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Doação – adiantamento de legítima – cláusulas restritivas de domínio - justa causa.


Ementa: Embora a lei permita a estipulação de cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade nos contratos de doação, há necessidade de se declinar o motivo da restrição ao direito de propriedade sobre bens que constituam adiantamento de legítima

Publicamos abaixo a suscitação de dúvida lavrada pelo 13º Registrador Imobiliário Substituto de São Paulo, Dr. Alexandre Laizo Clápis acerca de tema que já mereceu detida análise do culto registrador-substituto.

Abaixo, reproduzimos a peça de sua lavra e a decisão final da magistrada Dra. Tânia Mara Ahualli, da Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo.

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo

Requerente: JO (Prenotação nº 192422)

O 13º Oficial de Registro de Imóveis desta Comarca de São Paulo, tendo prenotado em 11/10/2005, sob o nº 192422 (doc.# 1), requerimento de suscitação de dúvida datado de 04/10/2005 (doc.# 2), firmado pelo requerente – JO-, representado por sua advogada Dra. Ana Maria Ferdinando Pardini (OAB/SP 44.979), vem, respeitosamente, a esse d. Juízo, em consonância com o que dispõe o art. 198 e seguintes da Lei Federal nº 6.015/1973, prestar as informações abaixo.

Em 05/07/2005, foi prenotado sob o nº 189819, nesta Serventia Registrária, escritura pública de doação lavrada em 24/06/2005, no livro 2137, página 277, do 2º Tabelionato de Notas local (doc.# 3), em que JO e sua mulher RO doaram ao filho JCO imóvel objeto da matrícula nº 36.634, desta Serventia Predial.

Referido título foi qualificado negativamente e, em decorrência, elaborada nota devolutiva datada de 25/07/2005 (doc.# 4), que, respeitosamente, segue transcrita:

1. A doação de ascendentes para descendentes importa em adiantamento da legítima (artigo 544, do Código Civil brasileiro), portanto, deverá constar na supracitada escritura a justa causa para a imposição da cláusula de incomunicabilidade, consoante disposto no art. 1848, do Código Civil brasileiro.”

Não se conformando com a referida exigência, o requerente solicitou fosse suscitada dúvida por meio do aludido requerimento (doc.# 2).

Inicialmente, com todo acatamento, saliento que se trata de matéria polêmica e que, apesar da fundamentação legal adiante mencionada, caberá, ao menos no entender deste oficial, ao Poder Judiciário e aos doutrinadores a pacificação do melhor entendimento.

Trata-se de saber se há ou não necessidade de se exigir que o doador expresse no respectivo contrato a justa causa para clausulação da legítima. Como já referido anteriormente, na escritura pública objeto da presente dúvida foi doado imóvel pelo requerente e sua mulher – JO e RO- ao filho JCO e imposta a cláusula restritiva de incomunicabilidade.

Como se trata, com todo acatamento, de hipótese prevista no art. 544 do Código Civil, ou seja, por ser doação feita de ascendentes a descendente, a liberalidade importa adiantamento do que a estes caiba por herança. Aos descendentes pertence, de pleno direito, a metade dos bens da herança que constitui alegítima (Código Civil, art. 1.846). Portanto, apesar de ter sido alterada a redação em relação ao Código Civil de 1916 – (Art. 1.171. A doação dos pais aos filhos importa adiantamento da legítima.”), ao estabelecer o legislador do Código atual que tais doações importam adiantamento do que aos filhos couber por herança, sempre com a máxima vênia, fez referência à legítima.

Posto nestes termos, respeitosamente, resta analisar a questão da imposição da cláusula de incomunicabilidade, no presente caso, sobre bens que compõem a legítima. Vale destacar que a questão se põe presente também nas outras duas cláusulas restritivas (inalienabilidade e impenhorabilidade) em razão da origem legal ser a comum as três, o art. 1.848 do Código Civil.

Estabelece ocaput do art. 1.848 do Código Civil que:

Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.” (destaques acrescidos).

