tabelião radicou-se de tal modo que acabou por singularizar a própria atividade, quedando o de notário reservado quase exclusivamente aos notários apostólicos.
E como essa denominação era anelada pelos nossos antecessores!
Vamos dar voz a um deles, no pleito dirigido nas Cortes de Lisboa de 1439:
“Senhor: geralmente, em todos os reinos e senhorios os escrivães das notas chamam-se notarios, salvo nos vossos reinos que lhes chamam tabelliães, nome não conveniente ao poder e fé que lhes por vós é dada, e segundo se mostra por uma carta d’el-rei D. João, vosso avô, que proveu isto e mandou que para fóra dos vossos reinos que se chamassem ‘notayros’. Pedem-vos, senhor, os ditos tabelliães por mercê, porque é nome fremoso e apropriado a seus officios que são de notas, e ainda por todos os ditos senhorios fazem festa com tal nome porque não convem a tal officio, porém, senhor, os ditos tabelliães de notas vos pedem mercê que mandeis que d’aqui em deante geralmente, em todas as escripturas que fizerem, se chamem ‘notayros’.”
Resposta do rei:
“Mandamos que se guarde a carta de meu avô; que quando fizerem escripturas para fóra se chamem ‘notayros’; e de outra guisa, não” (Chancelaria de D. Afonso V, livro XX, f. 151, transcrito por Gama Barros, op. cit. p. 365).
Enfim, essas confusões, pontos de conexão, inversões, enfim, toda a série fluida de significados que vamos encontrar ao longo do tempo, procurando fixar os contornos de uma função que consistia basicamente na arte da escrita, demonstra que além de tradicional, a atividade de tabelião ou notário permeia todo curso da história do direito e representa uma verdadeira necessidade social.
O Escrevente e o Tabelião
Por ocasião do transcurso dos trabalhos do XXVIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Irib, realizado em Foz do Iguaçu em 2001, tivemos a oportunidade de fazer uma breve referência à existência de escreventes secundando e auxiliando o tabelião nas suas atividades próprias (o texto figura na exposição denominada publicidade imobiliária na antiguidade oriental, Boletim do Irib, edição especial de 20/9/2001).
A ligeira referência que naquela oportunidade se fez ao tema procurou pôr em relevo os traços nítidos que nos ligam a uma larga tradição do notariado português, reminiscências que assim explicitadas denotavam o veio profundo da instituição notarial e a necessidade de recolher a tradição e seguir adiante, aprofundando o sentido original do notariado do tipo latino e aperfeiçoando-o no que fosse cabível. Afinal, a instituição continua a se desenvolver em todo o mundo e nós, notários brasileiros, deveríamos estar plenamente conscientes desse movimento.
“Vamos aos clássicos!” – diria meu mestre R. Dip. Muito bem, tenho um livro fundamental para conhecer a história do tabeliado português medieval, já referido logo acima: História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV, numa 2ª edição dirigida por Torquato de Sousa Soares. Tenho-o agora à frente, numa edição bem-cuidada, com glosas e uma dedicatória tocante do diretor Torquato S. Soares ao mestre de meu mestre, José Pedro Galvão de Sousa.
Henrique da Gama Barros (Óleo sobre tela. Eduardo Malta) |
Gama Barros registra que depois dos regulamentos de 1305 e de 1340, o primeiro diploma em que aparecem reunidos vários preceitos relativos ao tabeliado português é a famosa Lei de D. Fernando, publicada (com outras) em Lisboa a 12 de setembro de 1379. É nessa legislação que encontramos algumas disposições sobre os escreventes e auxiliares do tabelião. Dita lei acabará figurando, com alterações, nas Ordenações Afonsinas (Livro III, título 64). As leis desse período acomodam e atendem às reclamações e queixas apresentadas contra os tabeliães em cortes (das quais se podem citar a de Santarém, de 1331, e no articulado dos regulamentos de 1305, por mim publicados alhures). |
Pois bem, para que se evitem delongas e tardança na lavratura das escrituras notariais (sem tardamça, diz o diploma), autoriza a lei que aos tabeliães (também chamados de escrivães-jurados) seja facultado ter escreventes (escrivães também lhes chama a lei) que quiserem, escolhidos livremente por eles (quaees elles quiserem escolher).
