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O que pode ocorrer quando não é possível provar que se tinha um imóvel?  
Hernando de Soto
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A importância de um adequado sistema de propriedade formal

Dois desastres naturais recentes nos comoveram: o pior tsunami da história, que assolou 11 países nas costas do Oceano Índico e o furacão chamado Katrina, que inundou a cidade de Nova Orleans. As imagens veiculadas de ambas as regiões foram tragicamente similares: edifícios destruídos, cadáveres flutuando, sobreviventes estupefatos e água, água por todas as partes.

No entanto, houve uma profunda diferença entre os dois. Em Nova Orleans, a primeira providência que as autoridades tomaram para garantir a paz e assegurar a reconstrução foi salvar os registros de imóveis da cidade que rapidamente puderam determinar quem era o dono do que e de onde, quem devia o que e quanto devia, quem podia ser realojado rapidamente, quem tinha direito a crédito para financiar uma reconstrução, que propriedade estava destruída, quem precisava de ajuda e como proporcionar energia e água limpa aos pobres.

No Sudeste asiático não havia registros prediais disponíveis, uma vez que a maioria das vítimas do tsunami morava e trabalhava fora da lei.

Com as águas da inundação ainda altas, Stephen Bruno, responsável pelos registros notariais de Nova Orleans, correu para o sótão do tribunal onde estavam guardados os registros de propriedade da cidade, retirou-os arrastando-se pelas águas, acomodou-os em caminhões refrigerados e transportou-os para Chicago, onde foram secados por especialistas.

Os documentos restaurados foram rapidamente devolvidos a Nova Orleans: 60 mil volumes agora estão arquivados sob guarda armada, no recente e espaçoso centro de convenções.”Abstratores”, movendo-se entre caixas até a altura da coxa, revisam meticulosamente documentos que proporcionarão as ferramentas legais para desenhar e financiar a recuperação da cidade, permitindo que banqueiros, seguradoras e corretoras de imóveis identifiquem proprietários, ativem garantias colaterais, consigam financiamento, acedam a mercados secundários, realizem acordos, fechem contratos e também tornem rentáveis as empresas de serviços para que bombeiem energia e água à vizinhança. Grande parte dos norte-americanos não tem consciência de toda a infra-estrutura legal e necessária para manter uma economia moderna em movimento.

Essa situação foi impossível quando o tsunami de dezembro de 2004 lançou, a uma grande velocidade, imensa quantidade de água e gigantescas ondas do tamanho de edifícios sobre as propriedades que davam acesso às praias da Indonésia e Tailândia até o Sri Lanka e as Maldivas, matando mais de 270 mil pessoas (168 mil só na Indonésia).

Em Bandah Aceh, na Indonésia, a água levou 200 mil casas; a maioria delas sem títulos de propriedade.

Quando foi removida toda a água de Nam Khem, na Tailândia, um magnata muito esperto apropriou-se da valiosa primeira fila de terrenos diante da praia. Os sobreviventes das 50 famílias que durante uma década haviam ocupado essa região protestaram, porém não tinham direitos de propriedade legalmente documentados que respaldassem suas reclamações.

Esse é o caso da maioria das pessoas que vivem nos países em desenvolvimento e que formam parte do mundo soviético, onde os sistemas legais são inacessíveis à maioria dos pobres. A vida no mundoextralegal está em constante risco.

Um terremoto sacudiu o Paquistão no mês passado, deixando uma estimativa de 73 mil mortos. Quando um sismo de intensidade similar sacudiu Los Angeles, em 1994, morreram 60 pessoas. Por que a diferença? Como os sismologistas gostam de dizer: "os terremotos não matam as pessoas, mas sim, as casas". Isso ocorre em razão de moradias construídas inadequadamente, fora dos padrões estipulados por lei, ignorando os códigos de construção.

Porém, qual é o proprietário pobre – para não falar do promotor, do banco, da agência de crédito ou do organismo governamental –, que tem algum incentivo para investir em moradia mais segura e em concreto reforçado, que tem a garantia de uma propriedade legal e a possibilidade de conseguir crédito?

Os governos não têm como cumprir os códigos legais quando a maioria das pessoas opera à margem deles.

