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Hernando de Soto afirma, na Globo News, que a economia de mercado global não terá como avançar sem direitos de propriedade
No último dia 15 de abril, Hernando de Soto concedeu entrevista ao programa Conta Corrente Especial, transmitido pelo canal de televisão Globo News.
O economista peruano falou sobre os entraves para o crescimento dos países latino-americanos, sobre informalidade e exclusão social. E declarou que “em nossos países” ninguém vê o lado político da propriedade, ou seja, que se trata de um sistema de emancipação para gerar riqueza. No entanto, advertiu que os pobres têmproblemas compostos, por isso de nada adianta oferecer título de propriedade a quem vive em favela sem trazer essa pessoa para a legalidade.
De Soto explicou o fracasso das reformas para integrar os latino-americanos à economia de mercado em razão da falta de direitos de propriedade, o que levou a que poucos fossem os favorecidos por esses programas.
E creditou as taxas de juros elevadas como resultado da informalidade. “Se você pode usar as garantias das pessoas que pedem crédito adequadamente, há menos riscos e as taxas tendem a baixar”.
E concluiu que a economia de mercado global não terá como avançar sem direitos de propriedade e sem empresas legais.
Leia a íntegra da excelente entrevista.
Apresentador Guto Abranches – A informalidade e a burocracia são dois dos maiores entraves para o crescimento. A afirmação é do economista peruano Hernando de Soto, que falou à repórter Luciana Kraemer, em Porto Alegre, sobre o que impede o capitalismo de integrar milhões de pobres no mundo todo.
Luciana Kraemer – No seu livro, O Mistério do Capital, o senhor defende a distribuição de títulos de propriedade aos moradores de favelas e loteamentos irregulares, transformando o que o senhor chama de capital morto em registros legais. O que isso significa?
Hernando de Soto – Significa que existem títulos bons e ruins, assim como existe dinheiro bom e ruim. Se no meu país há inflação, o dinheiro é ruim, pois não serve para nada. A mesma coisa acontece com os títulos. Em Lima, no Peru, temos aproximadamente 20 títulos por residência, mas são títulos ruins, inflacionados. O problema não é conceder títulos, mas conceder títulos bons. Título bom significa um bom registro, significa um título que tenha liquidez. Se você é americano ou europeu, com seu título não tem apenas uma garantia da sua residência, mas pode ainda transformá-la numa empresa. Você pode vendê-la a um licitante melhor, pode usá-la para ficar com sua empresa, ou com sua propriedade, e, ao mesmo tempo, receber crédito. Você pode aplicá-la e gerar renda. Você pode identificar-se com muita clareza perante as autoridades, que podem fornecer-lhe eletricidade, pois sabem quem vai pagar; pode receber água limpa... Não é apenas ter títulos, é ter títulos fungíveis, com liquidez, operantes, que têm valor no mercado de capitais e de créditos.
Luciana Kraemer – O senhor acha que daria certo no Brasil, levando em conta que as favelas são mais dominadas pelas leis do tráfico do que pelas leis constitucionais?
Hernando de Soto – Algo muito importante é que se a propriedade legal não está acessível aos pobres, não haverá um vazio. Algo vai ocupar esse espaço. Isso acontece no mundo todo. O que vimos, ao combater o Sendero Luminoso no Peru, foi que parte de seu poder era fruto da distribuição de títulos de propriedade nos locais mais pobres. A única forma que encontramos para vencê-los foi distribuir títulos melhores, dizendo: “A garantia, em vez de ser do Sendero, é do Estado peruano. E isso será muito melhor”. Assim, cooptamos todos seus adeptos. O mesmo aconteceu a MaoTse-Tung, quando desceu da Manchúria até Pequim, em 1945, e venceu a guerra contra Chang Kai-Chek. Ele uniu as pessoas às suas propriedades. Ho Chi Minh fez o mesmo no Vietnã. Garanto que muitos terroristas do Oriente Médio protegem as propriedades e os ativos dos mais pobres. É a única explicação para a simpatia do povo. Assim como as empresas privadas, os terroristas e narcotraficantes têm de prestar um serviço para serem aceitos. Nem tudo é ideológico. Em nossos países, existe a sensação de que a propriedade é assunto para engenheiros, para urbanistas, é uma discussão sobre estética, higiene. Ninguém vê o lado político, ou seja, que se trata de um sistema de emancipação para gerar riqueza. Tudo isso está certo, mas o fundamental é que ao longo do tempo todos se sintam mais bem servidos pela lei que por traficantes ou pela ilegalidade. Se a maioria das pessoas, em nossos países, prefere a ilegalidade, os traficantes, os grileiros, é porque estes têm uma proposta melhor que a do governo. Não há outra explicação, exceto por uma tolice enorme.
Luciana Kraemer – Tanto a América Latina quanto a Ásia e o Leste europeu testaram seus orçamentos, abriram suas economias ao investimento estrangeiro e mesmo assim não conseguiram integrar os pobres à economia formal. Como vencer a informalidade e ampliar o crédito para essa população?
