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Na edição de 4/6/2006 (Boletim Eletrônico n º 2465) a Rádio Irib trouxe a entrevista realizada com Fernando Méndez González, Nicolas Nogueroles, Sérgio Jacomino e Patrícia Ferraz, um bate-papo descontraído sobre temas de propriedade, registro, economia e Brasil.

Confira abaixo a transcrição do colóquio. Se quiser ouvir o áudio, acesso o Canal 3: café chileno.

XIII Encontro Nacional dos Conservadores de Bens de Raiz do Chile – Viña del Mar

Propriedade, registro, economia e Brasil


Reunidos na mesa de um café em Viña del Mar, no dia 19 de maio, em breve intervalo da intensa programação do Encontro Nacional dos Conservadores de Bens de Raiz do Chile, Fernando Méndez González, Nicolás Nogueroles, Patricia Ferraz e Sérgio Jacomino falaram sobre propriedade, registro, economia e registro predial brasileiro.

Sérgio JacominoGostaria de começar com um tema muito importante e atual. Afinal de contas, o registro se destina a proteger os proprietários de uma determinada classe social? A propriedade é um roubo?

Fernando Méndez González – Não. Pode dar essa impressão, mas o registro não tem por finalidade proteger uma determinada classe social, mas proteger o sistema de direitos de propriedade que, para ser útil, tem que ser um sistema ágil no qual a propriedade seja muito flexível, ou seja, que possa ser subdividido em muitas formas de propriedade e para facilitar a comercialização. Isso não interessa para muitos proprietários. Vejamos um exemplo. Uma das coisas que a República espanhola de 1869 fez, como em muitas outras, foi proibir as vinculações, ou seja, as restrições que os proprietários estabeleciam para que suas propriedades pudessem ser embargadas ou vendidas por seus sucessores. Pensemos ainda em algumas leis, na Escócia, por exemplo. Quando foi organizado o registro de propriedade, criou-se um mecanismo que se chama Lei de Derrogação dos Direitos Feudais, porque serve exatamente para garantir às pessoas comuns que o senhor feudal não vai vender sua propriedade para quatro, cinco ou seis pessoas. Além disso, permite que pessoas com poucos recursos, com pequenas propriedades, possam obter crédito e explorá-las, ou seja, não protege uma classe social, pelo contrário, cria facilidades para que todos os indivíduos possam acessar pouco a pouco as formas de aproveitamento dos bens em que consiste a propriedade e possam viver disso.

Fernando Méndez González

Nicolás Nogueroles – Muito bem lembrado. Todo o processo de estabelecimento do registro da propriedade na Europa é uma luta pela proteção daqueles que são mais fracos em face das classes que ostentavam maior quantidade de terras, como é o caso mencionado na Escócia. Quando visitamos a Escócia, disseram-nos expressamente que o registro foi estabelecido para proteger o povo do abuso de determinados nobres que hipotecavam duas vezes ou davam seus bens como garantia a particulares. O mesmo processo acontece na Inglaterra e o mesmo atraso na implantação dos sistemas notariais está em toda a luta que existe entre proprietários e a idéia do livre mercado ou a idéia da liberdade para todos. E o mesmo acontece na Europa continental. O estabelecimento dos registros na França se produz com a oposição da aristocracia. Logo, o estabelecimento do registro da propriedade em todo o mundo, geralmente, foi contra determinadas pessoas que, como nos disseram em uma das viagens, viviam do negócio obscuro ou se aproveitavam da confusão.

Ao dar segurança à propriedade, barateia-se o crédito

Sérgio JacominoQuer dizer que podemos pensar que o registro pode realizar a utopia da propriedade para todos, a universalização da propriedade?

Fernando Méndez González – Realizar a utopia da propriedade para todos é muito, mas é certo que é um instrumento que facilita a universalização da propriedade. Posso exemplificar como o registro permite diferentes formas de aproveitamento dos bens, ou seja, o loteamento ou fracionamento jurídico da propriedade faz com que determinadas formas de propriedade estejam ao alcance de mais gente. Por exemplo, é possível conceder uma opção de compra, se estiver regulamentada registralmente, e quem a concedeu, por sua vez, pode vender seu direito. Se não existisse registro, esse ato seria ilícito. Outro exemplo, posso hipotecar um bem e vendê-lo, porque quem o adquirir vai adquiri-lo gravado com hipoteca.

Isso permite que se possa adquirir uma fração de direito por menor preço ou que se possam estabelecer diferentes formas de propriedade, o que, sem registro, seria muito mais difícil. Mas, sobretudo, ao dar mais segurança à propriedade, barateia-se extremamente o crédito. E o levantamento de crédito que uma propriedade segura permite possibilita que outras pessoas possam adquirir propriedades.

