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IV Seminário de Direito Notarial e Registral de São Paulo
Aula magna do advogado Melhim Namem Chalhub


Aula magna ministrada no IV Seminário de Direito Notarial e Registral de São Paulo, realizado no dia 2 de setembro de 2006, no hotel Pergamon, na capital.

Afetação de incorporação imobiliária
Melhim Namem Chalhub*
 
Vou falar um pouco sobre como surgiu a Lei da Afetação que está intimamente relacionada à lei de alienação fiduciária.
 
Na ocasião da extinção do BNH, os setores envolvidos com o mercado imobiliário – como o Sindicato da Habitação, Secovi, e a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança, Abecip, entre outros –, trataram de estudar com seriedade em busca de soluções para o problema imobiliário habitacional. Isso mobilizou praticamente toda a sociedade a ponto de, em 1990, essa matéria ter sido objeto de duas CPIs – uma CPI e uma CPMI –, exatamente para investigar as causas da extinção do Banco Nacional da Habitação, BNH, e das crises do sistema financeiro de habitação. O sistema financeiro, baseado na correção monetária dos valores emprestados, utilizava os mecanismos de financiamento, quando não havia um sistema que pudesse sustentar permanentemente um mercado de financiamento imobiliário em busca de crédito.
 
Alguns mecanismos do sistema financeiro da habitação, SFH, mostraram-se ineficientes em face dos índices de inflação, como o de compensação de variações salariais, que compensava a diferença entre salário e correção monetária do saldo devedor, ou o reajuste dos salários dos tomadores de empréstimo. Por outro lado, também existia a interferência do governo nos contratos, que determinava a redução de cobrança de correção monetária dos financiamentos. Essa mistura levou pessoas, que não tinham condições para pagar, a suportar custos elevados de captação de mercado, ao passo que outras foram beneficiados com subsídios.

Identificados esses problemas econômicos, passou-se à formulação de grandes projetos de lei. A Abecip promoveu seminários com importantes técnicos econômicos e juristas alemães, franceses e norte-americanos, que estudaram a estruturação do sistema de financiamento de mercado. Montamos uma equipe que retratou a conclusão desses estudos com um anteprojeto de lei que propôs a criação de um novo sistema financeiro de habitação.

O segmento de habitação popular compreendia um interesse público bastante amplo, razão pela qual resolvemos suprimir o anteprojeto e fazer apenas um projeto de mercado de financiamento imobiliário.

A única preocupação que norteou esse projeto foi criar garantias mais eficazes de proteção para os créditos concedidos pelos financiadores. Nesse contexto, a doutrina do mundo todo vem trabalhando e gerando alguns projetos sobre o fideicomisso. Toda a América espanhola atualizou a figura do fideicomisso sublinhando a idéia do trust, da transmissão de propriedade para fins de investimento ou de garantia.

A transmissão da propriedade gera uma afetação patrimonial, presente no fideicomisso, tanto para fins de investimento quanto de garantia. Essa transmissão cria um patrimônio segregado pelo patrimônio do administrador, o mesmo que concorre com a propriedade fiduciária. A propriedade fiduciária implica averbação.

Mecanismos de financiamento de longo prazo: a securitização do crédito imobiliário

De todo o contexto que compreendia as crises habitacionais imobiliárias, restou um quadro geral cujas figuras principais são o prestador e o mercado de capitais, onde se buscam recursos para financiar o sistema de financiamento imobiliário. O SFI também decorreu desses estudos, depois de se constatar a inviabilidade econômica dos recursos típicos do sistema financeiro da habitação, SFH, como os da caderneta de poupança, para financiamento a longo prazo. Desse modo, buscaram-se mecanismos de financiamento de longo prazo no mercado de capitais, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos com a securitização do crédito imobiliário. Nesse momento aparece a figura do investidor.