Hernando de Soto – O que acontece em muitos lugares pobres é que as taxas reais que pagam para ter crédito são muito maiores que as taxas do mercado legal. Acontece que pela água, ou pelos serviços públicos, que são informais, pagam até mais. Vemos que, em muitos casos, os pobres e excluídos pagam tantos impostos quanto os que estão no setor formal, porque nem todos os impostos incidem sobre a renda, os impostos também vêm na forma de corrupção. Logo, precisamos de uma estratégia global. Em outras palavras, a tendência sempre foi ajudar aos pobres na área da saúde, ou de urbanismo, ou num problema criminal. Os pobres têm uma série de problemas compostos. Se você oferece um título de propriedade a uma pessoa que vive numa favela, para sua casa, mas não oferece solução sobre o que fazer com sua empresa ou com as máquinas de costura que estão em sua casa, e não lhe dá a legalidade, ela não vai entender o que você está oferecendo. A pessoa tem inúmeros problemas, tem problema com a legalidade de sua casa, com impostos, com sua empresa. Ela sabe que quem dará a segurança é um traficante gentil e encantador, e não, necessariamente, a polícia. Então, para formalizar não é tão simples quanto fazer passar por vários ministérios. Há uma gama de questões a abordar. Temos que abordar o cidadão e seus problemas. Por isso, muitos programas de reforma não funcionam, porque se dirigem a um problema específico. Se você concede um título de propriedade, mas não resolve o problema de que se casar, na América Latina, pode levar 150 dias de trâmite, não adianta. A mulher não vai gostar de saber que deram um título ao marido, que está com ela ainda informalmente. É preciso resolver problemas tributários, matrimoniais, comerciais e todos os problemas que afetam o pobre, antes que ele aceite a lei. Não é uma questão de conceder títulos, mas de acabar com a informalidade em todos os planos. Não é uma questão técnica. Isso só será solucionado com envergadura política.
Luciana Kraemer – Como o senhor analisa o crescimento da Índia e da China neste início de século XXI?
Hernando de Soto – A China e a Índia terão problemas latino-americanos. Na Índia, começaram a criar estatísticas com base em nossos critérios para ver quem tem direito a ter propriedade ou empresa. Acontece que apenas 13% dos homens indianos e 10% das mulheres indianas estão inseridos no setor legal. Quase 90% estão no setor informal. Quem está no setor legal cresce muito. Você verá que essa diferença entre ricos e pobres que vemos na América Latina logo chegará à Índia, no sentido de exarcebação política. As pessoas no setor legal de economia e mercado são os cidadãos que produzem dentro da legalidade: têm direitos de propriedade e empresas legalizadas. Mas, 1 bilhão de chineses fica de fora. Ano passado, segundo o governo, eles fizeram 85 mil rebeliões. Espere um pouco e verá como se parecem conosco. A lei é bem clara. Se, no mercado, você não der os mesmos direitos a todos, é gerada uma concentração de riqueza nas mãos dos que têm pleno exercício de seus direitos. O resto será pobre. O que os economistas chamam de Índice de Gini – a distância entre os mais ricos e mais pobres –, na China, já é equivalente ao Brasil. Logo, eles terão os mesmos problemas que vocês têm e que nós temos. Nem China nem Índia serão exceções, eles vão se latino-americanizar, vão se igualar ao mundo todo.
Luciana Kraemer – Como o senhor vê o quadro político na América Latina, com a vitória de líderes populistas?
Hernando de Soto – Foram feitas muitas reformas para integrar os latino-americanos a um mercado maior, o que acabou, pela falta de direitos de propriedade, favorecendo a muito poucos. O que aconteceu foi que os partidos tradicionalmente de esquerda uniram suas reclamações em torno deles, como deve ser na democracia. Vamos ver o que farão com essa insatisfação. Os partidos de esquerda, assim como os de direita, vão ter todos os excluídos. Não há uma economia comunista na América Latina, há sim, uma economia de mercado. Não há outro modelo no mundo. Ou a América Latina se comporta como a Europa ou como os Estados Unidos, onde nomes da esquerda, como Clinton e Blair, dão um sentido social à economia de mercado e a fazem funcionar, ou a balança vai, novamente, tender para a direita. O problema básico é que a maioria não participa de uma economia de mercado e só existe um sistema no mundo. Pergunte aos chineses, indianos ou russos. É a economia de mercado. Só quem dirá que não existe é Fidel Castro, em Cuba, e a Coréia do Norte. Seja partido de esquerda ou de direita, o problema principal é a exclusão. Vamos ver quem tem as respostas mais criativas. Acho que o debate é muito frutífero.
Luciana Kraemer – O Brasil tem uma das maiores taxas de juros do mundo, o que, em certa medida, colabora com a informalidade. Como baixar os juros sem deixar de atrair investimento estrangeiro?