Os países que carecem de sistemas registrais, ou têm sistemas registrais muito rudimentares, possuem poucos proprietários. Nos países que possuem sistemas registrais mais desenvolvidos, pelo contrário, há uma relação entre o sistema registral e a expansão da propriedade.

Patricia FerrazSe o registro pode ser visto como uma forma de defesa dos direitos de propriedade de um indivíduo em relação ao outro, ou dos mais pobres em relação aos mais ricos, em que medida ele pode auxiliar na defesa dos direitos individuais do cidadão, do direito de propriedade em face do próprio Estado

Fernando Méndez González – Muito. O que é a propriedade, o que é um título de propriedade ou uma inscrição de propriedade? É um contrato que estabelece firme com o cidadão a quem diz: “Reconheço que isso é seu e, se alguém não o respeitar, colocarei toda a força do Estado para defender esse seu direito”. E esse direito, de propriedade, é o que permite ao cidadão viver, porque ele é o principal ativo econômico de sua subsistência.

Se o Estado protege adequadamente esse direito, esses cidadãos começam a compreender exatamente o que é o Estado, para que servem os tribunais de justiça, que a polícia existe para protegê-los, por que têm de pagar impostos, etc., e começa a convivência civilizada. Mas se o Estado não assumir a proteção de direito de propriedade, você mesma terá que defendê-lo. E a propriedade é muito mais difícil.

Quem protege a propriedade é o que se converte na autoridade protetora e dominadora de tudo. Mais vale que seja o Estado, porque é o que estabelece os limites dos direitos entre todos.

Nicolás Nogueroles – A proteção de direito de propriedade está estreitamente relacionada com o desenvolvimento da democracia. Às vezes vemos os importantes efeitos produzidos pelo registro no âmbito econômico, mas também é preciso ter em conta os efeitos no âmbito social.

O reconhecimento da propriedade legitima o Estado, na medida em que diz ao cidadão que, ocorra o que ocorrer, sua propriedade será garantida frente a todos. Mas, além disso, outorga credibilidade ao Estado no âmbito internacional, na medida em que permite atrair capitais e investimentos.

Todos sabem que o estabelecimento desses registros cumpre um papel no desenvolvimento econômico, bem como facilita a criação de sociedades democráticas, não só no âmbito latino-americano como também no âmbito do Leste Europeu. Não é coincidência que nos países que sofreram uma guerra civil – refiro-me ao caso dos Bálcãs – a primeira decisão a se tomar é um pacto sobre a propriedade. É a reorganização da propriedade que está sempre presente nos tratados de paz.

Nicolas Nogueroles

O registro é um custo que se justifica na medida em que evita custos maiores

Sérgio JacominoEssa questão da propriedade e desenvolvimento econômico leva-nos a pensar um pouco sobre as iniciativas concretas relacionadas com a regularização fundiária. Qual é o problema da titulação em massa? Por que a titulação em massa não produziu os resultados esperados, prometidos, afiançados por Hernando de Soto? Qual é o problema da titulação em massa?

Fernando Méndez González – Acho que é um problema conceitual que está na base da razão por que a propriedade em massa não funciona. A idéia de titular maciçamente a propriedade é muito atrativa para o ministério. Por exemplo, não é muito atrativa para o Ministério da Fazenda, ou é muito atrativa para os que pretendem planejar o território, etc. E como normalmente as decisões políticas se inclinam para esses níveis, costumam ser feitas contemplando basicamente as necessidades desses organismos públicos, que são necessidades que devem ser levadas em conta, evidentemente. Mas há outras realidades que têm muito mais importância para os organismos públicos, que são as necessidades dos proprietários, dos cidadãos. O direito de propriedade é algo até certo ponto íntimo, muito pessoal, que alguém tem e protege na medida em que deseja protegê-lo. Mas se o Estado, para reconhecer sua propriedade, obriga as pessoas a realizar determinados trâmites forçosos, ele gera desconfiança no programa, gera desconfiança até nos registros públicos que se impõem obrigatoriamente.

Os cidadãos que vivem em áreas rurais, onde a economia é mais de subsistência que de intercâmbio, onde todos os residentes se conhecem, onde as propriedades apenas têm mobílias, não acham que o registro ajude para alguma coisa, porque o registro vai dizer a eles o que já sabem. Se o Estado o impõe, obrigatoriamente, tendem a desconfiar e a pensar que, na realidade, o Estado não lhes impõe essa obrigação para assegurar seus direitos, mas que, com isso, o Estado persegue outras finalidades.

Por isso, têm muito mais sucesso aquelas outras concepções do registro como um instrumento de proteção dos direitos que os proprietários devem utilizar na medida em que considerarem conveniente para eles, e isso é exatamente o que acaba ocorrendo.