Vejamos a antiga disposição vem recolhida pelas Ordenações Afonsinas (III, 64, 22):
“E pera outro-fy os Tabaliae?s , ou Escripvae?s , que fam jurados honde os Tabaliae?s nam efcrepverem, ou Efcripvam jurado dado ao Tabaliam pera efcrepver fuas Efcripturas , poderem fazer as Efcripturas , e dallas ás partes afinha , e fem tardamça , queremos , e outorgamos , que effes Tabaliae?s ajaõ Efcripvae?s , quaees elles quiferem efcolher , que fejam jurados , e dados per noffas Cartas , quaees entenderem , que lhes compre , e fezerem mefter , pera notar , e efcrepver , e fazer os ditos Eftromentos , e Efcripturas dos ditos comtratos , avenças , e fermidoe?s, que as partes amtre fy fizerem , e lhes mandarem fazer”.
D. Fernando | D. Afonso IV |
Adverte-nos o mesmo Gama Barros que não representava qualquer novidade o fato de os tabeliães terem ajudantes. Cita, em abono de sua afirmação, alguns exemplos de 1325, extraídos das notas dos tabeliães de Lisboa e Braga:
“A tradução do foral de Cezimbra, que a Câmara incumbira a um tabelião de Lisboa, foi escrita em 1325 por F., escrivão jurado por mandado do tabelião que a subscreve; o que no mesmo ano igualmente se observa na carta das sentenças, que a seu favor obtivera o concelho acerca da isenção da portagem (Livro do Tombo da vila, fol. 2 a 5)”.
Cita ainda uma escritura tabelioa, (uma permuta), lavrada em Braga a 5 de maio de 1325, que conclui assim: “E eu Joham Domingues tabaliom sobredito a estas cousas rogado presente fuy e por que era empeçado per outros negócios este strumento de escambho segundo como per Dante mim passou em minha presença screver fiz e em el a rogo do dito priol so screui e meu signal pugj em testemonho de uerdade”.
O famoso tabelião de Lisboa, Domingos Martins, recebe de D. Afonso IV, a pedido do arcebispo de Braga, pela carta dirigida por el-rei ao Concelho de Lisboa, um escrivão, com poderes para notar perante o dito Domingos Martins e subscrever todos os instrumentos que houver de fazer o dito tabelião. Domingos Martins deveria apor em todos os instrumentos o seu sinal público. Segue referindo dita carta real o mesmo Gama Barros: “o escrivão tinha jurado ao rei fazer bem e retamente as cartas e escrituras; lançar nos registros do tabelião os instrumentos de que este deve dar testemunho de verdade; guardar os artigos e salários que el-rei mandava aos tabeliães que guardassem, dos quais artigos recebeu na chancelaria um exemplar; finalmente, não cobrar salários das escrituras antes de as entregar às partes, depois de feitas e acabadas.Conclui o diploma proibindo, sob pena corporal e nulidade do documento, que mais alguém lavre quaisquer instrumentos em nome de Domingos Martins”.
O original figura na coleção diplomática da Chancelaria de D. Afonso IV – (livro IV, fol. 34, reproduzido in Chancelarias portuguesas – D. Afonso IV, 1ª ed. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1992, p. 245) e merece ser aqui reproduzida para conhecimento de todos os interessados na matéria.
Era Mª CCC Lxxvii
DOm Affonso pela graça de deus Rey de Portugal e do Algarue A uos Conçelho de Lixbõa saude.
Sabede que eu querendo fazer graça e merçee A domjngos martinz Tabaliom dessa vila A Rogo do Arcebispo de Bragaa. dou lhy por scriuam Affonso dominguez. portador desta carta que Note por dant. el escreua depois todalas screturas que esse Tabaliom ouuer de ffazer E o dicto Tabaliom deue põer seu sinal en essas scrituras que esse scriuam fezer.