Muito se debateu na doutrina desde antes do início da vigência do Código Civil de 1916, que, por sua vez, adotou a solução legal trazida pelo Decreto nº 1.839, de 31/12/1907 [1] – também chamada de Lei Feliciano Pena -, sobre ser ou não necessário declarar as condições para imposição de cláusula restritiva.

No Código Civil de 1916 vigorou a regra do art. 1.723:

Não obstante o direito reconhecido aos descendentes e ascendentes, no art. 1.721, pode o testador determinar a conversão dos bens da legítima em outras espécies, prescrever-lhes a incomunicabilidade, confiá-los à livre administração da mulher herdeira, e estabelecer-lhes condições de inalienabilidade temporária ou vitalícia. A cláusula de inalienabilidade, entretanto, não obstará à livre disposição dos bens por testamento e, em falta deste, à sua transmissão, desembaraçados de qualquer ônus, aos herdeiros legítimos.” (grifou-se)

O termo condições rendeu embates entre os doutrinadores da época. No entanto, por um motivo ou por outro, atual Código Civil acabou com a divergência existente quanto à interpretação e alcance da expressãocondição e determinou a necessidade do autor da liberalidade (assim considerado tanto o doador quanto o testador) declinar expressamente ajusta causa para clausulação da legítima. O referido art. 1.848 do novo Código Civil determina que:

Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.” (grifou-se)

Trata-se, com a devida vênia, de uma forma de proteção dos próprios herdeiros necessários e donatários desta categoria que, no Código anterior, recebiam suas cotas partes livremente gravadas pelo testador com cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade sem que houvesse oportunidade de se conhecer as intenções e os motivos do autor da herança ou da liberalidade.

A nova regra acabou por conceder aos herdeiros reservatários o direito de conhecer as razões e os motivos que permitiram ao autor da liberalidade concluir pela necessidade de imposição das cláusulas restritivas e até mesmo, se o caso, questioná-las judicialmente. Isto parece denotar a preocupação do legislador com a integridade da legítima.

Perceptível que o legislador, quanto à legítima, restringiu a liberdade do autor da liberalidade de dispor livremente do próprio patrimônio. A regra é que aos legitimários, em razão da intangibilidade desta parte da herança, é assegurada a expectativa real relativa à metade dos bens do falecido [2] e devem receber a respectiva cota reservada de forma límpida, imediata e sem qualquer embaraço ou restrição.

A proteção da legítima é tão séria que a possibilidade dos herdeiros necessários serem afastados desta cota somente é possível se atendidas situações expressamente previstas em lei. Trata-se das hipóteses de exclusão por indignidade e da deserdação, respectivamente artigos 1814, 1815 e 1961 do Código Civil.

Além das referidas situações de indignidade e de deserdação aludidas acima como forma de afastar a legítima do seu destinatário (afasta-se, também, a disponível por conseqüência), a lei prevê a possibilidade do autor da herança tocar a parte reservada aos necessários e impor cláusulas restritivas. Poder-se-ia pensar, porém, que se trata de relativizar a intangibilidade da legítima. Com o devido respeito às opiniões diversas, ao contrário, trata-se de reforçar ainda mais a limitação do autor da liberalidade sobre tal reserva. Assim, é possível limitar o direito de propriedade dos bens que integram a cota reservada com a imposição das cláusulas restritivas, mas é indispensável atender ao requisito legal da manifestação dajusta causa.

Sobre a imprescindível necessidade de se manifestar ajusta causa para imposição das cláusulas sobre a legítima, Zeno Veloso [3] destaca que:

O estabelecimento da cláusula de inalienabilidade, quanto aos bens que integram a legítima, deve observar o que dispõe o art. 1.848. Este Código limitou bastante a aposição de cláusulas restritivas, que eram admitidas, francamente, pelo art. 1.723 do Código Civil de 1.916. Agora, nos termos do art. 1.848, salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade sobre os bens da legítima.”

