BE2378

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Sociedade estrangeira no Brasil
Aplicação subsidiária das S/A
Nelson Lopes de Oliveira Ferreira Jr.*


A diferença entre a sociedade sediada no exterior que participa diretamente da economia e a que dela participa indiretamente – necessidade da nomeação de um representante para a sociedade estrangeira no Brasil com poderes para resolver quaisquer questões, inclusive para receber citação judicial – aplicação subsidiária da lei das S/A às sociedades limitadas

As leis brasileiras, tanto o Código Civil (art. 1.138 [1]) quanto a Lei das Sociedades Anônimas (art. 119 [2]), impõem à sociedade estrangeira, aqui instalada, o dever de nomear um representante com plenos poderes para resolver os negócios societários, inclusive demandar e ser demandado. Os dispositivos legais postos entre parênteses são de ordem pública, destinados à proteção dos cidadãos brasileiros que entram em relações jurídicas com as pessoas sediadas no exterior [3] .

Ao mencionarmos os dois dispositivos, temos que, de passagem, distinguir as sociedades estrangeiras que aqui se instalam por si mesmas ou por filiais, sucursais ou agências e aquelas que ingressam no mercado brasileiro como sócias ou acionistas de empresas nacionais. As primeiras dependem de autorização para funcionamento no território nacional, as últimas não. Quando da tramitação do projeto da vigente Lei Societária 6.404/76, comenta Modesto Carvalhosa [4] , o Deputado Erasmo Martins Pedro propôs que o fossem considerados ineficazes, por fraude ao preceito que exige autorização para funcionamento, os atos de uma sociedade estrangeira, de aquisição do controle (quotas ou ações) ou de fundação de sociedade comercial nacional com a mesma finalidade social. Tal proposta visava a evitar a possibilidade dodoing business indireto. Assim se manifestou, segundo Modesto Carvalhosa, o proponente sobre a disposição:É a consagração do funcionamento por intermédio de outrem, o doing business indireto, através de um ato, que se diria isolado, mas integra uma operação total, a do exercício permanente de uma atividade extraterritorial pela sociedade comercial estrangeira, controladora de outra, nacional. Constitui passe típico de sociedade multi ou transnacional, e que se verifica, habilmente, na compra ou na fundação de sociedade nacional com a mesma finalidade de estrangeira, com o mesmo objetivo social”.

Anota o sítio eletrônico do Escritório de Advocacia Muzzi que a participação no quadro societário de sociedade nacional “tem sido a forma mais usual de presença de empresas estrangeiras no Brasil, uma vez que não necessitará do cumprimento das formalidades legais mencionadas”. Para esse Escritório, a sociedade estrangeira também poderá ser quotista nas chamadas sociedades limitadas, visto que a impropriedade da redação do artigo 1134 do NCC, apesar de restritiva, pode ser interpretada como inconstitucional diante da Emenda Constitucional nº 6. A única exigência genérica que se faz ao investidor estrangeiro é o atendimento ao disposto no artigo 119 da Lei n. 6404/76 (Lei das S.A.), que se refere à necessidade de se nomear um procurador, com domicílio no Brasil, para receber citações em seu nome. A regra geral é, pois, que não-residentes, aí incluídas as sociedades estrangeiras, podem ser sócios, acionistas ou, ainda, quotistas de sociedade nacional.

Deflui-se dessa pequena digressão sobre a diferença entre a sociedade sediada no exterior que participa diretamente da economia e a que dela participa indiretamente, interagindo no país por meio de sua participação no capital de sociedade nacional, que o artigo 1.138 do Código Civil não se aplica a esta segunda espécie. Porém, diante da ausência de previsão, no capítulo das sociedades limitadas, do modo como se deve dar a representação de sócia pessoa jurídica estrangeira, diante, outrossim, de igual ausência no conjunto de normas que regem a sociedade simples, torna-se aplicável, supletivamente, o disposto no artigo 119 da Lei do Anonimato, e, portanto, obrigatória a previsão, na procuração outorgada por sociedade estrangeira, que o procurador tenha poderes para receber citação.

A aplicação das regras da sociedade anônima para suprir as lacunas e omissões das normas reguladoras da sociedade limitada, quando tais lacunas e omissões não se resolverem pelas disposições regentes da sociedade simples, é totalmente aceitável. Nessa aspecto, oportuna, uma vez mais, é a lição de Modesto Carvalhosa, nos seus Comentários ao Código Civil (ob. cit., p. 44), a saber:pode ocorrer de a limitada ter um modelo com estrutura mais próxima à da anônima, adotando, por exemplo, a divisão de seu capital em quotas preferenciais e ordinárias e a criação de um Conselho de Administração, e, ao mesmo tempo, deixar de optar expressamente no contrato social pela adoção das regras da sociedade anônima como supletiva. Nesse caso, ter-se-ia, pela letra do art. 1.053, de recorrer às disposições da sociedade simples, que nada diz sobre as matérias especificamente mencionadas. Parece-nos claro, nesses casos, que ao intérprete caberá o recurso à Lei de Sociedades Anônimas. E essa aplicação da Lei do Anonimato dar-se-á ou pelo reconhecimento de que a verdadeira intenção das partes (art. 112 do Código Civil de 2002) era optar pela regência supletiva das sociedades anônimas, formatando sua sociedade com características de uma sociedade de capitais, ou por analogia (art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil), diante da lei supletiva.

