BE2479

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Ata Notarial
Utilização x utilidade   
Valestan Milhomem da Costa*


A ata notarial tem sido tema de intenso estudo, recebendo atenção de expressivos juristas com atuação no Direito Notarial e Registral brasileiro.

Como exemplo, citemos a coletânea intitulada ATA NOTARIAL, ed.saFE/Irib: Porto Alegre, 2004, coordenada por Leonardo Brandelli, com artigos dos notáveis João Teodoro da Silva, o próprio Leonardo Brandelli, Walter Ceneviva, Regnoberto Marques de Melo Júnior, Justino Adriano Farias da Silva, Narciso Orlandi Neto, Kioitsi Chicuta, Amaro Moraes e Silva Neto, José Flávio Bueno Fischer em parceria com Karin Regina Rick Rosa, e Mirta Morales Loulo, os quais abordam questões que vão desde a etimologia do termo e suas distinções, os cuidados necessários, os usos, os desvios no uso, a evolução, o conteúdo, a finalidade, a utilidade até a credibilidade do instituto, inclusive no Direito estrangeiro.

O Boletim Cartorário, integrante do Diário das Leis Imobiliário, tem sido campo de amplas e significativas manifestações sobre o tema, algumas das quais, inclusive, passaram a integrar a coletânea antes citada.

Porém, por mais que se escreva sobre ata notarial, dificilmente se esgotarão as possibilidades de sua utilização e utilidade, visto que se destina a registrar fatos juridicamente relevantes, impossível de serem limitados.

De outro lado, não se pode achar que ata notarial seja panacéia para todos os males, ou que o fato de um instrumento ter rubrica de “Ata Notarial” vai conferir automaticamente credibilidade e utilidade para o que nela se registra, ou que essa rubrica seja sinônimo do ilimitado, do tudo pode, do tudo vale.

Como instituto jurídico, a ata notarial tem suas regras de validade, o que significa dizer regras de utilidade, as quais, se não forem observadas produzirão atas notariais cuja utilidade equivale à de um comprimido de maisena: mero efeito psicológico.

Por tudo que já se escreveu e se explicou sobre ata notarial, pode-se entender que ata notarial é instrumento de registro e não de criação. É ato que registra fato e não ato que constitui fato. É ato consectário do fato, mas autônomo ao fato, não podendo ser supedâneo do fato. Ou seja: para que o ato (fato) possa ser objeto de ata ele deve estar consumado antes da ata, ainda que alguns fatos ocorram na presença do tabelião.

Daí porque os verbos nas atas são sempre no pretérito, nunca no presente, e muito menos no futuro - “compareceu, pediu, constatei, ouvi, vi, verifiquei, fui, etc”.

Parece-me que essa compreensão pode reduzir em muito as hipóteses de utilização sem utilidade da ata.

Mas o tema tem sutilezas que mesmo juristas notórios podem desperceber.

Por exemplo: na coletânea acima mencionada, João Teodoro da Silva aponta o auto de aprovação do testamento cerrado como exemplo de ata notarial. Tenho cá minhas dúvidas, pois o auto de aprovação é supedâneo para a validade do testamento cerrado. O escrito do testador sem o auto de aprovação não passa de escrito, ainda que cerrado. Não tem valor de testamento cerrado.

Ademais, o auto de aprovação do testamento cerrado deve ser “assinado pelo tabelião, pelas testemunhas e pelo testador” (art. 1.868, IV, CC) e envolve evidente manifestação de vontade do testador de que “aquele é o seu testamento e quer que seja aprovado” (art. 1.868, II, CC).

Também, o auto de aprovação integra o testamento cerrado (art. 1.869 e Parágrafo único, CC). Portanto, a toda evidência, o auto de aprovação de testamento cerrado não é mero registro de fatos ocorridos, mas a confirmação de um ato que se quer produzir, cujos efeitos dependem do auto de aprovação.

Aliás, se o escrito do testador sem o auto de aprovação não produz os efeitos desejados, não pode ser considerado um fato juridicamente relevante, pelo menos não com esse nome, e isso por si só desqualificaria o escrito como objeto de ata notarial.

Porém, há uma particularidade referente ao testamento cerrado que coaduna com os fins da ata notarial: registrar fatos consumados. Diz respeito à nota que o tabelião lançará em seu livro do lugar, dia, mês e ano em que o testamento foi aprovado e entregue (art. 1.874, CC). Eis uma ata notarial, e diga-se, de ofício; aliás, também citada por João Teodoro.

Essas observações, contudo, servem para ilustrar como é possível, a meu ver, atribuirmos características de ata notarial para hipóteses imperfeitas, mas em nada embaçam o brilho do trabalho do grande jurista João Teodoro, nem desnaturam o auto de aprovação, nem descaracterizam a ata notarial, pois certamente ninguém procurará o tabelião para fazer uma ata de aprovação de testamento cerrado, uma vez que ata não aprova nem desaprova nada, apenas registra o que está feito.