O qual scriuam a mjm Jurou aos sanctos Auangelhos que bem e dereitamente faça as cartas e scrituras que fezer e que ponha en sseus Registros do dicto Tabaliom aquelas de que depoys esse Tabaliom deue dar testemuynho de uerdade . E que guarde quanto en ele he os Arrtigos e taussaçom que eu mando aguardar aos Tabaliões dos meus Reynos os quaes logo leuou da mha Chancelaria E que nom filhe dinheiros de nenh?a scritura que faça ataa que a de fecta e acabada a aquel que a ouuer d auer.
Porem mando e deffendo que nom seia nenh?u ousado en essa vila e en seus termhos que faça carta de venda nem de compra nem d escanbho nem d emprazamento nem de doaçom nem de procuraçom nem d apelaçom de clerigos. nem de Meyadade nem d alfforria nem stormento de nenh?a ffirmidõe senom o dicto scriuam en nome do dicto Tabaliom e Aqueles que d i sson tabaliões ca aquel que ende Al fezer farey Justiça de sseu corpo como for mha merçee E as cartas e screturas que fezer nom valeram nada.
En testemuynho desto dey ao dicto Tabaliom esta mha carta
Dante en Sanctaren treze dias de Janeiro El Rey o mandou per Pero. do ssem seu Chançelor Affonso annes a ffez Era M.ªCCC.ª Lxxvij.ª Anos
Petrus de ssenssu
Como se vê, os ajudantes dos tabeliães eram bem conhecidos por essa época; suas atividades estavam bem definidas, cabendo ao chanceler-mor passar carta dessas mercês. É o que se vê das Ordenações Afonsinas (I, 2, especialmente 6):
“4 O Chanceller dará eftes defembargos , e Cartas, que fe feguem : primeiramente as Cartas das aprefentaçooes das Igrejas a aquelles , que per Nós a ellas forem aprefentados. 5 Item. As Cartas dos Taballiaães affi geeraaes , como efpeciaaes das Cidades , e Villas notavees , a faber , Santarem , Beja , Elvas , Tavilla , Leireea , Guimaraa?s , que ouverem primeiramente Noffa dada , que das outras Villas , e terras Chaãs poderá o Chanceller dar por fi. 6 Item. As dos Efcripvaães , que fom dados aos Taballiaães per mercee que Nós queremos fazer”.
Mas os abusos ocorriam. Dando-se como certo o que disseram as Cortes de Guimarães (1401), os tabeliães mandavam escrever os processos a seus moços e outras pessoas privadas, que não tinham o poder de dar fé àquilo que lavravam e redigiam. Parece certo, fiados nas conclusões do mesmo Gama Barros, que a ordenação de D. João, impondo que os magistrados tal fato não consentissem, que a queixa se dirigia aos chamados tabeliães do judicial, com atribuições distintas, como se sabe, daqueles do paço.
Há relatos de indicação de substitutos para o lugar do tabelião em caso de ausência ou moléstia. Nesses casos, cumpria ao substituto guardar os artigos e salários que a lei estabelecia aos tabeliães.
Como se vê, no âmbito do direito português, a ocorrência de escreventes não foi um fato desconhecido. E pelo que se percebe das queixas registradas nas cortes, tal fato trazia, guardadas as devidas proporções, os mesmos problemas apontados por Tullio Formícola. Não inovou, portanto, o advento da Lei 2033, de 20 de setembro de 1871, da Princesa Isabel, a faculdade de indicar substitutos dos tabeliães.
Mas é curioso que podemos encontrar o mesmo problema relatado com expressivas minúcias nos fundamentos do notariado – as Novelas de Justiniano, que teremos ocasião de visitar.
Foi sob o reinado de Justiniano I (527-565) que se elaborou a imortal obra do corpus iuris civilis. Integra essa compilação do direito romano clássico o Codex – compilação e seleção das constituições imperiais que figuravam nos códigos Gregoriano, Hermogeniano e Teodosiano; o Digesto (ou Pandectas) – seleção de textos da jurisprudência clássica; as Institutas (ou Instituciones) – resumo elementar para uso de estudantes. Foram ainda publicadas, e integram o corpo, as constituições imperiais baixadas por Justiniano, chamadas Novelas ou Novellae leges.