Para defender criteriosa interpretação, com a licença da expressão de Eduardo de Carvalho, citado por Cunha Peixoto (ob. cit., nota 3, p. 250) nada mais seria necessário do que aventar a hipótese do chamamento a juízo, por ato ou operação praticados no Brasil, de uma sociedade anônima estrangeira, aqui instalada, mas que, sem o dispositivo em exame, não possuísse representante com poderes expressos para receber citação inicial. Esta teria que ser feita por carta rogatória remetida pelo Juízo brasileiro ao Ministério da Justiça, que por sua vez a teria que encaminhar ao Ministério das Relações Exteriores, o qual, por fim, remetida ao país da sede da sociedade citanda, por intermédio do departamento diplomático ou consular do Brasil, lá existente. Somente após esses percalços, lograria o requerente, autor da ação, que fosse providenciada a citação do representante legal da companhia demandada – tendo-se em vista, ainda, as possíveis exigências da lei nacional daquela.

Poder-se-ia argumentar, para o efeito de avigorar o raciocínio ou a conclusão de que a legislação brasileira não veda a exclusão expressa, em instrumentos de mandato outorgados por sócios estrangeiros aos seus representantes no país, dos poderes para receber citação, que, nos termos do art. 119, parágrafo único, da Lei 6.404/76, o exercício no Brasil de qualquer dos direitos de acionistas, confere ao representante legal que age no exercício de tais direitos, por presunção, qualidade para receber citação judicial. Assim, por essa presunção, a sociedade estrangeira sócia de uma sociedade nacional jamais estaria desfalcada de uma pessoa para receber citação.

A presunção é excepcional e aplica-se à hipótese de a sociedade operar sem representante legal regularmente instituído, imputando-se àqueles que firmam os documentos em nome da sociedade a condição de verdadeiros representantes legais ou mandatários (mandato não escrito). Mas uma vez que a sociedade estrangeira eleja um representante – o que éab initio obrigatório –, haverá, naturalmente, de fazê-lo de acordo com as exigências da Instrução Normativa 76/98 do DNRC, mais precisamente do artigo 2º deste Diploma [5]

Uma leitura restritiva da parte final do caput do artigo 119 da Lei das Sociedades Anônimas, que é repetida também na parte final da IN 76/98, leva a supor que as citações que o mandatário constituído tem poderes para receber somente são aquelas que dizem respeito às ações de natureza societária, ou seja, aquelas que regem o respectivo tipo societário, e não às que se referem às ações tributárias e outras que atingem a sociedade por ter esta violado disposição de lei. Não é, entretanto, a leitura correta. A sociedade adquire direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes especiais, ou não os havendo, por intermédio de qualquer administrador que aja ostensivamente. Todos os diplomas legais que regem os vários tipos societários existentes contêm dispositivos que se referem à violação da lei ou do estatuto ou que apregoam a necessidade de os administradores e as sociedades satisfazerem as exigências do bem comum e da função social da empresa, etc. Por conseguinte, não teria sentido nenhum que as citações se limitassem, exclusivamente, às ações originárias de atos e fatos societários.

Não é por outra ordem de motivos que o Código Tributário Nacional prevê a responsabilidade pessoal dos mandatários, prepostos e empregados, dos diretores, gerentes e representantes de pessoas jurídicas de direito privado pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes e infração à lei, contrato social ou estatuto, (art. 135, II e III, do CTN).

Em conclusão de tudo quanto foi considerado temos que a interpretação do artigo 1.134 do Código Civil mais consentânea com o sistema é a que admite a possibilidade de uma sociedade estrangeira ser sócia de uma sociedade limitada e não somente acionista de uma sociedade anônima brasileira, como indica a redação do dispositivo, e que para estas duas hipóteses de participação indireta na economia local não há necessidade de autorização do Ministério da Indústria e Comércio, que, aliás, sequer emite autorizações para tal espécie de ingresso de sociedade estrangeira no quadro societário ou acionário de sociedade empresária nacional. As únicas exigências iniciais que vêm sendo feitas para as sociedades estrangeiras que querem tomar parte do capital social de sociedade brasileira são: (a) nomeação de um representante no Brasil com poderes para tratar dos assuntos societários e para agir ativa e passivamente em nome da sociedade e receber citações; (b) obter o prévio cadastramento no CNPJ.

Notas

*Nelson Lopes de Oliveira Ferreira Jr. é Procurador do Estado em exercício na Procuradoria da Jucesp

[1] Determina o art. 1.138, do Código Civil:Art. 1.138 - A sociedade estrangeira autorizada a funcionar é obrigada a ter, permanentemente, representante no Brasil, com poderes para resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade.Parágrafo único - O representante somente pode agir perante terceiros depois de arquivado e averbado o instrumento de sua nomeação.”

[2] Lei 6.404/76 -Art. 119 – O acionista residente ou domiciliado no exterior deverá manter, no País, representante com poderes para receber citação em ações contra ele, propostas com fundamento nos preceitos desta lei.Parágrafo único – O exercício, no Brasil, de qualquer dos direitos de acionista, confere ao mandatário ou representante legal qualidade para receber citação”.

[3] RT 208/350, referida por Cunha Peixoto, Sociedade por Ações, 1972, vol. 2, p. 251.

[4] Comentários ao Código Civil, tomo 13, Saraiva, 2003, p. 589.

[5] Art. 2º - A pessoa física, brasileira ou estrangeira, residente e domiciliada no exterior e a pessoa jurídica com sede no exterior, que participe de sociedade mercantil ou de cooperativa, deverão arquivar na Junta Comercial procuração específica, outorgada ao seu representante no Brasil, com poderes para receber citação judicial em ações contra ela propostas, fundamentadas na legislação que rege o respectivo tipo societário”.



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