E a indicação dacausa não é único requisito exigido pelo art. 1.848 para a imposição das cláusulas restritivas. Referido dispositivo legal determina que ela (causa), sejajusta, com razão suficientemente séria e legítima para que se sustente em eventual impugnação feita pelo próprio herdeiro ou por terceiros interessados (cônjuges, credores etc.). Assim, ressalvadas as opiniões contrárias, não basta declaração de que as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade são impostas para preservação ou segregação do patrimônio, pois estas são as finalidades substantiva e primária das referidas cláusulas restritivas. A motivação deverá guardar correlação com as particularidades e circunstâncias que envolvem instituidor e instituídos. Oportuna a lição de José Ulpiano [4]:

Licito, porem, não é o testador estabelecer ascircusntancias, osmotivos ou ascondições, que sua vontade ou phantasia determinar para a inalienabilidade temporaria ou vitalicia.

Não: em primeiro lugar devem serinteresses sérios, legítimos, moraes, approvaveis, racionaes, ou de natureza tal que não possam ser protegidos ou realizados senão por meio da inalienabilidade.”

Silvio Rodrigues [5] preleciona que:

Não basta que o testador aponte a causa. Ela precisa ser justa, podendo-se imaginar a pletora de questões que essa exigência vai gerar, tumultuando os processos de inventário, dado o subjetivismo da questão. Se o testador explicou que impõe a incomunicabilidade sobre a legítima do filho porque a mulher dele não é confiável, agindo como caçadora de dotes; ou se declarou que grava a legítima da filha de inalienabilidade porque esta descendente é uma gastadora compulsiva, viciada no jogo, e, provavelmente, vai dissipar os bens, será constrangedor e, não raro, impossível concluir se a causa apontada é justa ou injusta.”

Mas é preciso que os profissionais do direito, em especial os notários, alertem as partes sobre a imperiosa necessidade de se motivar a clausulação da legítima, especialmente sobre o problema de ser justa a causa para a respectiva imposição, para que não haja o risco de ser alterada a vontade do autor da liberalidade. É preciso que as partes saibam que os motivos e as causas para justificar a imposição das cláusulas restritivas devem ser sérios, ainda que de certo modo constrangedor para os envolvidos. É o instituidor quem deve avaliar se a imposição das cláusulas valerá o eventual acanhamento gerado com os instituídos. E deverá estar ciente de que o não atendimento do requisito legaljusta causa poderá acarretar alteração em sua vontade e decaimento das restrições impostas.

O termojusta causa é extremamente vago, indeterminado e impreciso. Judith Martins Costa [6] ensina:

Ocorre que os conceitos formados por termos indeterminados integram, sempre, a descrição do ‘fato’ em exame com vistas à aplicação do direito. Embora permitam, por sua vagueza semântica, abertura às mudanças de valorações (inclusive as valorações semânticas) – devendo, por isso, o aplicador do direito averiguar quais são as conotações adequadas e as concepções ética efetivamente vigentes, de modo a determiná-losin concreto de forma apta -, a verdade é que, por se integrarem na descrição do fato, a liberdade do aplicador se exaure na fixação da premissa.”

Conseqüentemente, com todo respeito, caberá ao juiz – e não ao registrador -, em cada caso, o poder-dever de preencher o conteúdo exato da questão submetida à norma, dar-lhe concreção e especificar os limites das questões essenciais. O registrador deve apenas observar que a norma seja atendida, ou melhor, que seja declinado o justo motivo sem avaliar a qualidade de tal declaração. Clausulada a legítima, em momento oportuno, o juiz deverá (i) verificar se atendido o requisito legal de justa motivação, tendo em conta tratar-se de norma de ordem pública e (ii) se manifestada a causa, avaliar quanto a justeza, seriedade, pertinência, etc., da respectiva motivação.