É precisamente nesta última parte que encontramos registradas as instituições romanas que regulam a atividade dos tabeliães. E é justamente aqui que vamos encontrar, na gema primeva da regulação tabelioa do “tipo latino”, o germe dos problemas que Formícola identificará muito mais tarde.
O prefácio da Nov. XLIV trata de um caso curioso de uma mulher analfabeta que alegava que o instrumento, lavrado em etapas sucessivas, não era a expressão de sua vontade. Isto é, o documento notarial não representava o que havia sido disposto por ela. O juiz encarregado de solver o conflito procurava descerrar a verdade pelo testemunho do tabelião, que foi convocado para depor em juízo.
Mas o tabelião reconhecia somente em parte o documento. Em relação a outras passagens significativas, simplesmente alegava ignorância, posto que havia encarregado a lavratura a “um dos seus”. Finalmente, declarou que não concorreu para a conclusão do documento, tendo encarregado tal mister a outro. Chamado a juízo o que esteve presente à conclusão do documento, declarou que tampouco ele sabia de coisa alguma – posto que não havia sido o encarregado da feitura do instrumento.
Finalmente o texto registra que se não encontrou aquele a quem, desde o princípio, fora encomendada a lavratura do documento. Adverte-nos o redator: se acaso o juiz não tivesse podido esclarecer o caso por meio de testemunhas, corria-se o risco de se perder completamente o conhecimento do negócio.
Essa foi a situação que ensejou a edição da Constituição XLV (ou Novela XLIV). Manda que os tabeliães intervenham pessoalmente nos contratos, sem encomendar o assunto a seus prepostos.
Gostaria de apontar, como nota final, que na cidade de Constantinopla, como o Imperador mesmo assegura, se realizavam tantos negócios e se lavravam tantas escrituras (ubi plurima quidem contrahentium multitudo, multa quoque chartarum abundantia est) que seria bastante lógico que nos locais (stationes) onde se achavam os tabeliães acorresse uma multidão de clientes. A fim de dar cabo dessas demandas, também é bastante compreensível que pudessem ter sob sua responsabilidade prepostos encarregados de redigir os instrumentos, sujeitando-se, contudo – como de fato ocorreu e nos dá notícia a constituição justinianéia –, aos perigos da delegação do nobile officium a quem não pudesse exercê-lo efetivamente.
Para encerrar este pequeno opúsculo e para dar arrimo às teses aqui ventiladas, publico abaixo o texto integral da Constituição XLV (Novela XLIV) – De tabellionibus et ut protocolla dimittant in chartis – em tradução de D. Ildefonso L. García Del Corral e versão ao português de Francisco Tost e outro. Vamos às fontes!
Manuscriptum Florentinum (sec. VI, dig. 1.3.36 - 1.5.4) |
Constituição XLV - Dos tabeliães e de que deixem os protocolos nos instrumentos
O Imperador Justiniano, Augusto, a João, segunda vez Prefeito do Pretório, Ex-cônsul e Patrício.
“Tivemos há pouco conhecimento de um litígio que dá ocasião à presente lei. Por parte da pessoa de certa mulher foi apresentado um documento que certamente não tinha sua letra (porque não sabia escrever), mas que havia sido feito por um tabelião e por um tabulário (tabellione et tabulario), tendo a assinatura dela indicando a presença de testemunhas. Depois, havendo-se suscitado alguma dúvida sobre o documento, por declarar a mulher que não havia sido disposto por ela o que dizia o documento, o que ouvia o litígio tratava de conhecer, por meio do tabelião, a verdade do negócio, e por fim chamou o tabelião. Porém, este último disse que reconhecia a letra do complemento do tabelião, mas não conhecia coisa alguma das que se seguiam; porque não lhe havia sido encarregado absolutamente a ele, desde o princípio, mas que encarregou a um dos seus que fizesse o serviço, e depois não acudiu para a conclusão, senão que, por sua vez, encomendou a tarefa a outrem. E compareceu certamente o que estava presente à conclusão, o qual disse que tampouco ele não sabia de nada (porque ele não fora o redator do documento), e somente manifestou este que terminou estando presente. E não foi encontrado aquele a quem desde o princípio lhe fora encomendado, pelo que, se o juiz não houvesse podido conhecer o caso por meio de testemunhas, correria certamente o perigo de se perder por completo o conhecimento do negócio. E isto mereceu, à verdade, seu competente exame e este decreto”.
