BE2331

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PL 3057 em discussão

A propósito das críticas recebidas quanto às questões registrais imobiliárias tratadas no PL 3.057/2000.
Luciano Lopes Passarelli*


De acordo com o relato de Platão emA República, Sócrates, dispondo-se a defender a Justiça em face de críticas colacionadas por Trasímaco, em certa altura da árida discussão e referindo-se à complexidade do tema, dizia ser necessário atravessar “a nado, com grande custo, este mar de dificuldade” [1], aduzindo mais à frente que “nós temos de nadar e de tentar salvar-nos nesta discussão...” [2].

Antes que alguém se levante e diga que a discussão ali travada envolvia um dos temas mais caros à filosofia em toda a história (a justiça), não havendo como comparar tal dificuldade com aquelas atinentes ao registro imobiliário, veja-se que o mesmo Sócrates averbava que “se uma pessoa cair em uma piscina pequena ou ao mar imenso, não deixa de nadar, de qualquer maneira” [3]. O tema pode não ser um mar imenso, talvez seja mesmo uma pequena piscina, mas enfrentá-lo em face de arraigados preconceitos parece igualmente difícil.

Falo com a liberdade de um recém-aprovado em duro concurso público promovido com extrema seriedade pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que cedo percebeu o duro estigma que acompanha a carreira, na questão que pertine ao custos do registro, ponto nuclear, ao que parece, das críticas feitas nos últimos dias aos pontos do PL 3.057/2000 que propõe mudanças na Lei de Registros Públicos. Há uma nítida impressão de que se passa ao largo dos aspectos fático-sociológico-jurídicos envolvidos – para aqueles que, como eu, olham com simpatia as proposições do tridimensionalismo jurídico –, afastando de plano o estudo aprofundado das questões, porque, afinal, o que importa é que delas advirá “aumento de receita dos cartorários”.

No Boletim Eletrônico do IRIB número 2323, de 3 de março de 2006, Sérgio Jacomino apontou com acuidade os vários –sim, vários – aspectos que recomendam a adoção, manutenção e aperfeiçoamento do sistema de registro imobiliário tal como hoje desenhado em nosso país. Não vou retornar a eles, que já restaram naquele texto muito bem assentados, mas gostaria, se me permitem, de fazer uma indagação: afinal, o registro imobiliário, em si, é bom ou não é?

Não me refiro ao modelo do serviço hoje adotado, se privatizado ou estatizado, porque isso rende uma discussão ideológica que, democraticamente, pode e deve ser feita, mas que é ideológica.

Mutatis mutandis, parece-me que esse aspecto envolve as mesmas premissas da discussão sobre saber se as estradas paulistas deveriam ou não ser concedidas à iniciativa privada, com o conseqüente pagamento de pedágios, e de se saber se as mesmas estão melhores ou piores do que antes da concessão, ou ainda se as estradas não privatizadas, quer estaduais, quer federais, são mais bem cuidadas do que as pedagiadas.

Naturalmente encontraremos quem prefira desviar de buraco por toda a viagem a pagar pedágio, e encontraremos aqueles que preferem pagar pedágio e rodar tranqüilamente por boas estradas. Ambas as posições são válidas: tanto quem quer economizar quanto quer tranqüilidade e segurança na viagem.

Ou, em outro exemplo, a discussão é a mesma de se saber se a privatização das telecomunicações foi boa ou não. Sempre haverá quem tenha saudade dos “planos de expansão” da Telesp, quando a expectativa de receber seu telefone remontava a alguns – ou muitos – anos, como também sempre haverá quem defenda o modelo atual, em que alguns dias depois de feito o pedido, mediante o pagamento de R$ 20,00 ou R$ 30,00, a linha telefônica está instalada. Também há razões para ambas. Basta lembrar, por exemplo, que antes telefone era investimento, e quem adquiria uma linha levava junto algumas ações da Telesp. Quem via no telefone um bom investimento deve sentir saudades; quem o vê como instrumento de trabalho, de contato com a família, etc., provavelmente irá achar que os dias atuais são melhores que os passados.