Sabe-se que as regras do direito das sucessões são de ordem pública. Não podem o autor da liberalidade nem os beneficiários alterar as respectivas disposições legais por convenção, por exemplo. Carlos Maximiliano [7] ensina:

Além das especificações oferecidas pelo Direito Positivo, temos as da jurisprudência. ‘Quando apesar de todo esfôrço de pesquisa e de lógica, ainda persiste razoável, séria dúvida sôbre ser uma disposição de ordem pública ou de ordem privada, opta-se pela última hipótese, porque esta é aregra, aquela, a limitadora do direito sôbre as coisas, etc., a exceção’: não há lugar para analogia, nem sequer para a exegese extensiva. Excepcionais, em mais alto grau do que nos outros ramos das ciências jurídicas, serão leis de ordem pública relativas ao Direito das Sucessões; porque ‘os preceitos que o legislador edita nesta matéria, são essencialmente supletivos da vontade dos particulares.” (destaques acrescidos).

O mesmo doutrinador em sua obraHermenêutica e Aplicação do Direito  [8]   salienta que:

Interpretação. As prescrições de ordem pública, em ordenando ou vedando, colimam um objetivo: estabelecer e salvaguardar o equilíbrio social. Por isso, tomadas em conjunto, enfeixam a íntegra das condições desse equilíbrio, o que não poderia acontecer se todos os elementos do mesmo não estivessem reunidos. Atingido aquele escopo, nada se deve aditar nem suprimir. Todo acréscimo seria inútil; toda restrição prejudicial. Logo é caso de exegeseestrita. Não há margem para interpretação extensiva, e muito menos para analogia.

Sobretudo o fundamento desse modo de proceder. Só ao legislador incumbe estabelecer as condições gerais da vida da sociedade; por esse motivo, só ele determina o que é de ordem pública, e, como tal, peremptoriamente imposto. Deve exigir o mínimo possível, mas também tudo o que seja indispensável. Presume-se que usou linguagem clara e precisa. Tudo quanto reclamou, cumpre-se; do que deixou de exigir, nada obriga ao particular: na dúvida, decide-se pela liberdade, em todas as suas acepções, isto é, pelo exercício pleno e gozo incondicional de todos os direitos individuais.

O objetivo do preceito é assegurar a ordem social. O que não seja indispensável para atingir aquele escopo constitui norma dispositiva ou supletiva, exeqüível, ou derrogável, a arbítrio do indivíduo. Só excepcionalmente se impõem coerções, dentro da órbita mínima das necessidades inelutáveis.” (destaques acrescidos).

O dispositivo legal que determina seja declarada a justa causa para imposição de cláusulas restritivas está situado no Título II, do Livro V (Do Direito das Sucessões), do Código Civil. No entanto, não são só os testadores que devem estar atentos ao requisito legal que exige a justa motivação para clausular a legítima, os doadores também devem observar tal determinação legal.

Inicialmente é preciso destacar que não há na parte que trata sobre as regras do contrato de doação (Capítulo IV, do Título VI, Livro I, da Parte Especial do Código Civil - artigos 538 a 564) dispositivo relativo à imposição de cláusulas restritivas aos bens objeto de liberalidadesinter vivos, como ocorre expressamente no direito das sucessões (artigos 1.848 e 1.911).

Mas a redação do parágrafo único do art. 1.911 do Código Civil atual ao fazer referência sobre a possibilidade de alienação de bens gravados com cláusulas restritivas, mediante autorização judicial e com a necessária sub-rogação, expressamente prevê a hipótese da doação. É o que se conclui da simples leitura do referido dispositivo em especial da seguinte parte:

...por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro...”

Com o permissivo legal para que os bens clausulados sejam alienados pelo donatário, mediante autorização judicial, o legislador expressamente admitiu a possibilidade das cláusulas restritivas serem impostas nos contratos de doação e não apenas nos testamentos.

Com a devida vênia, não parece ser procedente a afirmação de que nas doações em que são impostas cláusulas restritivas não há necessidade de ser declinada a justa causa por ser este requisito adstrito ao âmbito dos testamentos. É imprescindível, aliás, que o doador expressamente declare no instrumento causal em que há imposição de cláusulas se a respectiva liberalidade é feita da parte disponível ou legítima de seu patrimônio.

