BE2460
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Ainda sobre a insegura segurança do nosso sistema registrário.
Alexandre L. Clápis*
Com todo respeito às opiniões divergentes o CC parece mesmo “desafinar” em sua contextualização.
Em nenhum momento se afirmou que o CC adotou a fé pública imobiliária. Aliás, há muito sabemos (ou pelo menos recebemos as notícias doutrinárias) de que nossa presunção é relativa.
Hoje isto pode ser uma constante em nossa realidade, mas a jurisprudência não teve tanta segurança após o advento do CC de 1916. Vale destacar que o STF somente após a primeira metade do Séc. XX é que se manifestou pela relatividade da presunção registrária.
A fantástica obra de Soriano Neto (1940) foi um marco significativo para que o entendimento fosse este. Até então, parte significativa da doutrina (Clóvis, Lysippo, Philadelpho, dentre outros tantos) mantinha o entendimento de que a presunção não era relativa.
O problema da causa e da separação dos planos emrelativos eabsolutos, como esclarece Couto e Silva (Obrigação como processo), no meu entender, não afasta nem afeta a possibilidade da presunção absoluta.
Em nosso direito a tradição e a transcrição sãomodus de aquisição, constituição e transmissão de direitos reais, respectivamente, sobre coisas móveis e imóveis e que têm como causa um negócio jurídicointer vivos, um título.
A teoria do título e do modo, que repousa sobre atraditio romana em que tinha unidade, influenciou o direito medieval e foi desdobrada em dois conceitos distintos:iusta causa – que é a sede do elemento volitivo ou doanimus; e ocorpus – que é o elemento material da transmissão da posse. Possível visualizar nestes conceitos as noções aristotélicas de “possibilidade” e “efetividade”.
Possibilidade diz respeito aoanimus (ou à vontade);efetividade refere-se aocorpus (ou a exteriorização da transferência, à tradição).
Na aquisição das coisas móveis a publicidade - que faz as vezes do registro nas hipóteses imobiliárias - é a que decorre da tradição, da entrega, e da posse sucessiva aquela – é a visibilidade decorrente da transferência da posse.
Vale frisar que na transmissão de coisa móvel o negócio jurídico gera apenas direito pessoal, ou seja, para o alienante a obrigação de entregar a coisa, para o adquirente o direito de recebê-la. O cumprimento da obrigação se dá com a tradição que, uma vez realizada, transfere o domínio da pessoa do alienante para a do adquirente.
Há autores, como Lacerda de Almeida, que afirmam que a tradição “é o contracto do Direito das Cousas, contracto abstrato, independente da causa, e que tem por objeto a transferência do domínio ou de algum direito de fruição, de guarda ou de garantia que se exerce sobre as cousas.” (Direito das Cousas, pág. 174, de 1908). Ou seja, que a tradição é outro contrato diverso do obrigacional.
Portanto, o problema da causa (com os planos relativos ou absolutos) não justifica a questão de existir ou não a fé pública. O civilista acima mencionado afirmava que a tradição é contrato abstrato. Em outras palavras, que se afastava de seu título causal para surtir efeitos de novo contrato.
De acordo com o art. 1268 do CC atual a tradição não aliena a propriedade se feita por quem não era dono. Exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar como dono.
Nosso CC adotou a corrente do BGB – que explicitamente prestigia o princípio da abstração -, e possibilitou o não questionamento em certas circunstâncias para aquisições de coisas móveis.
No CC Alemão, se o adquirente estiver de boa-fé e a coisa for entregue pelo que se mostra proprietário, adquirirá a propriedade (932, §932 a, §933 e §934).
Ora, parece evidente, na minha modestíssima opinião, que se as coisas (tal como definidas no §90 do BGB) móveis podem gozar de presunção absoluta observados certos requisitos, vacilou o legislador em não estender maior proteção às aquisições imobiliárias onerosas e que estejam revestidas de boa-fé.
Lafayette afirma que: “a transcrição, em substância, não é senão a tradição solene do imóvel alienado” (Tomo I, pág. 148).
Nossa legislação caminhou através dos séculos para chegar no patamar de entendimento da presunção relativa do registro aquisitivo do direito real. Mas penso que devemos seguir adiante.
Sequer força constitutiva a transcrição tinha no passado. E hoje é relativa a presunção. Será que não devemos prosseguir?
Há que se fazer uma retrospectiva histórica para entender a evolução legislativa da atual presunção relativa. Isto todos aqui conhecem profundamente.
A tão aclamada lei de terras (Lei 601 de 1.850, regulada pelo Decreto nº 1.318, de 1854) não teve outro objetivo senão segregar as terras públicas e legitimar a aquisição das posses naquelas propriedades já ocupadas. Isto porque do regime das sesmarias até o advento da referida lei a ocupação do solo ocorreu sem qualquer espécie de título; ocorria mediante a simples tomada de posse.