Patrícia Ferraz em visita ao Registro Predial de Santiago

Quando se exige, por exemplo, de um pequeno produtor rural que, para obter uma subvenção, sua propriedade precisa estar registrada, a decisão de registrá-la é tomada por ele, o que faz com que ele comece a perceber o registro como algo seu, como algo a seu serviço, como algo que lhe serve.

Nicolás Nogueroles – A história mostra-nos duas coisas. Quando se estabeleceu a obrigatoriedade de registrar, geralmente se obedeceram duas causas - ou uma razão de tipo fiscal ou, em segundo lugar, uma razão de tipo jurídico.

Quando os sistemas registrais não ofereceram suficiente garantia dos títulos, não existiu o correspondente incentivo, a obrigatoriedade foi imposta. Isso é um caso que os anglo-saxões viram com muita clareza no século passado.

Patricia FerrazSe nas zonas rurais as pessoas carecem da publicidade registral porque todos se conhecem, nas áreas urbanas, especialmente nas áreas metropolitanas, em regiões ocupadas pela população mais pobre, onde o tráfico imobiliário é muito intenso, justificar-se-ia a titulação em massa promovida pelo Estado? Ali, onde as pessoas não se conhecem, precisariam de segurança com relação aos efetivos proprietários da terra?

Sérgio JacominoCompletando o raciocínio, diríamos que, na verdade, alguma razão econômica deve existir para explicar o fenômeno pelo qual, mesmo quando as pessoas não se conhecem, ninguém recorre ao registro?

Fernando Méndez González – Vejamos. O indivíduo desconfia do Estado, precisa ver as coisas muito claras para poder, digamos, confessar-se e declarar o que adquiriu, o que possui. Precisamente nas grandes áreas urbanas, onde a contratação se dá fundamentalmente entre anônimos, entre gente que não se conhece, é uma questão de confiança. Essas instituições de confiança devem ser oferecidas pelo Estado, uma vez que, onde o Estado não chega, surgemmáfias que o suprem.

O que o Estado tem de fazer é garantir o processo de registro fácil, pouco custoso e simples de realizar, mas não impô-lo. Digamos que o Estado tem de garantir que os custos de entrada no sistema sejam os menores possíveis, tanto em termos econômicos quanto em termos de trâmite, de tempo, de burocracia. Então sim os cidadãos vão usufruir do serviço, precisamente porque há trâmites jurídicos. Não é preciso impô-lo. A própria necessidade os levará a usá-lo sempre que, insisto, o custo de entrada for acessível. O registro é um custo que se justifica na medida em que evita custos maiores. Temos que fazer com que, para ingressar no sistema registral, o custo seja inferior ao que os sistemas alternativos e informais impõem.

Nicolás Nogueroles – Há uma idéia-chave, que completa a anterior, a idéia de flexibilidade. O sistema deve oferecer trâmites suficientemente flexíveis para que o cidadão escolha que direito quer proteger e em que grau quer protegê-lo. No Brasil, chamou-nos muito a atenção o fato de que não se podem inscrever as posses.

O particular, segundo a titulação que se tenha, segundo o grau de eficácia que se quer do registro, pode optar por um sistema ou outro. Se eu quiser proteger minhas posses e, com o transcorrer do tempo, facilitar sua conversão em propriedade, os requisitos para inscrever a posse vão ser menos estritos que os requisitos para inscrever a propriedade; a proteção do registro vai ser distinta e os custos também. Mas esses são os mecanismos que triunfaram e querem fazer pensar que o perfeito é o que deve aceder unicamente ao registro. É como uma história que levou muitos sistemas registrais ao fracasso e à criação de mecanismos marginais. Nossa experiência é esta: ao se tentar transplantar modelos registrais, que são perfeitos para sociedades muito avançadas, ocorreu ao cidadão socorrer-se de mecanismos alternativos.

Patricia FerrazQuando você fala de custos mais baixos possíveis para permitir o acesso desses imóveis ou dessas transações ao registro, como você vê, por exemplo, a idéia, que vez ou outra se procura impor no Brasil, de gratuidade do registro, para financiar regularização fundiária?

Fernando Méndez González – Acho que a palavra gratuidade é enganosa, uma vez que nada é de graça. A discussão no fundo é outra, ou seja, quem deve pagar o custo do serviço: o usuário ou o Estado? Os contribuintes devem pagar por esse serviço? Essa é a chave da questão. Acho que a idéia da gratuidade total não é boa, uma vez que o registro se põe à disposição de interesses particulares; o registro produz um beneficio geral, mas garante direitos privados dos particulares que recorrem ao registro.