Pois nós cremos ser conveniente auxiliar a todos, e fazer uma lei comum para todos os casos, a fim de que aos mesmos que estão à frente do trabalho dos tabeliães, se lhes imponha de todos os modos que formalizem por si o documento, e que estejam presentes até o seu término, e não se conclua o documento de outra sorte, senão se tiverem sido feitas estas coisas, a fim de que tenham meios para conhecer o negócio, e quando interrogados por juizes possam saber o que aconteceu, e responder, principalmente quando não sabem de letras [anafalfabetos] os que encarreguem tais coisas, em quem é fácil e inconvincente a negação das coisas que se escutam como verdade.
§1 – Para proibir, pois, todas estas coisas, lavramos a presente lei, e queremos que de todo modo sejam mantidas estas disposições pelos tabeliães, quer estejam nesta venturosa cidade, quer nas províncias; entendendo-se que se contra estas determinações tiverem feito alguma coisa, perderão, em absoluto, as praças, e aquele que por eles é designado para lavrar o documento e nele intervier será o dono da praça com própria autoridade, e será alterada a condição; e ele certamente obterá sucessivamente na praça o mesmo cargo que aquele que nela tinha a primazia, saindo dela, ou será um dos que àquele sirvam. Porque havendo certamente desdenhado ele de fazer o que a ele se lhe havia concedido, e havendo-o feito o outro por vontade dele, lhe impomos por isso esta pena, a fim de que com respeito aos documentos se façam eles mesmos excelentes, e justos, e mais precavidos, e não perturbem os interesses alheios por seu próprio descanso e deleite.
§2 – Mas se por acaso for indigno de receber autoridade na praça aquele a quem contra o que por nós tiver sido disposto na presente lei lhe é encomendado um documento, perca-se a autoridade certamente de todo modo por esta causa o tabelião, e seja constituído outro em seu lugar; sem que, em nada, absolutamente haja de ser prejudicado o dono da praça, se houvesse sido um qualquer dos estranhos, e não o mesmo tabelião, e sem que haja de perder os ganhos daqui provenientes, senão perdendo a primazia somente o que perpetrou tais coisas e desdenhou de cumprir sua missão, devendo se lhes conservar certamente íntegro todo o demais com respeito ao direito da praça aos donos dela pelos mesmos tabeliães que em tais coisas pecaram.
§3 - E não finjam os tabeliães ocasiões para se irem, acaso por doença, ou por ocupações de tal natureza; porque se tal acontecer, ser-lhes-á lícito chamar aos que contratam, e desempenhar por si mesmos sua missão; porque as coisas que acontecem raramente não causarão impedimento à generalidade, pois nada há entre os homens que esteja tão fora de dúvida, que não possa, ainda que alguma coisa seja justíssima, ser, sem embargo, objeto de alguma escrupulosa dúvida; mas tampouco serão farão por isso menores seus lucros, que têm lugar em virtude da freqüência dos contratantes, porque é melhor fazer poucas coisas com segurança, que intervir em muitas com perigo.
