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O exemplo que não vem de cima


Para construir uma casa, o cidadão comum tem que cumprir uma série de exigências da prefeitura, como apresentar e aprovar plantas arquitetônicas e cumprir o projeto à risca sob pena de não conseguir o habite-se. As regras, porém, parecem não valer quando quem constrói é a própria prefeitura. Uma auditoria do Tribunal de Contas do Município (TCM) no programa Morar Sem Risco, da Secretaria municipal de Habitação, descobriu que a prefeitura investiu mais de R$ 12 milhões desde 1998 na construção de seis conjuntos habitacionais em terrenos em situação irregular. Nesses locais foram reassentadas cerca de duas mil famílias que moravam em áreas de risco em favelas. Mas os moradores continuaram a viver na informalidade, sem títulos que comprovem ter direitos sobre os lotes e as benfeitorias. Assim como nas favelas, a situação fundiária indefinida impede o cadastro das propriedades no Registro Geral de Imóveis (RGQ).

A ausência de regularização fundiária é apontada por especialistas como uma das causas do crescimento desordenado das favelas. No caso dos conjuntos habitacionais, construídos em áreas em que a prefeitura não concluiu o processo desapropriação ou há dúvidas sobre quem seriam os proprietários, o problema já se repete. Em visita ao Conjunto Bandeirantes 2, em Vargem Grande, popularmente conhecido como Conjunto César Maia, o maior deles, com 1.115 famílias reassentadas, repórteres do GLOBO constataram que muitos moradores construíram até três casas a mais num único lote, para abrigar parentes e inquilinos. Como em favelas, poucos pagam IPTU e prospera um mercado imobiliário informal, sendo possível comprar casas e quitinetes por preços entre R$ 20 mil e R$ 30 mil.

José Sabino do Nascimento, de 39 anos, removido de uma área de risco da Favela Rio das Pedras, em Jacarepaguá, para o conjunto em 2000, enumera os "puxadinhos" que duplicaram a área construída no lote dado pela prefeitura:

- Quando cheguei, minha casa só tinha paredes nuas e o chão era em terra batida. Coloquei piso, construí um terraço e uma lavanderia. Em dois meses, acabo o apartamento da minha sobrinha - diz.

Situação impede crédito da Caixa  

O presidente da Associação de Moradores e Amigos do Conjunto Bandeirantes, Renato da Silva Almeida, diz que as transações são registradas em cartório como documentos que apenas atestam a transferência dos direitos sobre lotes.

- Várias pessoas chegam aqui interessadas em morar. Trazem cartas de crédito da Caixa, mas não podem fazer negócio, pois o banco não financia imóveis em situação irregular. É uma situação incômoda porque todos querem ter direitos reais sobre as casas - afirma Renato.

A vendedora Antonia Clédia Lopes, que vive no local com o filho de 5 anos desde que foram removidos da Favela Rio das Pedras, diz que a situação a aflige:

- A casa é a única coisa que eu tenho. Só recebi um termo de posse do município, que me proíbe de vender ou ampliar o imóvel. Se um dia a prefeitura me tirar daqui, perco tudo. Não tenho para onde ir.

Na Quinta do Caju, primeira favela do Brasil em que foram entregues títulos de propriedade, num programa conjunto entre o Ministério das Cidades e a prefeitura, 70% dos moradores ainda não receberam as escrituras dos lotes. Uma das dificuldades enfrentadas para o registro ser regularizado é justamente o fato de os lotes terem sido subdivididos irregularmente. Apesar dos problemas, em entrevista por e-mail, o prefeito César Maia disse não haver previsão de quando a regularização será feita. O prefeito afirmou ainda que, mesmo vivendo na informalidade, os moradores hoje se encontram em melhor situação porque não estão mais em áreas de risco.

O relatório do TCM ressalta que a Lei municipal 2.262/1994 determina que a prefeitura é responsável por promover a urbanização e a regularização fundiária de assentamentos populares, favelas e loteamentos. E acrescenta que o artigo 30, inciso VIII, da Constituição estabelece que o ordenamento territorial é competência municipal. "Desta forma, a ausência de ações para a regularização de áreas onde a prefeitura consumiu recursos para construção de moradias e assentamento de famílias aparenta divergência em relação à legislação", diz um trecho do relatório. Em nota oficial, a Secretaria municipal de Habitação considerou que o TCM fez uma inspeção de rotina. E que as constatações do tribunal vão colaborar para aperfeiçoar o projeto. Por sua vez, o presidente da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara, vereador Luiz Guaraná (PSDB), diz que vai convidar o secretário de Habitação, Luiz Humberto, para prestar esclarecimentos numa audiência pública. Segundo Guaraná, a política da prefeitura é um mau exemplo para uma instituição que tem o controle urbano entre suas principais atribuições:

- As favelas crescem pela inoperância do poder público. É inaceitável que a prefeitura encontre uma solução fora da legalidade para áreas de risco. É preciso trazer essas comunidades para a formalidade.