É preciso facilitar. O Estado pode ajudar, pode subvencionar determinados casos, pode até oferecer determinado registro gratuito ou sob uma taxa muito especial; mas se não for pago, não será eficiente, além de não ser justo. Pensemos, por exemplo, que um credor, para assegurar seu investimento, pede uma hipoteca. Os contribuintes deveriam pagar a esse credor o custo de sua garantia? Devemos realmente pagar os custos da formalização da propriedade, por exemplo, a um senhor que tem uma casa e que gastou dinheiro para comprá-la? Isso não é suficiente nem justo para que todos participem do tráfico econômico, para que a economia prospere e o benefício seja disseminado pela sociedade, torne-se acessível. Mas, atenção, é preciso facilitar o acesso a todos, e para isso é muito importante que o custo seja o mais baixo possível para todos, também para os que têm propriedades a formalizar.

Patricia FerrazExiste um projeto de lei no Brasil que prevê a possibilidade de os registros de imóveis celebrarem convênios com as comunidades ou com as ONGs, ou com possuidores de áreas irregulares, para reduzir o valor dos custos de registro para a regularização fundiária de interesse social. Na verdade, é o registrador de imóveis que vai estabelecer um acordo para a redução desses custos. Como você vê essa possibilidade prevista em lei?

Fernando Méndez González – Teria de pensar sobre isso, mas, em princípio, não me parece muito racional. Se quiserem estabelecer preços reduzidos para situações excepcionais, terão de estabelecê-los em caráter geral para esse tipo de situação, não é?

O que não pode acontecer é que o indivíduo tenha ou não benefícios desse tipo em função do registro ou do registrador que lhe corresponde. Se isso for vantajoso, deverá ser também para todos os que se encontrarem nessa situação; e se não for vantajoso, não o será, sem exceção, em nenhum caso. Isso é o que parece óbvio. A verdade é que, na maior parte dos países, como na Espanha, são estabelecidas taxas menores para casos excepcionais.

Quero dizer ainda, embora esse não seja um argumento muito popular, que temos de compreender que, se alguém paga menos do que deve, alguém paga mais do que deve. Ou seja, quem paga menos está transferindo os custos para outro. É preciso ser o mais racional possível, porque, em âmbito internacional, não se podem adotar medidas de estilo dificilmente editáveis, porque o político certamente cairá na tentação de usar as custas.

O que ocorre nas favelas é resultado da incapacidade do Estado de proteger os direitos de propriedade

Sérgio JacominoA utilização política do registro da propriedade, da titulação em massa, leva a uma questão. Qual o risco que corremos com a captura do registrador pelo interesse político, uma vez que todas essas questões de gratuidade, titulação em massa podem levar a uma situação de exploração política da regularização da propriedade?

Fernando Méndez González – Se observarmos o que ocorre na maior parte dos casos de titulação em massa, veremos que as primeiras inscrições da regularização ocorrem, mas não há segundas inscrições. Ou seja, fazemos apenas o que nos obrigam, mas imediatamente abrimos mão daquilo que gera imposto. Hipotéticos benefícios derivariam daí e, se não derivam, é porque não é algo que esteja sendo exigido pelo mercado, mas algo que está sendo imposto.

Que efeito negativo pode produzir isso? A utilização oportunista de uma boa idéia que acaba invalidando a própria idéia, isso é o mais perigoso. É necessário definir bem os direitos de propriedade. É necessário reorganizar bem os sistemas registrais. Mas, geralmente, quando se regularizam, quando se inicia um programa desse tipo, alguns políticos costumam cair na tentação de prometer às pessoas a felicidade, de gerar expectativas excessivas. Quando essas expectativas não se cumprem, o desencanto pode ser de tal calibre que acabem recusando o registro, que acabem invalidando o registro, e isso é perigosíssimo, porque os cidadãos necessitam de um bom registro para poder sair pouco a pouco de sua situação. É preciso esclarecer a população, fazê-la compreender que melhorar a própria condição é custoso, requer esforço, requer tenacidade, não é nada milagroso. Se alguém recebe um título de propriedade, não se converte automaticamente em esperto, bonito, rico, não é? Simplesmente, o título facilita-lhe as coisas para que com seu trabalho, seu esforço, possa prosperar; mas é muito difícil que um político veja essa mensagem, esse tipo de registro é muito perigoso por essa razão.

Nicolás Nogueroles – Na América Latina, os casos de titulação em massa, de oferta de títulos por parte de políticos, há pouco tempo mostrou-se inviável, uma vez que as instituições às quais eles precisam prestar contas desconfiaram dos títulos. É preciso verificar como o título foi criado, que procedimento o gerou, se está devidamente registrado, se ficam as garantias, porque, do contrário, o título não é confiável e, naturalmente, levará consigo o desprestígio da instituição registral. Trata-se de fazer saber que existem instituições nas quais os cidadãos, o poder público e os agentes podem confiar.