§4 – Mas para que não pareça que esta lei seja sumamente dura para eles, nós, atendendo à natureza humana, estabelecemos leis nossas moderadas também para os mesmos. Pois lhes damos licença, a cada um deles, para que, com motivo acaso de tais dúvidas sujas, nomeiem alguém para isso, havendo-se feito solenemente atuações ante o mui esclarecido mestre do censo desta venturosa cidade, e lhes dêem permissão para que a ele lhe sejam encomendados os documentos pelos que vão à praça do mesmo, e para estar presente ao serem finalizados, e sem que absolutamente qualquer outro que exista naquela praça tenha licença para que lhe seja encomendado o começo, ou para que esteja presente quando se acabem, a não ser que o tabelião que tenha a autoridade, ou o que por ele tenha sido constituído para isso. Mas se contra isso se fizer alguma coisa, e fosse outro delegado, então ficará sujeito à pena o tabelião, que tem a autoridade por nós antes definida, sem que, entretanto, tenham de ser invalidados os documentos por razão de conveniência dos contratantes. Porque sabemos que por medo à lei guardarão também eles no sucessivo o que por nós foi decretado, e farão com cautela os documentos.
Também acrescentamos à presente lei, que os tabeliães não escrevam os documentos em papel em branco, mas naquele que a princípio tenha, (o que se chama protocolo), o nome do que à oportunidade seja gloriosíssimo conde de nossas sacras liberalidades, a data na qual se fez o documento, e o que em tais folhas se escreve, e que não cortem o protocolo, mas que o deixem unido. Porque soubemos que em tais documentos foram provadas antes e agora muitas falsidades, e por tanto, ainda que haja alguma folha de papel, (porque também soubemos disso), que não tenha o protocolo escrito deste modo, mas que leve outra escritura qualquer, não a admitam, como adulterada e não apta para tais coisas, mas escrevam os documentos somente em folha de papel tal, como antes dissemos. Assim, pois, queremos que o que por nós foi decretado sobre a qualidade de tais folhas de papel, e sobre a separação do que se chama protocolo, esteja em vigor somente nesta venturosa cidade, onde certamente é grande a multidão de contratantes, e existe muita abundância de folhas de papel. E seja lícito intervir de modo legal nos negócios e não dar-lhes a alguns a ocasião para cometer falsidade, da qual demonstrarão que são responsáveis os que contra isso tiverem se atrevido a fazer alguma coisa.
Portanto, apresse-se sua excelsitude a levar à execução e efeito o que nos parece bom, e foi declarado por meio desta santa lei.
Dada em Constantinopla a 15 das calendas de setembro, no segundo ano após o consulado de BELISÁRIO, homem mui esclarecido [537].
Texto original em latim
CONST. XLV -DE TABELLIONIBUS ET UT PROTOCOLLA DIMITTANT IN CHARTIS (COLL. IV. tit. 7.)
Imp. IUSTINIANUS Aug. IOANNI, Praefecto praetorio iterum, Exconsuli et Patricio.
Nos autem credimus oportere universis auxiliari, et communem in omnibus facere legem, quatenus praepositis operi tabellionum ipsis per se omnibus modis iniungatur documentum, et, dum dimittitur, intersit, et non aliter imponatur chartae completio, nisi haec gerantur, ut habeant, unde sciant negotium, et interrogati a iudicibus possint quae subsecuta sunt cognoscere, et respondere, maxime quando litteras sunt ignorantes, qui haec iniungunt, quibus facilis est et inconvincibilis denegatio horum, quae pro veritate secuta sunt.
§ 1. – Ut ergo omnia haec prohibeamus, propterea praesentem conscripsimus legem, et haec custodiri modis omnibus volumus a tabellionibus, sive in ipsa felicissima civitate, sive in provinciis sint; scientibus, quia, si praeter haec aliquid egerint, cadent omnino iis, quae vocantur stationibus, et qui ab eis dirigitur ad iniungendum documentum et interest, ipse dominus super stationis auctoritate erit, et mutabitur causa; et ille quidem de cetero hoc obtinebit officium in statione, quale qui in ea primatum tenebat, ille vero cadet ea, aut unus erit ministrantium illi. Quoniam ille quidem dedignatus est hoc agere, quod erat concessum ei, ille vero secundum illius voluntatem hoc egerit, propterea nos hanc intulimus eis poenam, ut optimi fiant circa documenta, et iusti, et cautiores, et non propter suam requiem et delicias corrumpant alienas vitas.