E neste sentido a doutrina brasileira há muito admite que as cláusulas restritivas sejam impostas não só nos testamentos, mas também nos contratos de doação. J.M. Carvalho Santos [9] afirma que:

A cláusula de inalienabilidade pode ser imposta não sòmente pelo testador, mas, também, pelo doador.”

Itabaiana de Oliveira [10] também considera possível clausular a legítima nos contratos de doação. Ensina o jurista que:

ADIANTAMENTO DA LEGÍTIMA - Nos adiantamentos da legítima, têm lugar as restrições permitidas no art. 1.723 do Cód. Civil, porque, sendo elas uma doação, bem pode o doador determinar o encargo que lhe aprouver, uma vez que não seja proibido por lei;...”

Da mesma forma Agostinho Alvim [11]:

A cláusula de inalienabilidade poderia figurar nas doações, ainda que a lei não o permitisse expressamente, uma vez que não é ilícita.

Mas o certo é que a lei a admite, no art. 1.676 do Código Civil, que a ela se refere como podendo constar em testamento, ou doação.”

E, para tanto, é permitido aplicar as regras do direito das sucessões aos negócios jurídicos gratuitosinter vivos. Orlando Gomes [12] sintetiza tal entendimento da seguinte forma:

A natureza contratual da doação é atualmente inquestionável. Os códigos incluem-na entre os contratos, ainda que reconheçam se deva submeter a algumas regras aplicáveis ao testamento.”

É o que ocorre com o art. 1.848. Está permitido clausular bens nos contratos de doação valendo-se os doadores, para tanto, do referido dispositivo legal que está contido nas regras do direito sucessório.

Assim, se declarado no título que o bem doado é destacado da parte disponível, desnecessário que se manifeste a justa causa exigida pelo mencionado art. 1.848,caput. No entanto, nas situações em que tais liberalidades refiram-se ao adiantamento daquilo que compõe a legítima (como no presente caso em razão ao art. 544 do Código Civil), indispensável que o doador apresente expressa motivação para a clausulação, pelos mesmos fundamentos apresentados anteriormente.

Ressalta-se, por oportuno e respeitosamente, que os adiantamentos de legítimas somente podem ser instrumentalizados por meio de contratos de doação. E se, ao adiantar a legítima, o doador impõe cláusulas restritivas, imperativo que apresente suajusta causa para atender ao requisito legal contido no aludido art. 1.848 do Código Civil e legitimar sua pretensão.

O art. 1.848 do Código Civil, que serve de supedâneo aos negócios jurídicos de doação, deve ser observado pelos doadores não só por se tratar de negócio jurídico que retrata liberalidades, como ocorre nos testamentos, mas por não haver nas regras relativas ao contrato de doação (Código Civil, artigos 538 e seguintes) previsão legal que autorize as cláusulas restritivas nesta espécie de contrato. Se declarado expressamente que é da disponível, desnecessário constar a justa causa.

Desta forma, ressalvado superior entendimento de V. Exa., há que se observar, no presente caso, a obrigatoriedade de ser declinada expressamente nos contratos de doação, tanto quanto nos testamentos, ajusta causa para clausulação da legítima. Especialmente nos negócios jurídicos de doação, não se pode pretender aplicar as disposições contidas no art. 1.848 de forma parcial, ou seja, valer-se o doador apenas das cláusulas restritivas e ignorar a necessária motivação. Se pretender clausular a legítima deverá atender a todos os requisitos contidos no dito art. 1.848, em especial ajusta causa.