Patricia FerrazVocê disse que se o Estado não se faz presente para organizar os direitos de propriedade são os indivíduos que se organizam para suprir essa ausência. No Brasil, temos exemplos de tabelionatos e de registros informais em grandes áreas de favela. Você também disse que, se esses processos de titulação em massa não são feitos de forma adequada, corre-se o risco de se frustrar a expectativa dos cidadãos que vão negar a importância do registro. Nega-se a idéia do registro formal e público, com uma transferência de interesse para o registro informal a lattere, ou se nega o registro em geral?

Fernando Méndez González – Não só o registro oficial público. É preciso levar em conta que o registro, assim como os hospitais, por exemplo, não existem por acaso, existem porque há necessidade. Se o Estado não atende e não supre essa necessidade simples e básica, alguém o faz. De fato, as máfias são formas primitivas que atendem a uma demanda. São chefes de órgãos muito importantes que vão aparecer na cidade de uma forma mais moderna que a que conhecemos na organização política. O que ocorre nas favelas é resultado da incapacidade do Estado de proteger os direitos de propriedade, que é o primeiro direito de cidadania. Resultado: surgem outrosestados dentro do Estado. Mas esses estados dentro do Estado têm seus próprios interesses; o primeiro e mais importante é que o Estado fracasse exatamente nesse ponto. Portanto, se o registro público fracassa por uma utilização oportunista por parte do poder político, os primeiros a brindar serão essas organizações, que vão consolidar e incrementar seu poder sobre essa parte da população que acredita que esse estado dentro do Estado é o melhor poder. O que não é verdade, uma vez que tudo é mais inseguro e muito mais caro.

Sérgio JacominoTemos discutido muito a respeito de uma análise econômica do Direito. Será que poderíamos falar de uma análise jurídica da Economia?

Fernando Méndez González – É mais correto falar de uma análise jurídica da Economia que de uma análise econômica do Direito. É curioso que os novos descritores da Economia pretendam que a economia seja o novo direito natural.

Mas no mundo em que nos movimentamos, em nossa sociedade, não vejo nenhuma instituição natural. Há casamentos, sociedades anônimas, usufrutos, propriedades, mas isso tudo são institutos jurídicos, não realidades naturais. Essas instituições jurídicas existem para cumprir necessidades. O que diz a análise econômica? Ela oferece instrumentos para organizar essas instituições da maneira mais útil possível. Mas a análise econômica não nos vai dizer que instituições temos de criar; elas vão surgindo. O que nos interessa é sua racionalização, entendê-las melhor e melhorá-las, mas a técnica de organização é jurídica.

Patricia FerrazPor isso ela se chama análise econômica…

Fernando Méndez González – A análise econômica em Direito utiliza o nervo da Economia, que é a essência aplicada a todo tipo de instituição.

Nicolás Nogueroles – Às vezes, as palavras nos levam a pequenas confusões. Os juristas acreditam que, ao falar de análise econômica, estamos sendo invadidos pela ciência econômica, razão pela qual taxam essa análise de economicista. A coisa não é tão simples. No final, trata-se de analisar como atua o ser humano. Em alguns casos, ao tomar suas decisões, o ser humano analisa o custo/benefício e, em outros casos, não. Portanto, não significa reduzir a análise ao aspecto meramente econômico, mas trata-se de não desconhecer as fortes implicações que isso tem no âmbito jurídico. O método que vamos utilizar é um método jurídico, estamos resolvendo como juristas, mas a análise da realidade social tem de estar fundamentada na resposta que o ser humano oferece, ou seja, na forma como ele atua. Esse fator, portanto, não pode ser desconhecido. Não se pode desconhecer como o homem atua, bem como os efeitos de sua atuação. Não há nenhuma subordinação; o que existe é uma tentativa de integrar distintos esquemas e distintos sistemas para aproximar-se da realidade.

Fernando Méndez González – Definitivamente, a análise econômica do Direito significa que os juristas devem incorporar em sua argumentação argumentos de eficiência, senão produzirão desperdícios em suas regulamentações, uma vez que utilizarão mais recursos do que o necessário para alcançar suas finalidades. Produzirão não só desperdícios como também, em muitas ocasiões, resultados contrários aos pretendidos. É preciso considerar que, quando o Direito regulamenta, o que ele faz é definir como serão utilizados os recursos. A economia consiste nisso: decidir como devem ser utilizados os recursos de modo mais eficiente, de modo que quem está fazendo direito está também fazendo economia, embora não perceba.

Nicolás Nogueroles – De todas as leis históricas da Espanha, somente mencionaremos duas. A exposição de motivos da Lei hipotecária de 1861 é considerada, por alguns de nossos juristas, como um dos primeiros textos de análise econômica da Espanha; ou as considerações sobre a ação de restrição em matéria de contratos, que é outro suposto, mediante o qual todos os outros deveriam ser analisados para certificarmo-nos de como os legisladores do século XIX tomaram as decisões num ou noutro sentido de organização.

