BE2328

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PL 3.057/2000 em discussão

O Valor do registro - II  
Sérgio Jacomino*


Respondendo topicamente às questões levantadas pela doutora Maria da Glória Villaça Borin Gavião de Almeida, debruçamo-nos agora sobre a questão da notificação extrajudicial para constituição do devedor em mora e subseqüente cancelamento de registro.

As restrições opostas ao artigo 76, parágrafo sétimo, do PL 3.057/2000, causou grande discussão na audiência pública realizada no dia 17 de fevereiro do corrente ano. Talvez se possa refutar a crítica oposta, apresentando alguns aspectos para reflexão.

Artigo 76, parágrafo 7º da Lei 6.766/79, alterado pelo projeto no artigo 147.

Registrou a.doutora. Maria da Glória Villaça Borin Gavião de Almeida:

Muito embora o dispositivo já esteja previsto na Lei 6766/79 de forma semelhante, neste último texto legal a hipótese da ausência de purgação da mora era resolvida como cancelamento da averbação (e não do registro). A interpretação que se dava a esse artigo era de que o efetivo cancelamento só seria possível se reconhecida a rescisão contratual por decisão judicial. Não é essa a solução que o projeto parece querer atribuir: ao estabelecer que haverá o cancelamento do registro e a fixação do prazo de 15 dias para expedir a respectiva certidão, identifica-se o intuito de tornar definitivo o cancelamento do registro se caracterizado o atraso no pagamento”. (Documento circulado entre os debatedores, com autorização da autora).

A regra é tradicional em nosso Direito

A regra do cancelamento de registro estava prevista nos artigos 32 e 36, III, da lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Tal disposição era cópia da que figurava no artigo 14 do antigo decreto-lei 58, de 1937, trasladada sem muito rigor pelo legislador de 1979.

Tanto quanto se saiba, nunca houve essa interpretação tão heterodoxa quanto a aventada na crítica supra – embora sempre se considerasse relevante a discussão acerca da necessidade de intervenção judicial para o cancelamento do registro.

Mas, compreende-se a perplexidade do leitor ao encontrar a expressão “cancelamento da averbação” integrada no parágrafo terceiro do artigo 32 – muito embora o artIgo 35, logo em seguida, refira-se a “cancelamento do registro por inadimplemento do contrato”.

O micro sistema se compõe assim: o artigo 32 dispõe que “vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor”.

Os artigos seguintes e correspondentes prevêem o processo de intimação extrajudicial.

O artigo 36 fala emcancelamento de registro do compromisso, cessão ou promessa de cessão “quando houver rescisão comprovada do contrato” (inciso III).

Com esse rito se perfazia o cancelamento do registro – na consideração de que uma das hipóteses de cancelamento do registro era arescisão (rectius: resolução)comprovada, prevista no inciso III do artIgo 36; o contrato era considerado resolvido com a mora provada do adquirente.

Voltando ao tema da averbação, como se justifica o “cancelamento de averbação” referido no artigo 32?

O segredo está, em parte, na cópia defectiva do antigo decreto-lei 58/1937:

Tabela1

Vê-se a origem da “averbação”... Ainda que se justifique a alusão a ela em virtude do disposto no artigo 167, II, 3, da LRP, como veremos em seguida.

Toshio Mukai, Alôr Caffé Alves e Paulo José Villela Lomar comentam essa peculiar ocorrência: “com ligeiras e superficiais alterações de redação, o legislador manteve o conteúdo do art. 14 do Decreto-Lei n. 58/37. Praticamente copiando-o, sem qualquer espírito crítico e de adequação, o legislador incorreu em lamentáveis equívocos. Deverá perdurar assim o debate doutrinário e jurisprudencial acerca de seu conteúdo, iniciado por ocasião das discussões parlamentares sobre o projeto de lei que redundou no Decreto-Lei 58, nos idos de 1937. Prova do labor copiativo do legislador encontra-se no § 3º com alusão ao cancelamento da averbação. Na sua irreflexão, o legislador simplesmente ‘esqueceu’ que, alguns anos antes, em 31 de dezembro de 1973, editara nova Lei de Registros Públicos, dispondo que, inclusive, os contratos de compromisso de compra e venda, respectivas cessões e promessas de cessão referentes a imóveis loteados, segundo o Decreto-Lei 58, fossem sujeitos a registro e não a averbação. Do mesmo modo, ‘esqueceu’ que no art. 36 da nova Lei referiu-se ao registro de tais contratos e não à sua averbação” (Loteamentos e desmembramentos urbanos. São Paulo: Sugestões Literárias, 1987, p.185).

A crítica é procedente –ma non troppo. Como singelamente veremos, é possível construir uma exegese integrativa.

A própria lei 6.015/73, no artigo 167, II, prevê “aaverbação dos contratos de promessa de compra e venda, das promessas de cessão a que alude o Decreto-Lei n. 58, de 10 de dezembro de 1937, quando o loteamento se tiver formalizado anteriormente à vigência desta lei”. Portanto, nesse caso, o cancelamento seria mesmo da averbação.