Todo o sistema foi montado nas bases da fidúcia e da averbação. Temos a garantia da alienação fiduciária que protege os interesses dos financiadores, bem como a garantia fiduciária do processo de securitização dos créditos imobiliários, que garante o interesse das aplicações feitas pelos investidores, como os certificados de recebíveis imobiliários, que nada mais são do que a averbação dos créditos que constituem o lastro desses títulos de crédito. Essa idéia foi muito estimulada no projeto de lei tendo em vista o caso Encol, que motivou parlamentares a apresentarem projetos de lei sobre a afetação patrimonial da incorporação imobiliária. O poder Executivo, por sua vez, apresentou a MP 2.221/01, que, infelizmente, veio cheia de distorções, reparadas depois de muita discussão. Esse projeto de lei veio a ser convertido nos artigos 31-A a 61-F da lei 4.591/64.

O acréscimo desses artigos permitiu a formação de patrimônio de afetação no acervo das incorporações imobiliárias. Na primeira parte da estrutura do texto, há os conceitos da afetação e seus efeitos; na segunda parte, as obrigações do incorporador e a extinção do patrimônio de afetação; e na terceira, os procedimentos em caso de falência da incorporadora.

Elementos e características da afetação

O artigo 31-A dispõe sobre os conceitos e diz que, “a critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.”

Esses são os elementos da afetação, ou seja, são eles que definem o patrimônio e o acervo da incorporação. Em vez de “apartados do patrimônio”, o artigo deveria rezar “apartados no patrimônio”, uma vez que o acervo não sai do patrimônio do incorporador e a afetação não atinge os direitos subjetivos do incorporador. Ele é dono e continuará sendo dono do negócio cujo direito, como tal, continua sendo respeitado. A afetação apenas restringe seu direito, portanto, o correto seria “apartados dentro do patrimônio do incorporador”.

Quando se extingue a afetação? Quando se cumprirem as finalidades da legislação e a entrega das unidades. A lei não poderia definir com precisão, mas é fundamental que ela defina com clareza. A conclusão não se restringe apenas à entrega das unidades, mas à entrega com a titulação correspondente e devidamente registrada no registro de imóveis.

O parágrafo primeiro do artigo 31-A diz que “o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva.”

A incorporação continua funcionando do mesmo modo que funcionaria sem a afetação. O incorporador continua tendo as obrigações já previstas de maneira explícita na lei 4.591/64, bem como o poder de constituir garantias reais sobre o imóvel, desde que o crédito ao qual elas estão vinculadas seja aplicável e aplicado na incorporação.

No caso de cessão de direitos creditórios oriundos da comercialização das unidades imobiliárias, o produto da cessão também passará a integrar o patrimônio de afetação

A incorporação continua sendo objeto de fiscalização por parte da comissão de representantes, agora com amplos poderes. Além de poder fiscalizar o andamento das obras e aplicação de recursos, essa comissão tem acesso aos livros e documentos da incorporação, podendo até promover auditorias na incorporação.

Como toda afetação, o patrimônio tem sua própria contabilidade. De acordo com a lei, o incorporador deve entregar à comissão de representantes balancetes coincidentes com o trimestre civil, relativos a cada patrimônio de afetação.

Essa é uma dinâmica de fluxos de recursos de difícil análise. Ao incorporador cumpre demonstrar se há uma programação de receitas que assegure recursos necessários à conclusão da obra.

Ao prescrever que o termo de afetação tem de ser assinado pelo incorporador e pelos titulares de direitos reais, a lei nos leva a supor que, se o incorporador fizer a afetação, depois de já iniciadas as vendas, sobretudo com promessas de vendas registradas, ele deverá tomar as assinaturas dos adquirentes. De fato, essa é uma absoluta incongruência, uma vez que, na verdade, os maiores beneficiários da garantia da afetação são os adquirentes. Portanto, nada justifica que eles tenham de manifestar sua anuência a uma garantia para si próprios. Essa é uma das estranhezas da lei.

Originalmente, o projeto previa a afetação como um ato compulsório decorrente do próprio registro do memorial de incorporação. Havia dispositivos que obrigavam à assinatura do termo de afetação pelo incorporador e pelos titulares de direitos reais sobre o terreno. Mas, por intervenção dos segmentos da construção civil, a incorporação foi transformada num ato facultativo do incorporador, bem como foi criada uma disposição que permite fazer a afetação já com o andamento da incorporação.