Podemos discutir se os “cartórios oficializados”, apesar de toda a abnegação e sacrifício dos servidores, apresenta um modelo melhor do que os “cartórios privatizados”, não obstante os custos sociais que greves como a que recentemente passou o Judiciário paulista trazem.

Mas, insisto, tudo isso é ideológico e, em uma democracia, resolve-se por meio do processo legislativo constitucional.

Esta a razão de ser da minha pergunta. Gostaria de saber se o que se está criticando é o modelo – questão ideológica – ou o sistema em si?

Porque afirmar que o registro imobiliário é dispensável, inoportuno ou coisa semelhante parece ir na contramão do que acontece em outros países, que, tradicionalmente, reconhecem e protegem a propriedade privada. Mesmo nos sistemas em que a transmissão se dá pelo contrato, como na França e na Itália, o registro é necessário para conferir à transmissão oponibilidadeerga omnes.

Na França, embora sempre se diga ser facultativa a transcrição, o fato é que ela ganha contornos de obrigatória, porque “los notários, procuradores, autoridades administrativas, etcétera, quienes están obligados a pedir – en determinados plazos e independientemente de la voluntad de las partes – la ‘transcripción’ de los actos o las decisiones judiciales sometidas a publicidad em que intervengan. El hecho de que afirmemos que transcripción es obligatoria, se debe al hecho que la falta de registración produce la inoponibilidad del acto no registrado frente a terceros. Además se imponen distintos tipos de sanciones ante la ausencia de registración, de un acto como la obligación de pagar multas pecuniarias o indemnizar por los daños y perjuicios causados y la inadmissibilidad de las demandas judiciales sometidas a publicación” [4].

E na Itália “para que la transferencia produzca efectos contra terceros se necesitará el requisito de la incripción, llamada por el Código Civil ‘transcripción’, que perfecciona la enajenación” [5].

Ademais, a exigência do registro imobiliário parece absolutamente consentânea com a tão propalada “função social da propriedade”, uma vez que ela não pode mais, no atual estágio de desenvolvimento da realidade sócio-jurídica, ser vista apenas sob a ótica do interesse de seu titular individualizado.

Sobre isso, o ministro Gilmar Mendes afirma que, com relação ao direito de propriedade, inexiste “um conceito constitucional fixo, estático, de propriedade, afigurando-se, fundamentalmente, legítimas não só as novas definições de conteúdo como a fixação de limites destinados a garantir a sua função social. É que, embora não aberto, o conceito constitucional de propriedade há de ser necessariamente dinâmico” [6].

As críticas feitas até aqui parecem cingir-se à posição do indivíduo que adquire o imóvel. Mas olvida, penso, aspecto fulcral: e o restante da sociedade?

Ouso afirmar que orestante da sociedade tem o direito de natureza, penso, difusa, à eficaz publicidade advinda do registro imobiliário.

Tanto que, na Espanha, já se fala em um “consumidor registral” [7], no sentido de que a sociedade deve poder confiar nos dados registrais que irá “consumir”, ou, dizendo mais, tem o direito de poder confiar nesses dados, para poder tomar decisões sem correr o risco de ser surpreendida por fatos extra-registrários que afetem o seu direito. Não é por outro motivo que Fernando P. Méndez Gonzáles, decano do Colégio de Registradores Mercantis e da Propriedade da Espanha, afirma que “o nível de segurança jurídica do tráfego (imobiliário) está em função direta dos efeitos alocados ao sistema registral pelo sistema legal em cada país” [8].

Isso traz um ônus para o adquirente? Sem dúvida, mas os romanos já apregoavam quequi sentit onus, sentire debet commodum et contra” (quem tem direito ao cômodo, deve arcar com o incômodo que dele decorre) [9]. Como aduz Regnoberto M. de Melo Junior, “submeter um ato jurídico ao registro público é um ônus jurídico” [10] a que estão sujeitos os proprietários e titulares de direito real sobre imóveis.