Não é raro que aportem ao Registro contratos firmados à época do antigo decreto-lei 58/1937 e nesse caso específico a providência indicada pela lei é aaverbação que será feita à margem da inscrição respectiva no antigo livro 8.

Decorre daí, que o cancelamento, nesses casos, é daaverbação, mesmo na vigência da atual Lei de Registros Públicos.

Por outro lado, as Normas de Serviço da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo tratando do cancelamento dos compromissos (itens 181 e seguintes, cap. XX) aludem a cancelamento deaverbação e deregistro. E mais: o item 192 reza que “as normas constantes desta subseção aplicam-se, no que couberem, aos loteamentos de imóveis rurais”. Consabido que o decreto-lei 58 ainda se acha parcialmente em vigor e se aplica a loteamentos de imóveis rurais.

A doutrina não discrepa. Vejamos o comentário do registrador Elvino Silva Filho.

Merece especial referência, dentro de um estudo geral do cancelamento no Registro de Imóveis, o cancelamento dos compromissos de compra e venda nos loteamentos”.

O art. 36 da Lei 6.766, de 19.12.79 (Parcelamento do Solo Urbano), prescreve: ‘O registro do compromisso, cessão ou promessa de cessão só poderá ser cancelado: I – por decisão judicial; II – a requerimento conjunto das partes contratantes; III – quando houver rescisão comprovada do contrato’.”

Os dois primeiros itens já foram amplamente examinados e referem-se a qualquer espécie de cancelamento. O último (n. III), entretanto, é peculiar dos registros de loteamentos, pela constituição em mora do compromissário comprador, nos contratos de compromisso registrados, mediante notificação feita pelo Oficial do Registro de Imóveis (1.º do art. 32), quando ele residir na própria Comarca, ou pelo Oficial do Registro de Títulos e Documentos, quando residir em Comarca diferente (art. 49), a requerimento do loteador, credor das prestações em atraso”.

Efetuada a notificação para o pagamento dessas prestações do preço, decorrido o prazo de 30 dias, sem que o pagamento houvesse sido efetuado, perante o Oficial do Registro de Imóveis, expedirá ele certidão comprobatória dessa circunstância que habilitará o loteador a requerer ao Oficial ocancelamento da averbação ou do registro do compromisso de compra e venda do lote de terreno”. (Elvino Silva Filho,Do cancelamento no registro de Imóveis, RDI 27-7).

Cancelamento pela via judicial

O problema central é o cancelamento do registro pela via extrajudicial.

Embora algo tardiamente – afinal, transcorreram tantas Audiências Públicas sem que se levantassem vozes contrárias a esse vetusto dispositivo que sobrevive na trama normativa brasileira – talvez fosse possível considerar que a providência gravosa do cancelamento de registro dependesse mesmo de uma providência judicial – muito embora é de serem relevados os exemplos de execução extrajudicial com ritos julgados pelo STF como regras absolutamente constitucionais.

De fato, registre-se, de passagem, que o decreto-lei 70, de 1966, com suas disposições sobre procedimentos extrajudiciais de execução hipotecária, foi julgado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O Supremo julgou a constitucionalidade da execução extrajudicial entendo-a compatível com os princípios da inafastabilidade da apreciação judiciária, do monopólio da jurisdição, do juízo natural, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. "Nem é, aliás, por outro motivo que prestigiosa corrente doutrinária, com vistas ao desafogo do Poder Judiciário, preconiza que a execução forçada relativa à dívida ativa do Estado seja processada na esfera administrativa, posto reunir ela, na verdade, na maior parte, uma série de atos de natureza simplesmente administrativa. Reservar-se-ia ao Poder Judiciário tão-somente a apreciação e julgamento de impugnações, deduzidas em forma de embargos, com o que estaria preservado o princípio do monopólio do Poder Judiciário" (STF, 1ª Turma, RE 223.075-1 DF, Ilmar Galvão, relator, j. 23/ 6/1998).

Essa tendência é muito nítida no desenvolvimento da legislação pátria.

Pode ser dada como exemplo a recente lei 9.514/97, que em seu artigo 26, dispõe sobre a constituição do devedor em mora por notificação extrajudicial feita pelos registros públicos. Logo a seguir, a exemplo das leis de parcelamento, autoriza o aniquilamento do direito real do adquirente pela via extrajudicial (art. 26, § 7º).

Mas não só. Vamos citar alguns exemplos – e em nenhum dos casos, diga-se de passagem, a regra caiu fulminada por inconstitucionalidade. Muito pelo contrário.
 

•    Decreto-lei 911/1965 (art. 2º § 2º), que trata da alienação fiduciária de bens móveis;

•    Decreto-lei 70, de 21/11/1966 (art. 31 e ss.), que trata da execução extrajudicial decorrente de financiamento hipotecário;

•    Lei 4.591/1964 (art. 63), tratando do leilão extrajudicial para venda, promessa de venda ou de cessão, ou a cessão da quota de terreno e correspondente parte construída e direitos, bem como a sub-rogação do contrato de construção.