A propriedade não é apenas um lugar físico, mas um bem que pode entrar no mercado – sua grande função

Patricia FerrazExiste a tese de que o registro é um instrumento importante para que, gradualmente, todos tenham acesso à propriedade e à possibilidade de uma melhoria socioeconômica, uma vez que a propriedade regularizada permite aceder a créditos com juros mais baratos. É possível concluir, então, que o registro imobiliário tem tanto uma função econômica como uma função social?

Fernando Méndez González – É lógico. Aqui ocorre o mesmo que com a análise econômica do Direito. Na realidade, acreditamos falar de coisas distintas quando falamos de funções econômica e social. Mas não. A função da Economia consiste em fazer com que todos os indivíduos vivam melhor, portanto, a melhor função social em Direito é conseguir uma boa organização econômica.

Vou apresentar um exemplo. Anos atrás, discutia-se na Espanha que a melhor proteção para os consumidores do mercado de crédito consistia em organizar o mercado de tal maneira que os bancos competissem entre si. Essa é a melhor proteção para o consumidor. Se não houver competição entre os agentes do mercado, os consumidores não estarão sendo protegidos. Mas é preciso que isso fique bem claro, uma vez que, do ponto de vista político, é muito fácil fazer leis de proteção aos consumidores que, embora se chamem assim, na realidade são prejudiciais para os consumidores, porque impõem encargos, por exemplo, o que lhes traz dano quando querem trazer-lhes benefício. Na época de François Mitterrand, por exemplo, foram introduzidos muitos créditos preferentes ao do credor hipotecário, o que supostamente protegeria os consumidores. Qual foi a conseqüência? As taxas de juros na França são as mais elevadas da Europa. O mercado hipotecário na França, neste momento, é de 25% do PIB, ao passo que no resto da Europa está acima dos 50%; além disso, ele foi substituído pela caução, o que é muito pior para os consumidores. Essas são as conseqüências de fazer Direito sem saber Economia. Na Espanha, dizemos que o inferno está cheio de boas intenções. Uma coisa são as intenções, outra, os efeitos que são produzidos. Boas intenções e ignorância já produziram muito prejuízo.

Nicolás Nogueroles – Há um preconceito ideológico que provém do período da Ilustração, qual seja, acreditar que uns se dedicam a uma função social e outros se dedicam simplesmente a favorecer o que mais tem ou o que menos tem; no fundo, isso é falso. No período da Ilustração, todas as ideologias respondem a uma mesma finalidade, todas respondem à idéia de liberdade, de igualdade entre as pessoas. A única coisa que está inserida aí são os distintos caminhos de como chegar a isso, e aí estão as distintas respostas de tipo político. Mas todas são ilustradas. Portanto, a finalidade que se estabeleceu com determinados sistemas econômicos não era explorar a uns para que outros obtivessem o benefício, mas estabelecer os mecanismos que levassem à igualdade e à liberdade. Isso é um pouco o que acontece quando se faz demagogia barata com todos esses temas. Os exemplos sobre o registro são evidentes, como mencionamos. Muitas vezes, se forem introduzidas medidas aparentemente sociais, como acontecia na Rússia, ou seja, se a hipoteca for executada, cria-se um arrendamento a favor do devedor, para assim, protegê-lo socialmente. O efeito de tudo isso é o não-funcionamento das hipotecas, não havia hipoteca. Alguma vez, na Espanha, estabeleceu-se uma medida de proteção dos consumidores em relação à execução de hipotecas, ou seja, não se poderia executar toda a hipoteca, mas tão-somente o prazo ou a parte que se devia; o efeito imediato foi o aumento da taxa de juros, o que acabou prejudicando toda a sociedade.

Fernando Méndez González – Vou dar um exemplo que é muito discutido: a flexibilidade. A demissão deve ser livre ou não, deve ser barata ou custosa? O que é melhor para todos? O melhor para que se tenha emprego é que o mercado de trabalho seja flexível e a demissão não seja excessivamente cara. Não precisa ser gratuita, mas não pode ser excessivamente cara, porque, se o empresário sabe que poderá despedir por um custo razoável, vai contratar, mas, se não for assim, não vai contratar. O que isso quer dizer? Os sindicatos que perseguem essas políticas não estão interessados em criar emprego, estão interessados em que os que já o possuem conservem-no, o que gera desemprego.

Sérgio JacominoOntem foi dito que o direito de propriedade será tão, ou mais, ou menos eficaz quanto for a proteção e a tutela judicial que se lhe dê. Como vocês enxergam o relacionamento do registro com o poder Judiciário?

