BE2262

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Irib representa o Brasil no I Congresso Ibero-americano de Cadastro no Peru

Georreferenciamento de Imóveis
Intercâmbio entre Cadastro e Registro de Imóveis no Brasil
Profª Andrea Flávia Tenório Carneiro*


Resumo

Por falta de legislação que estabeleça diretrizes gerais para o funcionamento do cadastro no Brasil, bem como de normas técnicas para a sua implantação e manutenção, fica a cargo de cada prefeitura a gestão dos cadastros urbanos, estabelecidos primordialmente para fins fiscais (embora a tendência de multifinalidade tenha crescido nos últimos anos). O cadastro rural é de responsabilidade federal (administrado pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Não se identifica, no Brasil, o conceito de parcela como unidade territorial do Cadastro, como conceituada pela Federação Internacional dos Geômetras - FIG e utilizada pela maioria dos países latino-americanos. A unidade do cadastro no Brasil é geralmente o imóvel.

A descrição do imóvel no registro independe da descrição no cadastro (uma vez que este cadastro pode até não existir). Pela lei de registros públicos (lei 6.015/73), “a identificação do imóvel, feita mediante indicação de suas características e confrontações, localização e denominação, se rural ou logradouro e número, se urbano.”; A lei 10.267, de agosto de 2001, estabelece o georreferenciamento de imóveis rurais, passando a descrição do imóvel a ser feita através das coordenadas dos seus limites, referenciados ao Sistema Geodésico Brasileiro.

A descrição do imóvel no cadastro urbano é realizada com base nas suas medições e confrontantes. A identificação segue principalmente o modelo em árvore, relacionada à numeração de setores fiscais, quadras, lotes e subunidades.

A lei 10.267/01 surgiu com a promessa de acabar com a apropriação indevida de terras públicas. A nova legislação surgiu em conseqüência de uma demanda há muito reprimida. A pressão social por instrumentos que contribuíssem para a agilização de ações fundiárias fez com que se tornasse premente a elaboração do instituto legal ao qual nos referimos, bem como os regulamentos que se seguiram. Além do georreferenciamento dos imóveis rurais, a lei trata de outros pontos importantíssimos: o intercâmbio de informações com o registro de imóveis, fundamental em ações ambientais e de regularização, e a criação do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais - CNIR, um cadastro único de informações sobre os imóveis rurais do país. Por tratar de questões novas e complexas, envolvendo uma abordagem profissional até então pouco exigida, além da integração entre instituições distintas, era de se esperar dificuldades na sua aplicação. Passados quatro anos da publicação da lei, muitos obstáculos ainda se fazem presentes.

1. ANÁLISE DA SITUAÇÃO CADASTRAL BRASILEIRA

A análise do cadastro brasileiro indica algumas características que exigem uma ação coordenada de reforma do sistema, para que o mesmo possa atingir os objetivos apresentados anteriormente. Entre estas características, destacam-se as seguintes:
 

    • a responsabilidade pelo cadastro no Brasil é fragmentada de acordo com a localização do imóvel: existem o cadastro rural, de administração e legislação federal, e o cadastro urbano, de responsabilidade das prefeituras, sem normatização, nem legislação específica;
 

    • identifica-se, nos dois tipos de cadastro, uma inaceitável duplicação de esforços e de dispêndio de recursos. É fácil encontrar duplicação de informações dentro das próprias prefeituras, onde diferentes setores produzem as mesmas informações;
 

    • a falta de integração com os registros imobiliários faz com que os cadastros não disponham de informações legais confiáveis, o que resulta em prejuízos incalculáveis do ponto de vista econômico e social, a exemplo de ações de desapropriação intermináveis e de cobranças tributárias ineficientes devido à informações errôneas sobre o titular do direito e sobre a propriedade;
 

    • ainda do ponto de vista tributário, um cadastro atualizado e completo facilitaria a desejada equidade fiscal, através da possibilidade de se obter valores mais precisos da base de cálculo do imposto territorial e apuração do valor venal do imóvel.
 

2. O GEORREFERENCIAMENTO DE IMÓVEIS RURAIS ESTABELECIDOS PELA LEI 10.267/01

A lei 10.267/01 surgiu com a promessa de acabar com a apropriação indevida de terras, principalmente de terras públicas. A nova legislação surgiu em conseqüência de uma demanda há muito reprimida. A pressão social por instrumentos que contribuíssem para a agilização de ações fundiárias fez com que se tornasse premente a elaboração do instituto legal ao qual nos referimos, bem como os regulamentos que se seguiram. Além do georreferenciamento dos imóveis rurais, a lei trata de outros pontos importantíssimos: o intercâmbio de informações com o registro de imóveis, fundamental em ações ambientais e de regularização, e a criação do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais - CNIR, um cadastro único de informações sobre os imóveis rurais do país.

Entre as principais determinações da Lei, destacam-se as que são discutidas a seguir.

A criação do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais - CNIR

A lei 10.267 instituiu o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais – CNIR, constituído por uma base comum de informações sobre imóveis rurais, a ser gerenciada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e pela Secretaria da Receita Federal. As informações contidas no CNIR deverão ser compartilhadas pelas instituições produtoras e usuárias dessas informações.

A implantação do CNIR envolve definições de caráter técnico e administrativo, uma vez que o novo sistema deverá atender às necessidades dos órgãos e instituições envolvidas. Assim, para a sua implantação, deverão ser analisados os sistemas individuais de cadastro e as divergências relativas à unidade de cadastramento: o imóvel rural, que deverá ser bem definido.