Não levar o título aquisitivo a registro pode dar azo, sim, a condutas nocivas à sociedade. Muitos levantam bandeiras em favor dos adquirentes, mas quem levantará bandeiras em favor da sociedade, se ela ficar sem instrumentos adequados e eficazes para se defender de comportamentos pautados pela má-fé? Nomeadamente, o terceiro de boa-fé? O fisco? O credor?

Refiro-me a instrumentos eficazes. Parece que o registro imobiliário atende a esse fim de forma muito mais célere do que os tortuosos caminhos das ações judiciais que serão percorridos durante longos anos na tentativa de se anular títulos, registros, ações reivindicatórias, e outras que tais.

E será que exigir o prévio registro afronta o direito constitucional de acesso ao poder Judiciário? Será que o legislador infra-constitucional está impedido, assim, de disciplinar, por exemplo, as “condições da ação”? Ou será que elas, de uma forma ou de outra, se não satisfeitas, acabam por impedir o acesso da parte interessada à tutela jurisdicional? Afinal de contas, elas não verão julgado o mérito do pedido deduzido em juízo.

E o que dizer das comissões de conciliação prévia da Justiça do Trabalho? O Tribunal Superior do Trabalho entendeu que se trata de um “pressuposto processual negativo” que, não atendido, leva à extinção do processo sem julgamento do mérito [11].

E, em certa medida, a representação do ofendido, no processo penal (artigo 24 do CPP), como umacondição suspensiva de procedibilidade [12] , não está a impedir o acesso do titular da ação penal pública, o Ministério Público, ao poder Judiciário?

Temos aí, pois, nítido instituto consubstanciando um “pressuposto processual”, como tantos outros que há, sem que, com isso, se diga que estão aqueles eivados de inconstitucionalidade.

Conclusão  

Em face do que foi dito, gostaria de retomar minha pergunta: será que os críticos estão a afirmar que o sistema registral é, em si, ruim?

Se se reconhecer que o registro é bom, funciona, traz segurança jurídica, fornece a necessária publicidade e atende ao princípio social da propriedade, na medida em que torna a cognoscibilidade jurídica acessível para toda a sociedade, o que, aliás, constitui um direito difuso da mesma sociedade, então, proponho que as discussões a respeito do modelo hoje vigente –se privado, se estatal, acerca de custas, etc. –, ainda que legítimas, não tenham o condão de prejudicar o aperfeiçoamento do sistema em detrimento do valor social e econômico do registro imobiliário.

Notas

*Luciano Lopes Passarelli, mestrando em Direito civil pela PUC-SP e Oficial de Registro de Imóveis de Batatais – SP

[1] PLATÃO.A República, trad. De Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 137.

[2] Idem, p. 148.

[3] Idem, ibidem.

[4] MARTÍNEZ, Victor C.Manual de derecho registral. Córdoba: Advocatus, 2003, p. 18.

[5] Idem, p. 28.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira.Direitos fundamentais e controle da constitucionalidade. Estudos de direito constitucional, 3ª ed. rev. e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 155.

[7] MENDEL, Jesús López. “El derecho a la información registral y el derecho constitucional de información”.Revista de Direito Imobiliário. São Paulo: RT, vol. 49, jul-dez. 2000.

[8] GONZÁLES, Fernando P. Méndez. “A função econômica dos sistemas registrais”.Revista de direito imobiliário. São Paulo: RT, vol. 53, jul-dez. 2002, p. 24.

[9] MAXIMILIANO, Carlos.Hermenêutica e aplicação do direito, 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 204.

[10] MELO Junior, Regnoberto Marques de.Lei de registros públicos comentada. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos Editora S/A, 2003, p. 25.

[11] A respeito: TST. RR. 2686/2002-070-02-00, 4ª Turma. Rel. o Ministro Ives Gandra Martins Junior. Julgado em 07 de dezembro de 2005, v.u. DJ de 03.03.06 (disponível em www.tst.gov.br; acesso em 05 de março de 2006).

[12] MIRABETE, Julio Fabbrini.Código de Processo Penal Interpretado, 9ª ed. São Paulo: Atlas, p. 134.



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