Já o vice-presidente da Federação de Favelas (Faferj), José Nerson de Oliveira, diz que reassentar famílias em locais sem infra-estrutura é estimular a favelização das áreas:

- Resolver a questão fundiária da população de baixa renda é implantar infra-estrutura de água, esgoto, entregar títulos e cobrar IPTU. Do jeito que está sendo feito, o morador não tem garantia alguma de que não passa de um engodo político - diz José Nerson.

O presidente do Sindicato da Construção Civil (Sinduscon), Roberto Kauffmann, observa que existem condições fundamentais para uma titulação eficiente, seja de terrenos públicos ou particulares:

- As casas devem ser erguidas em áreas com situação jurídica definida, sem dúvidas sobre quem seriam os proprietários. Os imóveis devem estar em áreas urbanizadas e ao morador devem ser garantidas condições mínimas de conforto e segurança.

Ao todo, nove conjuntos habitacionais foram visitados. Apenas três estavam em situação regular: Loteamento Tavares Bastos (Catete), Conjunto Andrômeda (Jacarepaguá) e Maragogi (Penha). Estavam em situação fundiária irregular: Bandeirantes l e 2 (Vargem Grande), Moisés Santana (Madureira), Jardim Maravilha (Guaratiba) e Parque da Boa Esperança l e 2 (Caju).

Auditorias apontam falhas em projetos  

Uma série de auditorias do Tribunal de Constas do Município (TCM), iniciadas em 2005, vem indicando falhas nos projetos da Secretaria municipal de Habitação para urbanizar e conter as favelas da cidade. Um dos documentos pôs em xeque o principal desses programas. Os auditores concluíram que os US$ 600 milhões que estão sendo investidos pela prefeitura e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no Favela-Bairro foram ineficazes para conter as favelas. O problema ocorre porque, por falta de fiscalização, as favelas continuaram a se expandir, anulando os benefícios alcançados pelo projeto. Já os programas Bairrinho, de urbanização de comunidades com até 500 domicílios, e Mutirão (que usa mão-de-obra das próprias comunidades), por falta de verbas são concluídos sem a solução de todos os problemas, como a implantação de saneamento básico e a remoção de barracos das áreas de risco. Os auditores do TCM descobriram, por exemplo, que na comunidade Unidos de Santa Teresa (Rio Comprido) uma creche comunitária foi construída na linha de fogo entre traficantes rivais. E em Vila Canoas (São Conrado), onde foi gasto um total de R$ 1,2 milhão no projeto Bairrinho, a obra foi declarada terminada, embora não tivessem sido demolidas várias casas construídas sobre o leito de um rio.

Trafico agrava problema  

Outra conclusão do TCM é que conjuntos construídos pela prefeitura em áreas sob a influencia do trafico enfrentam agora um processo de favelização. Isso porque técnicos não tem segurança para fiscalizar as obras ilegais. Segundo o relatório, o problema atinge os loteamentos no Caju, onde algumas casas construídas pela prefeitura foram invadidas, e os conjuntos Vila Pinheiro I e II, na Maré. Sobre esses dois últimos, os auditores escreveram no relatório: "Ambos os loteamentos são atingidos pelo acréscimo irregular de construções e acréscimo desproporcional da população, descaracterizando o empreendimento e dando origem a um processo de favelização".

De acordo com o TCM, por falta de um trabalho integrado entre líderes comunitários e a Secretaria municipal de Habitação, houve, por exemplo, novas ocupações nas margens dos rios Faria-Timbó (Bonsucesso) e Anil (Bacia de Jacarepaguá), cujas comunidades já haviam sido reassentadas.

Outro problema identificado na auditoria é o fato de a prefeitura investir pouco na construção de assentamentos e muito mais em obras de urbanização de favelas. Segundo os técnicos do TCM, outra falha está no auxílio-aluguel (R$ 200 por mês), pago por um período longo a famílias removidas de área de risco, que poderia estar sendo investido na construção de novos assentamentos. Durante os trabalhos, a auditoria descobriu casos de chefes de família que recebem o benefício há pelo menos quatro anos. (O Globo, Luiz Ernesto Magalhães, 08/Abr).



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