No referido Decreto nº 1.318 de 1854 havia a obrigação legal para que todos os possuidores, qualquer que fosse o título, registrassem suas terras (art. 91), perante os Vigários das Freguesias em que localizado o imóvel (art. 97), eis o famoso registro do vigário.
A transmissão do imóvel se dava, portanto, com a simples transferência da posse; a tradição era a publicidade, pois era o que indicava externamente a troca de titularidade.
Com o passar dos anos a tradição foi desvirtuada; deixou de ser fato visível. Oconstituto possessório e asaisine, a exemplos, colaboraram com a fragilização da tradição.
A Lei Orçamentária nº 317, de 1843, regulamentada pelo Decreto nº 482, de 1846, criou a inscrição (registro) de hipotecas, em decorrência da necessidade de tornar a propriedade imóvel base para a concessão do crédito. Aqui é possível identificar a força econômica como responsável por gerar o embrionário sistema registrário.
A inscrição (registro) de hipotecas não deu os resultados esperados, especialmente porque faltavam os requisitos de especialidade e publicidade. Diante da escassa utilização resolveu-se estender também para a transmissão da propriedade. Evolução do conceito!
Surgiu, então, a Lei nº 1.237, de 24/09/1864, que reformou a legislação hipotecária e criou o registro geral (art. 7º). O §2º do art. 6º desta lei estabeleceu que os ônus reais NÃO poderiam ser opostos aos credores hipotecários se não transcritos antes da hipoteca. Eis uma outra importante evolução!
O Registro Geral compreendia: “a transcrição dos títulos de transmissão dos imóveis suscetíveis de hipoteca e a instituição de ônus reais” (art. 7º).
Vale destacar que o art. 8º desta mesma lei estabeleceu que a transmissão, onerosa ou gratuita, entre vivos, dos bens passíveis de hipoteca – que eram todos os imóveis corpóreos de acordo com o art. 2º, §§ 1º e 4º -, assim como a instituição de ônus reais, somente operariam efeitos em relação a terceiros com a transcrição no registro geral.
O § 4º do dito art. 8º da lei 1237/1864 e o art. 258 do Decreto 3453/1865 estabeleceram a idéia de que a transcrição não induzia prova de domínio, que ficava salvo de quem o fosse.
A validade da aquisição ficou subordinada aos requisitos do título – que deveria ser encadeado com os dos antecessores - e à circunstância de pertencer o imóvel ao alienante (Soriano Neto).
A Lei 1237/1864 e o Decreto 3453/1865 foram substituídos pelo Decreto nº 169-A/1890, que manteve idêntica redação dos citados dispositivos.
Sobre os efeitos da inscrição a legislação da época (Lei 1.237/1864 e o Decreto nº 169-A/1890) atribuiu força constitutiva ao título; aproximou-se, assim, do sistema francês. E, por conseqüência, afastou-se diametralmente do sistema alemão ao estabelecer, no § 4º do dito art. 8º, que “a transcrição não induz a prova do domínio que fica a salvo de quem for.”
O CC de 1916 incorporou o Registro Geral, porém com nova denominação deregistro de imóveis (arts. 856 a 862).
Os arts. 530 e 531 do CC de 1916 elencaram os tipos de títulos que deveriam ser transcritos para aquisição, constituição e transferência de direitos reais e incluiu os documentos judiciais e as transmissões causa mortis que não haviam sido previstos nas leis anteriores. Mais evolução!
O CC de 1916, no art. 859, ao contrário da orientação contida no § 4º do art. 8º da Lei 1237/1864 e no Decreto n 169-A/1890, introduziu a presunçãojuris tantum da transcrição ao estabelecer que: “Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo o nome se inscreveu, ou transcreveu.”
Eis uma outra importantíssima evolução!
Mas infelizmente parou por aí.
O mesmo entendimento da 1ª metade do Séc. XX perdura em nossos dias. É preciso avançar.
Entendo que o cadastro não deve ser a base do Registro de Imóveis, mas os direitos reais nele refletidos. Ressalvadas outras opiniões, o registro refere-se a direitos. O cadastro é incumbência de outras finalidades, ainda que multifinalitário.