Outro aspecto polêmico diz respeito aos valores afetados. Há quem diga que a totalidade das receitas de vendas deveria ser afetada. Absolutamente, não pode ser assim. Caso contrário, o incorporador não teria condições de pagar sequer a manutenção da sua administração central. A propósito, confira-se o parágrafo oitavo do artigo 31-A.

§ 8o Excluem-se do patrimônio de afetação:

I - os recursos financeiros que excederem a importância necessária à conclusão da obra (art. 44), considerando-se os valores a receber até sua conclusão e, bem assim, os recursos necessários à quitação de financiamento para a construção, se houver; e

II - o valor referente ao preço de alienação da fração ideal de terreno de cada unidade vendida, no caso de incorporação em que a construção seja contratada sob o regime por empreitada (art. 55) ou por administração (art. 58)
.

Obrigações do incorporador e extinção do patrimônio de afetação

Além das obrigações gerais, foram criadas algumas específicas. Antigamente, o incorporador tinha a obrigação de entregar à comissão de representantes um relatório semestral que avaliava o estado da obra. Agora, esse relatório é trimestral e deve demonstrar o estágio atual da obra correspondente ao prazo pactuado ou aos recursos financeiros integrantes do patrimônio de afetação para a finalização da obra.

Agora, na afetação, toda incorporação deve ter uma conta específica. Devem ser entregues balancetes coincidentes com o trimestre civil relativos à contabilidade do patrimônio. A nosso ver, isso é um exagero, porque o relatório trimestral já é suficiente.

O incorporador também deve assegurar à pessoa nomeada para fiscalizar e acompanhar o patrimônio de afetação o livre acesso à obra, bem como aos livros, contratos, movimentação da conta de depósito exclusiva e quaisquer outros documentos relativos ao patrimônio de afetação.

Conforme o artigo 31-E, o patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:

I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento;  

II - revogação em razão de denúncia da incorporação, depois de restituídas aos adquirentes as quantias por eles pagas (art. 36), ou de outras hipóteses previstas em lei; e

III - liquidação deliberada pela assembléia geral nos termos do art. 31-F, § 1o.

Como vêem, aumentou o poder dos adquirentes, que agora, em caso de falência, podem deliberar pela liquidação do patrimônio de afetação.

De acordo com o artigo 31-F, “os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação”.

O parágrafo primeiro do artigo 31F dispõe que “nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua falta, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembléia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora”.

Se a assembléia deliberar pelo prosseguimento da obra, “os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao contrato de financiamento da obra, se houver” (art. 31-F, §11). Esse é um dispositivo importante da lei porque muitas vezes as incorporações são decorrentes de financiamentos. Nesse caso pode ocorrer que se dê a falência no meio da obra, em fase de liberação de parcelas, quando a incorporadora ainda tem créditos de parcelas a realizar, de maneira que, havendo a falência, “cada adquirente responderá individualmente pelo saldo porventura existente entre as receitas do empreendimento e o custo da conclusão da incorporação na proporção dos coeficientes de construção atribuíveis às respectivas unidades...”.

Se, no entanto, a assembléia deliberar pela liquidação, ela também poderá autorizar a venda dos bens e direitos a ela relacionados, bem como a distribuição dos recursos. As dívidas serão pagas, observada a ordem legal de preferência. Se a reposição das quantias pagas não for obtida em leilão, os créditos serão habilitados na falência.

Na medida em que a afetação não atingir o direito subjetivo do incorporador, o conjunto de deveres e direitos fará parte do seu patrimônio geral, embora destacado dele. A lei 10.931, que dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, cria um “regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação”.

Como se trata de um mecanismo de proteção à economia, a incorporação imobiliária deverá ser afetada desde o momento do registro do memorial de incorporação.

Infelizmente houve uma alteração no anteprojeto original da lei, que protegia mais o consumidor. No entanto, como se trata de um mecanismo de proteção aos credores vinculados aos empreendimentos, na concessão de financiamentos os bancos passarão a exigir a instituição do patrimônio de afetação, o que acabará por beneficiar os consumidores.

*Melhim Namem Chalhub é advogado e autor do anteprojeto de lei que criou o regime da afetação patrimonial na incorporação imobiliária.

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