Não é demasiado lembrar que na vigência do Código Civil revogado (1916), também o fideicomisso era admitido nas doações, mas sua tipificação – como ocorre com as cláusulas restritivas – estava inserida no direito das sucessões; a doutrina e a jurisprudência acabaram por assim entender, embora não houvesse previsão no direito dos contratos, como também, presentemente, não há nos dispositivos que regulam as doações, como já referido anteriormente. Isso demonstra que o direito é dinâmico e não estanque, como entendem alguns, no sentido de que a imposição só pode ser exigida nos testamentos. Então onde buscar embasamento para clausulação nas doações? Se assim não fosse, poder-se-ia admitir que o legislador teve a intenção de codificar normas que se excluem? Como não admitir, por exemplo, que o direito de família não se harmoniza com os demais livros do Código? A condição de herdeiro do cônjuge busca regras no direito de família, além de outros tantos exemplos. A parte geral aplica-se a toda parte especial, etc.

Vale destacar o pensamento de Karl Larenz sobre a interconexão interpretativa de um sistema. Permita-me transcrever trecho que retrata este entendimento:

Assim, como disse Betti, se manifesta a relação recíproca que existe entre cada uma das partes componentes do discurso – como de qualquer notificação do pensamento -, bem como a sua comum relação com o todo que formam as partes: uma relação ente si e com o todo que torna possível a clarificação mútua do significado duma forma portadora de sentido na relação entre o todo e os seus elementos constitutivos e inversamente. Trata-se aqui da forma mais simples daquilo a que é habito chamar o círculo hermenêutico. Acresce que precisamente quanto à interpretação é válido afirmar que a ordem jurídica como complexo de normas não é por seu turno apenas uma soma de proposições jurídicas, mas uma ordenação unitária. As proposições jurídicas, como vimos, engrenam umas nas outras, limitando-se, complementando-se ou reforçando-se, e só da reunião delas resulta uma autêntica regulamentação. Isto também sempre foi reconhecido na teoria da interpretação. Não há uma individual norma jurídica por si só, diz acertadamente Felix Somló, mas apenas normas jurídicas que vigoram em conexão umas com as outras. Daí deriva, ainda, para a interpretação, a exigência de compatibilidade lógica de todos os seus resultados.” [13]

Há, ainda, os que argumentam que a aceitação do donatário, maior e capaz, na própria escritura de doação representa conformação com as restrições estabelecidas. Este pensamento seria válido se a norma versasse sobre direito disponível. No entanto, sempre ressalvado o superior entendimento, a qualidade das normas do direito das sucessões (cogentes) não permite que os interessados transacionem em atenção de seus próprios interesses. Se assim fosse, respeitosamente, poder-se-ia, em razão da capacidade civil, por exemplo, afastar a ordem da vocação hereditária (Código Civil, art. 1829) ou dispor contratualmente sobre herança de pessoa viva (Código Civil, art. 426). A liberdade de contratar sofre nos tempos atuais, especialmente após a vigência do Código Civil de 2002, limitações conferidas pelas normas de ordem pública. A vontade tem novos contornos que seus emitentes devem respeitar.

E se considerarmos, respeitosamente, que um aspecto da função social do contrato é garantir a ordem social, haveria afronta, também, ao parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil. Ressalta-se, também, com todo acatamento, ao preceito contido no art. 2.042 do mesmo diploma legal, que denota a grande importância do assunto:

Aplica-se o disposto nocaput do art. 1.848 quando aberta a sucessão no prazo de 1 (um) ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição.”

Por fim, necessário aludir às limitações do registrador na interpretação das leis.

Não se nega o conteúdo administrativo que tem os atos praticados pelo Registrador Imobiliário no exercício de suas atribuições legais. Afinal, trata-se de serviço público delegado pelo Estado a particular que é exercido em caráter privado (Constituição Federal, art. 236). A gênese do poder delegado para execução particular torna a atividade adstrita aos preceitos gerais da administração pública.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro [14] define ato administrativo como “a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário.”.

Como tal, os atos praticados pelo Oficial Registrador no exercício de suas funções, inclusive a qualificação registrária dos títulos causais, estão adstritos às regras do ordenamento jurídico. Significa dizer que deve sempre ser pautado, dentre outros, pelo princípio da legalidade. Aliás, princípio este a que está constitucionalmente (art. 37) submetida toda a Administração Pública, direta ou indireta, o que inclui os Notários e Registradores, os quais, além do citado preceito Constitucional, ainda contam com a determinação dos artigos 1º e 41 da Lei Federal nº 8.935/1994.