Hernando de Soto – Às vezes é o resultado da informalidade. Se você pode usar as garantias das pessoas que pedem crédito adequadamente, há menos riscos e as taxas tendem a baixar. Uma das razões pelas quais as taxas de juros são altas para os pobres é porque eles não oferecem nenhuma segurança. A razão pela qual são baixas, por exemplo, nos Estados Unidos, é que cada pessoa que recebe crédito está assegurada através de um sistema de leis que permite que ela se defenda. Vimos isso no caso do Egito. As taxas são muito altas, e são porque não há um sistema legal de hipotecas com o qual o pobre possa se defender. Acontece o seguinte: as pessoas pagam taxas 20 vezes maiores que as do mercado. Quando não pagam, no Egito, elas são presas. E a possibilidade de perderem suas casas é 50 vezes maior que nos Estados Unidos, porque onde não há leis que permitam ao pobre defender-se perante o rico, sendo o rico também ilegal e usurário, as taxas sobem. Ou seja, à medida que há direitos de propriedade assegurados que avalizam e responsabilizam quem pede empréstimo, há menos taxas usurárias do que na ilegalidade, justamente porque a taxa de juros mede os riscos. E o risco é muito alto entre os pobres. O risco é reduzido quando é possível identificar as pessoas e quando estão dispostas a dar garantias sobre o dinheiro que recebem com algo que lhes é valioso. Se você não tem medo de perder nada, nunca será um bom cliente do credor. Essa é uma lei inflexível da economia de mercado, no mundo todo.
Luciana Kraemer – Se o senhor tivesse que escrever um ensaio sobre os entraves do desenvolvimento econômico no Brasil, quais os principais fatores que apontaria?
Hernando de Soto – Não conheço o Brasil, logo não escreverei sobre um país que desconheço. Para fazer um ensaio, a primeira coisa que pediria seriam as estatísticas – pediria isso no Brasil ou em qualquer lugar – sobre que parte do país é governável e que esteja dentro da lei. Para pedir isso, não preciso ser especialista em Brasil. Se o seu filho está doente, o médico não precisa conhecê-lo, mas sim, conhecer a doença. E eu conheço a doença. O primeiro problema é que vocês não sabem verdadeiramente o tamanho da população sem direitos de propriedade, e que funciona na economia de mercado, sem ter uma empresa. Se for como no resto do mundo, o número excederá os 50%, será muito significativo. Depois que se determina isso, deve-se analisar os obstáculos e determinar quais são as leis e as instituições responsáveis por esses obstáculos. E, conversando com os excluídos, deve-se criar um regime legal que permita incluí-los. Por último, é preciso garantir que o problema não se limite a ser técnico. Nunca vi nenhum país do mundo que tenha mudado de um sistema de maior exclusão – seja Japão, em 1945, seja Taiwan, Coréia do Sul, ou China, com Deng Xiaoping, sem que a propriedade tenha sido um problema do Estado. Deng Xiaoping, os líderes japoneses, todos mudaram. Na Europa, depois da 2ª Guerra Mundial, foi Konrad Adenauer, foi Alcide de Gasperi... Foram os chefes de Estado que mudaram. Nos Estados Unidos, foram Jefferson e Hamilton. Se, na América Latina, o problema de propriedade dos pobres continuar sendo um problema da primeira-dama, ou um problema tecnocrático, não haverá mudanças, pois o problema está no contrato social, que é o que dá lugar a leis boas e ruins. Com toda a certeza, o direito é um dos maiores discriminadores, em nossos países, entre os ricos e os pobres, ou, mais precisamente, entre os incluídos e os excluídos. Como a indignação diante da injustiça sempre foi a grande bandeira do marxismo, o direito não recebeu muita importância. Marx não o achava importante, mas ele se enganou. O direito é muito importante. Se uma pessoa tem direitos de propriedade claros, não só tem segurança, mas a propriedade é a garantia, inclusive nos Estados Unidos, de 80% dos créditos. Sem propriedade legal, não há crédito. Para conseguir capital, a única maneira é através de ações. Assim as pessoas investem. Se você não tem ações, que são um sistema de propriedade, não vai conseguir capital. Se você não dá direito de propriedade aos pobres, não só os exclui da segurança, como também dá espaço ao traficante para fornecer garantias, ou a um político de má índole, privando os pobres de crédito e de capital. Até Marx sabia que sem isso ninguém avançaria. E acrescentamos que a empresa legal é aquela que pode cruzar fronteira, no Mercosul, em acordos de livre comércio, na Europa e no exterior. E para exportar, é preciso provar que o que exporta é seu e que a sua empresa está organizada para exportação. A maior parte dos pobres não tem isso, e isso é discriminação. Por isso, é muito importante fazer as estatísticas, que não servem apenas para saber o consumo de calorias ao dia, quem tem Aids, quantos maridos batem nas mulheres. Tudo isso é importante, mas também temos de saber quem tem, ou não, o instrumento da lei. Nesse momento, creio que conseguiremos abordar uma das causas principais da pobreza. A economia de mercado, a economia global, não terá como avançar sem direitos de propriedade e sem empresas legais. Na maioria dos países, da Rússia à Venezuela, esses direitos e essas empresas existem para os pobres.
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