Registre-se, também, que João Teodoro da Silva, em sua “Ata Notarial”, faz distinção etimológica entre “auto” e “ata”. Mas, como me parece ainda possível refinamentos nos conceitos da ata notarial, faço essas observações de valor intelectivo.

Porém, há hipóteses de utilização que comprometem a utilidade da ata. Para ilustrar, e sem querer estender muito, cito aqui apenas um exemplo, extraído do artigo publicado no Boletim Cartorário do DLI 3º Decêndio Agosto/2004, nº 24, pp. 31/33, de autoria do Dr. Felipe Leonardo Rodrigues, Escrevente autorizado do 26º Tabelionato de Notas de São Paulo, estudioso entusiasta do tema, não só com o propósito de fazer jus ao objetivo do Boletim Cartorário, exaustivamente destacado pelo Dr. Antonio Albergaria, como também pela relevância do exemplo.

A hipótese diz respeito à possibilidade de se lavrar ata notarial para registrar “nomeação de tutor”, sobre a qual fiz considerações diretamente ao colega Felipe, por meio de carta.

Ocorre que nomeação de tutor somente se constitui mediante manifestação de vontade clara dirigida a esse propósito em documento hábil, não se realizando, portanto, informalmente, talvez numa conversa entre os pais e o possível tutor, onde se acertariam os detalhes e os motivos da escolha para essa incumbência, de sorte que tal acordo verbal pudesse ser objeto de ata notarial, como se a nomeação do tutor estivesse consumada, pois não é o caso. É o que se depreende da leitura de artigos do Código Civil:

Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: [...] IV –nomear -lhes tutorpor testamento ou documentoautêntico, [...];

Art. 1.729. O direito denomear tutor compete aos pais, em conjunto. Parágrafo único. Anomeação deve constar de testamento ou de qualquer outro documento autêntico.

Sem que seja preciso maiores considerações sobre o verbo nomear, nomeação é ato de vontade, estabelecendo o Código Civil que essa manifestação de vontade seja feita “por testamento público ou outro documento autêntico”, ou seja, documento “certo, revestido das formalidades legais para sua validade” (Michaelis), que, em se tratando de manifestação de vontade, não poderá ser a ata notarial.

Portanto, a meu ver, ata de nomeação de tutor é exemplo de utilização sem utilidade.

Considero essa hipótese relevante não só por ser emblemática de utilização sem utilidade, mas também porque a falta de utilidade, nesse caso, tem sérias conseqüências jurídicas: o não atendimento da vontade dos pais, seguindo a nomeação do tutor o rito normal especificado no Código Civil, que poderá ser adverso à vontade dos pais.

No Estado de São Paulo, onde as “Normas de serviço de cartório extrajudicial – SP, Capítulo XIV, do Cartório de Notas, Seção II” da Corregedoria Geral de Justiça estabelece que a ata notarial deverá ser assinada pelos solicitantes e testemunhas, conforme informado pelo próprio Felipe Leonardo Rodrigues, no Boletim Cartorário, DLI, 2º decêndio Janeiro/2006, pp. 33 e 34, talvez seja possível dar validade à nomeação de tutor constante de ata notarial.

Contudo, parece ser um desvio da finalidade da ata: autenticar fatos, e não constituir fatos.

Ademais, sendo a ata um meio de o tabelião autenticar fatos presenciados ou percebidos pelos seus próprios sentidos, sem que para isso deva estar acompanhado de qualquer pessoa, sendo, ainda, nas palavras de Amaro Moraes e Silva Neto, no artigo:Ata notarial constitui uma revolução no processo civil ”, publicado no endereço eletrônico http://conjur.uol.com.br, de 09/11/2004 - com a ressalva do autor de não serem os termos científicos -,uma fotografia feita com palavras que, como benesse maior, oferece a fé pública”, e, ainda, que “a instituição da ata notarial criou a figura datestemunha profissional (com fé publica)” (grifamos), a assinatura de qualquer pessoa além do tabelião só pode ser considerada apêndice, e diga-se: dispensável.

Afinal, quem é que tem a fé pública para autenticar fatos? Se o tabelião depender da assinatura de qualquer pessoa para autenticar fato, cadê a sua fé pública?

Assim, utilização e utilidade devem ser partes inseparáveis da ata notarial. Ata sem utilidade é medicamente que não cura, e pode deixar seqüela. Procedimentos sem utilidade oneram e deformam este belo instituto: ata notarial.

É o que gostaria de registrar brevemente.

* Valestan Milhomem da Costa é tabelião e oficial substituto no Estado do Rio de Janeiro.



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