Nicolás Nogueroles – O direito de propriedade vale na medida em que é reconhecido por todos. Portanto, tudo o que está no registro valerá na medida em que os tribunais o reconheçam, porque, se houver algum conflito, ele será decidido com a regra. A função do registro é uma função muito próxima da jurídica. Na medida em que o registro nos diz quem é dono e com quem podemos contratar, está protegendo a propriedade. Mas, além disso, está nos facilitando a contratação, facilitando que possamos negociar esses direitos. A propriedade não é tão-somente um lugar físico, mas um bem que pode ser contratado e entrar no mercado, o que é a sua grande função. A função de determinar esse direito, de defini-lo, está muito próxima da função do juiz. É uma velha discussão. Não vale a pena perder muito tempo para discutir se se trata de função judicial ou administrativa, mas é preciso identificar e analisar a natureza do que há ali. Uma pessoa é proprietária na medida em que é reconhecida por todos, e esse reconhecimento é prestado pelo registro. Por isso, nos sistemas, tanto europeus quanto americanos, a função dos registros sempre oscilou entre dois pólos: o âmbito meramente administrativo e o âmbito dos tribunais de Justiça ou dos ministérios de Justiça. Quem levou o registro para o âmbito estritamente administrativo? Aqueles que acentuaram uma função arrecadatória de impostos, conseqüentemente, levaram-no para o âmbito dos ministérios da Fazenda e da Economia. Nesses casos, o registro foi visto somente como um meio para a cobrança de impostos. Nos países latinos, isso gerou grande desconfiança nos registros, o que levou os particulares a mentir ou a não realizar declarações exatas. Cito como exemplo extremo o caso das medidas das propriedades que muitas vezes não correspondem à realidade porque se pretendia enganar o fisco. Outra idéia é de que a finalidade máxima de registro é proteger e facilitar a negociação e de que as demais são funções auxiliares que o registro pode prestar. Nesses casos, o registro aproximou-se bastante dos ministérios da Justiça, sobretudo no século XIX, quando a separação entre tribunais e ministérios não era clara, ou próximo da idéia dos tribunais de justiça, porquanto a função de um está estreitamente relacionada à do outro. Atribuiu-se fundamentalmente ao registrador uma posição similar à que ostentam os juízes. As experiências internacionais apontam duas respostas: a dos países que configuram como juízes, um problema de eficiência, como é o caso da Alemanha e da Áustria; e a de países que criaram um funcionário especializado ao qual atribuíram umstatus muito próximo ao de um juiz, no que diz respeito à independência e autonomia, no sentido de que o registrador não recebe ordens de nenhum superior hierárquico em matéria de qualificação, o que permite que tanto os particulares como a administração do registro sejam tratados em condições de igualdade. A situação oposta seria situar o particular em face da administração de registro, na condição de desigualdade e, conseqüentemente, de desconfiança. O recomendável seria aproximar o registro do poder Judiciário, mas com a garantia da correspondente independência da função, devidamente reconhecida.

O registro será mais perfeito na medida em que os ônus que afetam a propriedade estejam no registro

Patricia FerrazNo Brasil, iniciou-se uma discussão entre os registradores a respeito da inserção da fé pública registral no nosso sistema registral. Um dos argumentos contrários a isso é o temor da má qualidade de títulos que foram confeccionados no passado e das conseqüências que isso poderia gerar para os registradores, que têm responsabilidade civil e objetiva sobre os atos que praticam. Isso é uma dificuldade? Como superá-la?

Fernando Méndez González – Creio que a polêmica está resolvida no sentido de que, se possível, é melhor organizar um sistema registral de fé pública. Basicamente porque garante melhor a propriedade e é barato. Mas isso exige uma organização registral que controle rigorosamente aquilo que entra no registro e passa a ser objeto de proteção. É necessário que se controle, em primeiro lugar, a legalidade, o que depende basicamente do registrador. Também é necessário que o contrato seja legítimo, não esteja adulterado ou falsificado, o que se pode conseguir de várias formas, como, por exemplo, reforçando a intervenção notarial, quando necessário, ou introduzindo novas tecnologias em matéria de assinatura eletrônica. Quanto à autenticação, a assinatura eletrônica é bastante segura, uma vez que permite que particulares possam contratar direta e gratuitamente o registrador, e não haja dúvidas quanto à identidade, consentimento, do que dizem as partes. A realidade internacional nesse sentido é bastante ampla. Nos países do Leste europeu, por exemplo, primeiro exigiram uma documentação notarial para tudo e, pouco a pouco, flexibilizaram a exigência. Os contratos estão padronizados, sujeitos a modelos; são contratos que as partes podem rejeitar diretamente diante do registrador. Desaparecem os problemas de autenticidade ou de dúvidas. Certamente, na medida em que o registro passa a garantir mais os direitos no sistema registral de fé pública que em qualquer outro, o registro passa a ser mais importante, bem como a figura e a responsabilidade do registrador. Isso exige um grande preparo dos registradores e, é claro, um forte espírito de responsabilidade, o que, evidentemente, é compensador para o país. O registrador passará a ocupar uma posição na qual sua responsabilidade pode ser muito mais evidente, mas, precisamente, a ameaça de responsabilidade força a atuação com bastante rigidez, o que é uma grande garantia para os cidadãos.