§ 2. – Si vero indignus sit forte potestatem in stationibus suscipere is, cui documentum extra ea, quae a nobis disposita sunt per praesentem legem, iniungitur, tabellio quidem cadat omnibus modis hac causa, alter vero pro eo constituatur; nihil omnino damnificando ex hoc stationis domino, quicunque fuerit extraneorum, et non ipse tabellio, neque cadente lucris exinde venientibus, sed illo solo, qui talia perpetravit, et dedignatus est suum complere opus, primatu cadente, omnibus quidem aliis super stationis iure integris dominis eius ab ipsis tabellionibus, qui talia peccaverunt, servandis.
§ 3. – Et non fingant tabelliones occasiones, per aegritudinem forte discedentes, aut occupationes huiusmodi; licebit enim eis, si quid tale fuerit, evocare eos, qui contrahunt, et per se causam complere; proinde haec, quae contingunt raro, non impedimentum facient universis, eo quod nihil inter homines sic est indubitatum, ut non possit, licet aliquid sit valde justissimum, tamen suscipere quandam sollicitam dubitationem; sed nec quaestus eorum minores fieri per hoc, propter contrahentium frequentiam occasionem habentes, quum melius sit pauca agere caute, quam multis interesse periculose.
§ 4. – Ut tamen non vehementer eis dura lex esse videatur, nos coniicientes humanam naturam, mediocres etiam eis leges nostras ponimus. Propter tales enim eorum forte dubitationes damus eis licentiam singulis unum ad hoc constituere, gestis apud clarissimum magistrum census felicissimae civitatis solenniter celebratis, et licentiam eis dare, ut delegentur ei ab iis, qui veniunt ad eius stationem documenta, et dimissis eis interesse, et nulli omnino alteri in statione exsistenti licentiam esse, ut aut delegetur ei initium, aut quum dimittuntur, intersit, nisi tabellioni, qui auctoritatem habet, aut qui ab eo ad hoc statutus est. Si vero praeter hoc fiat, et alter delegetur, tunc subiacebit poenae tabellio, qui auctoritatem habet a nobis dudum definitam, ipsis tamen documentis propter utilitatem contrahentium non infirmandis. Novimus enim, quia legis metu de cetero et ipsi custodient, quae a nobis decreta sunt, et documenta sub cautela facient.
Illud quoque praesenti adiicimus legi, ut tabelliones non in alia charta pura scribant documenta, nisi in illa, quae in initio (quod vocatur protocollum) per tempora gloriosissimi comitis sacrarum nostrarum largitionum habeat appellationem, et tempus, quo charta facta est, et quaecunque in talibus scribuntur, et ut protocollum non incidant, sed insertum relinquant. Novimus enim multas falsitates ex talibus chartis ostensas et prius et nunc, ideoque licet aliqua sit charta (nam et hoc scimus) habens protocollum non ita conscriptum, sed aliam quandam scripturam gerens, neque illam suscipiant, tanquam adulteram et ad talia non opportunam, sed in sola tali charta, qualem dudum diximus, documenta scribant. Haec itaque, quae de qualitate talium chartarum a nobis decreta sunt, et de incisione eorum, quae vocantur protocolla, valere in hac felicissima solum civitate volumus, ubi plurima quidem contrahentium multitudo, multa quoque chartarum abundantia est. Et licet legali modo interesse negotiis, et non dare occasionem quibusdam falsitatem committere, cui se obnoxios exsistere demonstrabunt, qui praeter haec aliquid agere praesumserint.
Quae igitur placuerunt nobis, et per hanc sanctam declarata sunt legem, tua celsitudo operi effectuique tradere festinet.
Dat. XV. Kal. Septemb. Constantinop. post BELISARII V. C. cons. anno II. [537.]
Notas
* Sérgio Jacomino é registrador de imóveis, Presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e doutor em direito (Unesp).
[1] Este texto é dedicado ao Tabelião mineiro João Teodoro da Silva, cultor das letras jurídicas – especialmente do direito notarial, que entre nós ganhou impulso e vitalidade com a sua doutrina precisa e segura.
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