Nos países em desenvolvimento, os desastres naturais deixam as cidades em ruínas bem como arrasam economias inteiras. O tsunami de 2004 liquidou 62% do PBI das Maldivas; ao passo que o custo do Katrina, segundo a Agência de Orçamento do Congresso, será entre 0,5% e 1% do PBI dos EUA.

Geralmente, os governos promovem o valor da propriedade privada para aumentar os impostos sobre ela. Na economia extralegal, as pessoas podem pagar subornos, mas ninguém paga impostos. De onde virá o dinheiro para a reconstrução?

A propriedade privada nos EUA costuma estar coberta por seguros, avaliados em US$ 30 milhões para o Katrina. No Sri Lanka, por outro lado, somente 1% das 93 mil vitimas do tsunami estavam cobertas.

No mundo em desenvolvimento, poucas pessoas têm um documento de identidade legal relacionado a um domicílio oficial, não importa o tipo de título legal de seus ativos exigidos pelas seguradoras.

Sem uma prova de identidade ou domicílio legal, a partir do qual seja possível criar uma lista de subscrição, nenhuma companhia de serviços públicos vai proporcionar eletricidade ou qualquer outro serviço.

Nem sequer os governos estão certos de quem são os que morreram, já que a maior parte das vítimas nunca teve identidade legal (registro civil).

No Peru, ainda continua o debate para saber se foram 25 mil ou 75 mil os mortos na guerra que deu início ao terrorismo do Sendero Luminoso.

As autoridades de Nova Orleans estudam a possibilidade de recorrer a leis de usufruto. Se os pobres não podem suportar os custos da reconstrução, essas leis permitem ao município reconstruir as moradias e alugá-las aos construtores, contribuindo com o necessário alojamento e poupando o escasso capital dos pobres, que eventualmente recuperam suas casas ou têm a possibilidade de vendê-las ao município a preço de mercado.

No mundo em desenvolvimento, nem o capital e nem o crédito aventuram-se onde os direitos de propriedade não estão claros.

A diferença entre um tsunami e um furacão acaba sendo muito maior do que as grandes ondas. Por isso, nos países em desenvolvimento que não contam com um adequado sistema de legislação imobiliária até a paz está em jogo, como ocorreu nos Estados Unidos antes que uma boa e acessível legislação sobre direito à propriedade convertesse os violentos invasores em nobres pioneiros.

Antes disso, os invasores tinham ameaçado queimar as propriedades do presidente George Washington se não lhes fossem entregues os títulos. Certa vez, Abraham Lincoln lembrou num discurso o fato lamentável de não ter podido ver o pôr do sol em razão da quantidade de cadáveres pendurados nas árvores, vítimas de linchamentos, em razão de crimes contra a propriedade. Assim estão hoje os países em desenvolvimento. É possível deter o derramamento de sangue.

Os meios de vida e os negócios poderiam ser regenerados no mundo em desenvolvimento, mas, antes disso, os pobres precisam ser legalmente investidos. Proporcionamos a lei, mas sem documentação legal as pessoas não existem no mercado. Se a propriedade, os negócios e as transações não forem documentados legalmente, estão destinados a serem omitidos. A sociedade não poderá funcionar como um todo.

Os furacões não podem destruir a infra-estrutura oculta do domínio da lei, que mantém a paz e investe e mantém na posse o pobre. Os títulos avalizados pela lei e os certificados de ações geram investimentos, os títulos de propriedade garantem o crédito, os documentos permitem que as pessoas se identifiquem e recebam ajuda, os estatutos de uma companhia podem reunir fundos para a reconstrução, as hipotecas reúnem dinheiro e os contratos afirmam os compromissos.

Quatro bilhões de pessoas, dos seis bilhões que há em todo o mundo, carecem da habilidade de gerar prosperidade e recuperar-se dos desastres; sua constante tragédia é viver sem o benefício de uma lei. Nenhuma ajuda internacional ou caridade pode compensar essa situação.

Somente se os pobres forem empossados legalmente, terão condições de converter o seguinte tsunami em simples tempestade.

*Hernando de Soto é autor deO mistério do capital. Por que o capitalismo triunfa no ocidente e fracassa no resto do mundo? (Publicado no jornalEl comercio, edição impressa, Política, 22/1/2006)



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