É, portanto, de se repelir a interpretação ligeira de que essa regra tivesse feito o seu gloriosodébut no projeto sob exame e que, além disso, tivesse sido posto ali adrede. Simplesmente a inserção dá curso a uma tendência inequívoca de agilização da circulação de bens e riquezas, na certeza, comprovada, de que os custos se degradam na exata medida em que os processos de execução se tornam céleres e seguros. A via extrajudicial mostra-se muito mais vantajosa para os credores. Todos os credores, e não só as grandes potestades econômicas. Não custa lembrar que o acesso ao Judiciário, em qualquer desses casos, jamais ficou obliterada.

A questão repercute em vários setores da sociedade. Discorrendo sobre as dificuldades de recuperação de crédito, a Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, em documento intituladoJudiciário e Economia, recupera dados que nos permitem refletir sobre a necessidade de se aprofundar modelos alternativos de composição de conflitos e de recuperação de ativos.

Segundo o Ministério da Fazenda” – diz o documento – “os números demonstram os reflexos da morosidade na recuperação de crédito. A tabela abaixo, elaborada com base no trabalho de Fachada, Figueiredo e Lundberg (2003), apresenta estimativas de custo para a recuperação de quatro contratos hipotéticos de crédito (com valores entre R$ 500 e R$ 50 mil), bem como do prazo de tramitação de duas modalidades típicas de processo: a extrajudicial simples e a judicial (de conhecimento e de execução). As informações básicas para o cálculo foram obtidas junto a instituições financeiras com contencioso nessa área. Ainda que se trate da recuperação de contratos de crédito, problemas semelhantes ocorrem com outros tipos de litígios da área cível com valores monetários similares, como, por exemplo, a retomada de um imóvel, ou o pagamento de verbas indenizatórias, ou ainda uma rescisão contratual (prestação de serviços, fornecimento de insumos, entre outros)“.

Recuperação judicial de crédito (Projeção de custos em R$ e % e prazos)

Tabela2

Relatório Economia e Judiciário - Secretaria da Reforma do Judiciário/ Banco Central

Calha referir aqui, mais uma vez de passagem, o valor emolumentar das notificações no estado de São Paulo. A notificação efetuada pelo registro de imóveis, nessas hipóteses, importa em R$ 21,95, mais impostos. Não haverá qualquer impacto econômico na cadeia que envolve a produção de bens imóveis decorrente de parcelamentos.

Por fim, deve-se anotar, lealmente, que havia uma tendência muito clara da doutrina registral de se considerar imprescindível a intervenção judicial para o cancelamento do registro. Além de encarecer a defesa do consumidor, considerava-se que o registro deveria ser blindado e somente atacado pela via judicial – e por todos o pronunciamento do registrador imobiliário João Baptista Galhardo: “hoje o cancelamento do registro nos termos do art. 32, §2º, sucumbiria à argüição de nulidade, diante da vedação contida no art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública que se sobrepõe à regra anterior”. E arremata: “o pedido de cancelamento pela via judicial preservaria eventual direito da parte contrária, o que através do registro imobiliário não há condição de aferir” (O registro do parcelamento do solo para fins urbanos, Porto Alegre: safE, 2004, p. 130).

De qualquer maneira, o dispositivo figura no projeto e o debate está aberto.

Concluindo esse tópico:
 

1.   A regra do cancelamento de registro estava prevista nos artigos 32 e 36, III, da lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979 e anteriormente no artigo 14 do antigo decreto-lei 58, de 1937. É, portanto, uma regra tradicional do Direito brasileiro;

2.   A transladação do articulado do decreto-lei 58/1937 para a vigente Lei de Parcelamento do Solo Urbano não levou em consideração as hipóteses deregistro.

3.   A atual Lei de Registros Públicos prevê a hipótese de averbação da promessa e cessão oriundos do decreto-lei 58/37. Nesse sentido, é adequada a expressãocancelamento de averbação ínsita no artigo 32, parágrafo terceiro da lei 6.766/79.

4.   São indícios claros de uma tendência da legislação brasileira, além dos diplomas que tratam do parcelamento do solo urbano, os seguintes exemplos da recuperação extrajudicial de bens móveis ou imóveis: decreto-lei 911/1965 (art. 2º § 2º), que trata da alienação fiduciária de bens móveis; decreto-lei 70, de 21/11/1966 (art. 31 e ss.), que trata da execução extrajudicial decorrente de financiamento hipotecário; lei 4.591/1964 (art. 63), tratando do leilão extrajudicial para venda, promessa de venda ou de cessão, ou a cessão da quota de terreno e correspondente parte construída e direitos, bem como a sub-rogação do contrato de construção.


*Sérgio Jacomino é Presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil.



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