Nicolás Nogueroles – Qualquer tentativa de estabelecer sistemas de fé pública tem de ser progressiva e paulatina, não se pode estabelecer fé pública da noite para o dia. A experiência histórica mostra que, em alguns países, isso leva a desacreditar os sistemas. Algumas tentativas, como nos Estados Unidos, fracassaram porque se estabeleceu um sistema de proteção extremamente forte como o da fé pública. Além disso, em qualquer implantação de um sistema de fé pública haverá fortes interesses para que ele não prospere.

Patricia FerrazNo Brasil, tramita no Congresso nacional um projeto de lei que insere de forma total, no sistema registral, a inoponibilidade ao terceiro adquirente de boa-fé que adquiriu seu direito a título oneroso. Isso poderia ser visto como um primeiro passo importante nesse caminho para chegarmos a um registro mais fortalecido e mais seguro para o cidadão?

Nicolás Nogueroles – Sem dúvida. Essa é uma idéia muito boa, uma vez que o registro se fortalece, na medida em que o indivíduo que confia no que disse o registro só se vê afetado por aquilo que está no registro. A última reforma da legislação inglesa, de 2002, fala desse mesmo conceito em sua exposição de motivos. O registro será cada vez mais perfeito, na medida em que os ônus que afetam a propriedade estejam no registro. Isso é um pressuposto necessário para que se possa aplicar as novas tecnologias e a contratação por meio da assinatura eletrônica.

Patricia FerrazOutra novidade desse projeto de lei é permitir que se concentrem no registro de imóveis todas as informações relativas aos bens de raiz, incluindo a existência de circunstâncias que possam de qualquer forma atingir os imóveis, como, por exemplo, o ajuizamento de ações condenatórias em face do titular do direito inscrito. No seu entender, a possibilidade de inscrição dessas ações condenatórias é econômica e socialmente benéfica, ou pode acarretar algum obstáculo para as transações comerciais?

Nicolás Nogueroles – É importante considerar que, como informação pública, o registro apresenta diferentes graus de eficácia. É preciso ter cuidado com aquilo que se pretende que o registro seja: um centro de informações. Então, todo tipo de informação relativa a bens imóveis, ao solo ou ao planejamento compete ao registro. Isso pode ensejar que o registro responda por algumas coisas e não por outras. E pode conduzir a um correspondente desprestígio. Portanto, em primeiro lugar, sempre há que se ter bastante claro as limitações de caráter jurídico que o registro possa abrigar e as que o registro, ainda que não as publique, carecem de valor, o que, na doutrina italiana, é chamado de publicidade-notícia. Do ponto de vista prático é conveniente que tudo aquilo que faz referência ao indivíduo, que afeta sua capacidade de dispor, tenha reflexo no registro, o que se pode conseguir, diretamente, por meio de assentamentos no registro, ou de outra forma a se coordenar com o registro civil. Se pensarmos a questão de outra maneira, no fundo, o que o registro nos oferece sempre é uma legitimação da posse, além da grande virtude dos registros que nos dizem: “Com este podemos contratar”. O registro nos diz que os registradores não apenas controlam a capacidade como também a legitimação, as representações e, conseqüentemente, tudo o que diz respeito a esse assunto.

Sérgio JacominoPara finalizar, uma palavra aos registradores brasileiros que ouvem a rádio Irib.

Fernando Méndez González – Bem, nós temos tido contato com registradores brasileiros já há bastante tempo. No momento, o que posso dizer é que o Brasil, o quanto conhecemos, dispõe de profissionais muito sérios, profundos conhecedores do registro e do que têm em mãos. E, sobretudo, o Brasil tem algo que nos agrada muito, que é um enorme interesse, um enorme desejo de que o sistema melhore e de que seja cada vez mais útil, para que todos os cidadãos brasileiros possam viver melhor.

Nicolás Nogueroles – A experiência das relações com registradores brasileiros nos últimos quatro anos demonstrou que o Brasil atingiu um alto grau técnico-científico no âmbito latino-americano e no âmbito europeu. E o mais importante é que existe uma grande inquietude: o Brasil está em condições de realizar as mais modernas reformas para melhorar definitivamente um sistema que por si é muito avançado no âmbito internacional.



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