BE2338
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PL 3057 em discussão
Registro de parcelamento do solo urbano
Exigência de certidões e o princípio da presunção de inocência
Julia Azevedo Moretti*
Na atual redação da lei 6.766/79, dentre os documentos exigidos para o registro do parcelamento constam certidões negativas de ações penais: uma específica em relação aos crimes contra o patrimônio e administração pública (art. 18, III, c) e outra geral dos últimos 10 anos (art. 18, IV, d).
A existência de ações penais referentes a crime contra o patrimônio e contra a administração pública impede o registro. Para as demais ações penais, o proprietário deverá comprovar que as mesmas não podem causar prejuízo aos adquirentes dos lotes e o registro depende do crivo do Oficial do Registro de Imóveis que julgará a comprovação apresentada (art. 18, §2º, Lei 6766/79).
Com a exigência da apresentação de certidões de ações penais, buscava-se evitar prejuízo aos adquirentes dos lotes. Porém, no processo de revisão da lei, em curso no Congresso por meio do Projeto de lei 3.057/2000, deve-se repensar a necessidade dessas certidões penais: diante do atual sistema jurídico, elas preservam, de alguma forma, os direitos dos adquirentes de lote? De que forma uma ação penal poderia afetar um imóvel e, assim, trazer prejuízo aos consumidores? Nessa avaliação é necessário ter em mente a evolução dos diplomas legais desde 1979 até a presente data, destacando-se a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e a reforma da Parte Geral do Código Penal, feita em 1984.
Os possíveis reflexos de ações penais sobre bens imóveis são: a aplicação de uma pena restritiva de direitos prevista no art. 45, §3º do Código Penal, ou seja, perda de bens; ou a perda de bens como efeito extrapenal da condenação (art. 91, CP).
No primeiro caso, trata-se de modalidade de pena, portanto, sua imposição depende do trânsito em julgado de uma condenação. Em se tratando de pena, a perda de bens jamais poderá passar da pessoa do condenado. Segundo Delmanto "sendo a perda de bens modalidade de sanção penal, é ela pessoal, individuada, intransferível, adstrita à pessoa do delinqüente" (Delmanto, Celso, et al. Código Penal Comentado. 6ª ed. Renovar, 2002. p. 93). Portanto, não pode a pena incidir sobre bem imóvel adquirido por terceiro de boa-fé.
Já os efeitos extrapenais da condenação previstos no Código Penal são: tornar certa a obrigação de indenizar o dano e a perda de bens em favor da União. Na primeira hipótese o trânsito em julgado de ação penal faz coisa julgada no cível e nesse foro será determinado o gravame sobre o bem. Assim, a certidão de ações penais é desnecessária. A segunda hipótese é aplicada quando o bem imóvel for produto do crime ou adquirido com proventos auferidos do crime e, nesse caso, estão expressamente resguardados os direitos de terceiro de boa-fé (art. 91, II, CP). Assim, não haveria prejuízo ao adquirente de lote.
Em qualquer das hipóteses é necessário lembrar que o Código de Processo Penal prevê as medidas assecuratórias, ou seja, instrumentos que facilitam a reparação do dano e podem garantir o custeio de penas pecuniárias e despesas processuais (art. 140 CPP). Caberá o seqüestro de imóveis quando estes forem adquiridos com produto do crime. Já a hipoteca legal poderá incidir sobre quaisquer imóveis do indiciado. De qualquer forma, as restrições sobre imóveis decretadas no curso do processo ou do inquérito policial deverão ser inscritas no Cartório de Registro de Imóveis (art. 128 e art. 135, §4º, ambos do CPP), ou seja, a limitação já constará da matrícula do imóvel, podendo-se dispensar a certidão de ações penais.
O Tribunal de Justiça de São Paulo já se manifestou sobre a inexistência de fraude na venda de imóveis durante o curso de uma ação penal em decisão com a seguinte ementa "A ação penal ainda pendente não constitui obstáculo à venda de imóvel pelo acusado. Não há falar, em tal conjuntura, em fraude à execução, de sorte a se considerar ineficaz a venda efetuada e se determinar sobre o imóvel a especialização da hipoteca legal" (TJSP. RT 541/347 - grifos da autora).
De qualquer forma, a perda de bens, seja como pena ou como efeito extrapenal da condenação, decorre da condenação transitada em julgado, enquanto a certidão exigida pela Lei 6.766/79 é de ações! Essa exigência viola o princípio constitucional da não consideração prévia de culpabilidade ou em princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF).
Por outro lado, caso o imóvel objeto do parcelamento não seja atingido pela sentença penal condenatória, impedir que o parcelamento seja registrado significa restringir um direito não atingido pela sentença, ou seja, a propriedade. Se no caso de condenação esse impedimento significa uma restrição ilegal de direitos, contrariando o disposto no art. 3º da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), mais ainda nos casos de absolvição ou encerramento do processo sem julgamento do mérito.
Não se pode impedir uma pessoa de explorar seu direito de propriedade, de exercer uma atividade econômica, qual seja, venda de lotes parcelados, simplesmente porque o proprietário foi réu em uma ação penal; ainda que tenha sido condenado, a condenação não tenha efeito sobre a propriedade. Essa restrição, além de violar direitos e garantias constitucionais, somente acentua a irregularidade na produção e disponibilização de lotes urbanos, pois as exigências são feitas apenas no final do processo, depois de elaborado e aprovado o projeto. A lei 6.766/79 faz poucas exigências para a fixação de diretrizes (art. 6º) e aprovação do projeto de parcelamento (art. 12), com preocupações focadas em aspectos técnicos, urbanísticos. A lei não exige um controle preventivo da situação fundiária da gleba a ser loteada: na lei federal não há qualquer impedimento para que o órgão público competente aprove o projeto de parcelamento sem atentar à titularidade da terra ou às eventuais restrições que possam incidir sobre o imóvel. Esse controle será exercido no momento do registro (art. 18, lei 6.766/79), que pode ser solicitado até 180 dias depois de aprovado o loteamento ou desmembramento.
Portanto, as certidões de ações penais exigidas pela Lei 6.766/79 e tidas como imprescindíveis para o registro não são documentos apropriados para prevenir os eventuais reflexos de ações penais sobre bens imóveis ou proteger o interesse do adquirente do lote. O novo texto da Lei de Parcelamento deve dar maior ênfase no controle da situação fundiária pelo órgão licenciador responsável pela aprovação do projeto, fortalecer a fiscalização bem como os instrumentos e direitos criados pelo Código de Defesa do Consumidor, que permitem uma adequada proteção aos adquirentes de lotes urbanizados. Além disso, no processo de revisão da lei deve-se assegurar o cumprimento de garantias constitucionais, pois o impedimento do registro em função de certidões de ações penais viola dois dispositivos constitucionais fundamentais: o princípio da não consideração prévia de culpabilidade ou da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF) e o direito de propriedade (art. 5º, caput e incisos XXII e XXIII).
*Julia Azevedo Moretti é advogada.
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