O sistema alemão em que se afirma dominar a abstração (o que é absolutamente correto) depende da conjugação de certos elementos que culminam no princípio geral da publicidade material sob a forma da fé pública. Em resumo:
- estabelece o §873 do BGB a necessidade de um “acordo do titular e da outra parte” para a transmissão da propriedade ou para a sua oneração;
- as partes precisam declarar novamente o acordo exigido pelo §873, perante o “registro de imóveis”, como determina o §925 – trata-se do princípio da abstração – o acordo exigido é desconsiderado no momento do registro apenas; eventual vício contido no título causal não contaminará a inscrição;
- de acordo com o §891 a inscrição gera presunção relativa de domínio, mas no §892 há a contemplação da fé pública que garante o direito real em favor do terceiro de boa-fé que acreditou no livro de imóveis; Philipp Heck, autor alemão, afirma que “o registro não pode mentir”, (ressalvadas as contraditas eventualmente inscritas ou do conhecimento do adquirente).
Vê-se que a causa não é o fundamento da fé pública prevista no §892 do BGB. Basta lembrar do mencionado §873 do mesmo diploma. Então, este não poderia ser o óbice para se pensar na fé pública registrária em nosso ordenamento. Não são conceitos conflitantes ou excludentes.
O art. 859 do CC de 1916 é cópia do §891 do CC alemão e foi inserido em nosso ordenamento de forma isolada, sem a conjugação com os demais dispositivos que estruturam o princípio da fé pública.
Mas devemos parar por aí?
Ao contrário, previu-se no art. 860 a possibilidade de se atacar a inscrição caso não correspondesse à verdade.
A regra antes prevista no art. 859 do CC superado (Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu”) NÃO foi repetida no CC atual. Também não se criou no novo CC sistema diverso daquele que foi superado. Ao contrário, fragilizou-se ainda mais o sistema com o parágrafo único do 1.247.
Permanece a necessidade do título causal para o registro – que ainda se apresenta como modo de constituição, transferência (art. 1227) e aquisição (art. 1245) -. Mas não parece que isto afasta a possibilidade do princípio da fé pública.
Olegislador poderia ter caminhado e brindado nosso sistema com mais uma evolução!
Edmundo Gatti afirma que publicidade dos direitos reais e modo suficiente de aquisição de direitos reais são conceitos distintos, apesar de guardarem certa relação entre si. Diz que tais conceitos se afastam quando se atribui à tradição o requisito suficiente para constituição do direito real e deixa a publicidade apenas para dar notícia de tal fato a terceiros. Em contrapartida, os conceitos se vinculam quando a inscrição do ato é necessária para que produza efeitos tanto entre as partes quantoerga omnes. Novamente a causa não é obstáculo para a presunção absoluta. O reforço de confiança do sistema está no modo e não no título.
Mas a mutação jurídico-real é desdobrada em dois estágios: (i) a celebração do contrato, de um título causal e (ii) o correspondente registro.
Como o segundo se apóia no primeiro, ou seja, no título, sem que este se apresente regularmente constituído não se alcança o registro. Este, o registro, é que poderia ser mais confiável do que é hoje. O título é problema de profissionais outros.
Insisto no entendimento de Soriano Neto, com apoio em Lafayette, ao admitir que a “transcripção não é senão uma tradição solene” (pág. 221). E que “a transcripção não visou outro fim mais do que dar maior solemnidade á tradição, fazendo-a conhecida de todos quantos sejam interessados em acompanhar a circulação da riqueza immobiliaria, operada pelos actos translativos do domínio dos bens immoveis e que sobre estes buscam assentar operações de credito hypothecario.” (pág. 230).
Se hoje a tradição é contemplada com maior proteção porque não estendeu o legislador ao registro (antes transcrição) também a mesma garantia, se este difere daquela pela maior solenidade?
Resumidamente o que temos hoje é:
toda mutação jurídica-patrimonial necessita ser inscrita no Registro de Imóveis para que alcance o efeito erga omnes; (efeito com conteúdo muito esvaziado);
a inscrição depende de negócio jurídico válido e faculdade de disposição do titular do direito real;
a inscrição não purga eventuais vícios existentes no título a que lhe deu causa;
tem presunção relativa, ou seja, é destituível por prova contrária; se não houver tal prova a inscrição permanecerá como verdadeira;aqui é que se poderia pensar em maior segurança independentemente da causa; há sempre a possibilidade de se pleitear perdas e danos nas hipóteses de prejuízos.
é possível retificar ou anular a inscrição caso o teor não corresponda a verdade;
pelo sistema atual persiste, para maior segurança, a necessidade de investigar os títulos de todos os titulares precedentes pelo prazo do usucapião, bem como cada um deles por meio de certidões forenses, para avaliar eventuais defeitos existente na cadeia dominial e riscos que possam comprometer a higidez do negócio.
A somatória de tudo, para mim ao menos, resulta em insegurança jurídica.
As situações de usucapião não se equiparam à fé pública posto que decorrem do conceito de aquisição originária.
*Alexandre Laizo Clápis é registrador substituto em São Paulo, Capital, e Conselheiro do Irib.
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