Devido ao conteúdo administrativo que possui, pautado sempre pelo princípio da legalidade, os atos registrários, como regra, não possuem caráter discricionário. Se não houver permissivo legal que autorize a prática do correspondente ato ou, ainda, se o negócio jurídico consubstanciado em título causal afrontar regras impostas pelo Ordenamento o registrador deve impedir o acesso sob pena de ilegalidade. Sem dizer que a inobservância das prescrições legais ou normativas constituem infração disciplinar, consoante disposto no inciso I do art. 31 da Lei Federal nº 8.935/1994.

Neste sentido, na maioria das vezes a qualificação registrária e a prática de posterior ato registrário é regida por vinculação ao que expressamente determina ou prevê a lei.

Aliás, V. Exa. decidiu no processo nº 000.03.152901-1 que:

... os Registros Imobiliários, em atenção ao princípio da legalidade, que informa toda ordem registral, devem se ater ao respeito restrito à LEI, aplicando objetivamente os comandos normativos, sem qualquer valoração ou análise subjetiva. O registrador não julga, apenas realiza um ATO de consistência ADMINISTRATIVO, despido de discricionariedade, vinculado incondicionalmente ao comando normativo.” (destacou-se)

No presente caso, entende este Oficial, sempre respeitosamente, que não se pode admitir o ingresso da escritura pública de doação sem que haja indicação dajusta causa para imposição de cláusula restritiva, consoante disposto no art. 1848, do Código Civil, pois a liberalidade enquadra-se na hipótese do art. 544 do Código Civil, caracterizando antecipação de legítima.

Estas, em síntese, as razões que me permito submeter à superior apreciação de Vossa Excelência, servindo-me do ensejo para renovar os protestos de elevada estima e consideração, bem como para colocar-me à disposição para informações e esclarecimentos adicionais eventualmente necessários ou convenientes.

São Paulo, 1º/11/2005

Alexandre Laizo Clápis, Substituto

Doação – adiantamento de legítima – cláusulas restritivas de domínio - justa causa.

Ementa não-oficial. Embora a lei permita a estipulação de cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade nos contratos de doação, há necessidade de se declinar o motivo da restrição ao direito de propriedade sobre bens que constituam adiantamento de legítima

Processo nº: 583.00.2005.209086-6.

Vistos.

Cuida-se de procedimento administrativo de dúvida registral, suscitada nos termos do art. 198 da Lei de Registros Públicos, pelo Oficial do 13ºRegistro de Imóveis da Capital.

Destacou que o suscitado, JO, apresentou para registro escritura de doação do imóvel matriculado sob o n° 36.634 de sua Serventia Predial, sendo que referido título foi qualificado negativamente, por não constar de seu teor a causa da imposição de cláusula de incomunicabilidade.

Juntou documentos.

Regularmente intimado (fls. 15), o suscitado deixou de apresentar impugnação em juízo (fls. 31).

O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida (fls. 33/35).

É o relatório.

DECIDO

A dúvida é procedente. Como brilhantemente sustentado pelo Sr. Oficial Substituto Alexandre Laizo Clápis, em seu arrazoado inicial, a lei permite a estipulação de cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade nos contratos de doação remetendo as partes às normas contidas no direito sucessório, atendendo ao contido no artigo 1.848 do Código Civil. Não há dúvida da necessidade de se declinar o motivo da restrição ao direito de propriedade sobre bens que constituam adiantamento de legítima, como o caso em exame. Insuperável, portanto, a exigência formulada.

Neste sentido é o recente acórdão do Egrégio Conselho Superior da Magistratura (Apelação Cível 440-6/0), de 06 de dezembro de 2005, que dispõe: “Há, contudo, um único vício no instrumento de compra e venda do imóvel adquirido pela apelante (fls.9/10), que impede o seu ingresso no registro, na forma como elaborado. Diz respeito à cláusula de incomunicabilidade inserida na escritura. Com efeito, quando a interveniente Maria Helena doou a importância de R$ 120.000,00, representada pelo apartamento do edifício Príncipe de Liverpool, n.63, transmitindo-o a seguir aos vendedores Edmundo Antonio e sua mulher, fez constar que a doação se fazia com exclusividade, em caráter incomunicável, como adiantamento de sua legítima (fls.10). A disposição constante do título é nula, porque afronta o disposto no artigo 1.848 do Código Civil, já que efetivada sob a égide do novo estatuto civil. É que pela regra contida no artigo referido o testador só pode estabelecer cláusula de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima, quando houver justa causa, declarada no testamento. Assim, como não houve no instrumento a expressa menção à exigência formulada pela lei, forçoso é reconhecer a invalidade da restrição.”

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida.

Cumpra-se o disposto no art. 203 da Lei de Registros Públicos.

P.R.I.C.

São Paulo, 30 de março de 2006.

Tânia Mara Ahualli Juíza de Direito.

Notas

[1] A redação do Decreto nº 1839/1907 era a seguinte: “Art. 1º Na falta de descendentes e ascendentes, defere-se a successão ab intestato ao conjugue sobrevivo, si ao tempo da morte do outro não estavam desquitados; na falta deste, aos collateraes até ao sexto gráo por direito civil; na falta destes, aos Estados, ao Districto Federal, si o de cujus for domiciliado nas respectivas circumscripções, ou á União, si tiver o domicilio em territorio não incorporado a qualquer dellas.

Art. 2º O testador que tiver descendente ou ascendente succesivel só poderá dispor de metade do seus bens, constituindo a outra metade a legitima daquelles, observada a ordem legal.

Art. 3º O direito dos herdeiros, mencionados no artigo precedente, não impede que o testador determine que sejam convertidos em outras especies os bens que constituirem a legitima, prescreva-lhes a incommunicabilidade, attribua á mulher herdeira a livre administração,estabeleça as condições de inalienabilidade temporaria ou vitalicia, a qual não prejudicará a livre disposição testamentaria e, na falta desta, a transferencia dos bens aos herdeiros legitimos, desembaraçados de qualquer onus.

Art. 4º Esta lei obrigará desde sua data.

Art. 5º Ficam revogadas as disposições em contrario.” (destaques acrescidos)”.

[2] Caio Mário da Silva Pereira,Instituições de Direito Civil, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VI, pág. 26.

[3]  Comentários ao Código Civil, Saraiva, São Paulo, 2003, vol. 21, pág. 234.

[4]  Das Cláusulas Restrictivas da Propriedade: Inalienabilidade, Impenhorabilidade, Incomunicabilidade, Conversão e Administração, Escolas Prof. Salesianas, São Paulo, 1910, pág. 98.

[5]  Direito Civil, Saraiva, São Paulo, 26ª edição, 2003, pág. 127.

[6]  A Boa-Fé no Direito Privado, RT, 1ª edição, 2ª tiragem, 2000, pág. 326.

[7] Direito das Sucessões, Freitas Bastos, São Paulo, 4ª edição, 1958, vol. I, pág. 45.

[8] Forense, Rio de Janeiro, 9ª edição, 1979, pág. 223.

[9] J.M. Carvalho Santos,Código Civil Brasileiro Interpretado, Freitas Bastos, 11ª edição, vol. XXIII, pág. 320.

[10]  Tratado de Direito das Sucessões, Max Limonad, São Paulo, 4ª edição, 1952, vol. 2, pág. 654.

[11]  Da Doação, Saraiva, São Paulo, 2ª edição, 1972, pág. 250.

[12]  Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 24ª edição, 2001, pág. 212.

[13]  Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, 2ª edição, 1969, pág. 371 (versão portuguesa da obra de Karl Larenz intituladoMethodenlehre Der Rechtswissenschaft).

[14]  Direito Administrativo, Atlas, São Paulo, 13ª edição, 2001, pág. 181.



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