O intercâmbio de informações entre INCRA e cartórios

Um outro aspecto transformador estabelecido pela Lei 10.267 consiste na troca de informações entre o INCRA e os cartórios de registro. Essa sistemática pode resultar numa efetiva e necessária integração entre o Cadastro e o Registro de Imóveis. Esse intercâmbio de informações foi estabelecido pela Lei 10.267 através da alteração da Lei n. 4.947/66, que fixa normas de Direito Agrário:

Art. 1oO art. 22 da Lei no4.947, de 6 de abril de 1966, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 22.....

.......

 7º Os serviços de registro de imóveis ficam obrigados a encaminhar ao INCRA, mensalmente, as modificações ocorridas nas matrículas imobiliárias decorrentes de mudanças de titularidade, parcelamento, desmembramento, loteamento, remembramento, retificação de área, reserva legal e particular do patrimônio natural e outras limitações e restrições de caráter ambiental envolvendo os imóveis rurais, inclusive os destacados do patrimônio público.

8º O INCRA encaminhará, mensalmente, aos serviços de registro de imóveis, os códigos dos imóveis rurais de que trata o § 7º, para serem averbados de ofício, nas respectivas matrículas. (NR)

O georreferenciamento de imóveis rurais

O artigo 3º da Lei 10.267 / 2001, que trata de alterações da Lei dos Registros Públicos, modificando a sistemática relacionada à identificação dos imóveis rurais ficou com a seguinte redação:

Art. 3 Os arts. 169, 176, 225 e 246 da Lei no6.015, de 31 de dezembro de 1973, passam a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 169..........

II - os registros relativos a imóveis situados em comarcas ou circunscrições limítrofes, que serão feitos em todas elas, devendo os Registros de Imóveis fazer constar dos títulos registrados tais ocorrências;

Art.176 ……

II -.............

3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação:

a) se rural, o código do imóvel, os dados constantes do CCIR, a denominação e a indicação de suas características, confrontações, localização e área;

b) se urbano, indicação de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e sua designação cadastral, se houver.

3 Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1oserá obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica - ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais. (NR)

4º A identificação de que trata o §3º tornar-se-á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo.”(NR)

Art. 225...............

3 Nos autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, a localização, os limites e as confrontações serão obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica - ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais. (NR)

Como pode ser observado, a Lei estabelece importantes medidas relacionadas à identificação dos imóveis rurais, quando reconhece a necessidade de medições com suporte geodésico. Por sua vez, a obrigatoriedade de referenciamento dos levantamentos ao Sistema Geodésico Brasileiro proporcionará uma identificação livre de superposições, desde que seja atendida a precisão posicional exigida na regulamentação da nova legislação. Para tanto, deve-se levar em conta a dificuldade de se definir um único valor de precisão posicional que atenda a realidades tão diversas quanto às encontradas neste país.

Exigência de responsabilidade técnica

Uma das medidas estabelecidas na Lei é a exigência de Anotação de Responsabilidade Técnica do profissional que executará o levantamento. Significa a realização dos levantamentos por profissionais habilitados para este fim e, portanto, passíveis de responder judicialmente por eventuais falhas ocorridas nos procedimentos técnicos, o que pode contribuir para a isenção de responsabilidade do profissional do registro imobiliário sobre possíveis superposições que venham a ocorrer.

3. QUATRO ANOS DEPOIS DA LEI 10.267 E SEUS REGULAMENTOS:

A estrutura geodésica para o georreferenciamento

O georreferenciamento dos imóveis pressupõe a existência de pontos de referência suficientes para que estes levantamentos possam ser realizados dentro da precisão exigida pela lei, considerada por alguns profissionais como excessivamente branda. A tecnologia disponível permite uma precisão maior. No entanto, precisão implica em custos e pretende-se que a aplicação da lei não seja inviabilizada pelo alto custo dos levantamentos.

A minimização dos custos, por outro lado, depende da existência de uma rede geodésica densa, para que o georreferenciamento a distâncias menores permita a redução dos custos dos levantamentos. Um pré-requisito para o atendimento a essa necessidade era a homologação, pelo IBGE, da rede de monitoramento contínuo do INCRA, a RIBAC – Rede Incra de Bases Comunitárias. Acredito que dificuldades técnicas, administrativas e financeiras (e talvez também políticas) impediram que os esforços dos técnicos do INCRA e do IBGE, nesse sentido, se concretizassem.

Mapa

RIBAC – Rede Incra de Bases Comunitárias

Uma boa notícia é que, de acordo com informações recentes do próprio INCRA, todos os receptores de uma freqüência da RIBAC estão sendo substituídos por receptores de dupla freqüência, permitindo o rastreio em atendimento às exigências técnicas do IBGE para a referida homologação.

Além disso, o IBGE tem homologado pontos estabelecidos por instituições públicas e empresas privadas. Soma-se a esse esforço a notável expansão das redes estaduais, estando as regiões Sul e Sudeste totalmente atendidas e as regiões Norte, Centro Oeste e Nordeste parcialmente implantadas e em fase de expansão, nos estados que ainda não foram contemplados.

A questão profissional e a determinação dos limites

A exigência do georreferenciamento dos imóveis em atendimento a uma determinada precisão e para fins legais é uma novidade no Brasil. Os profissionais que atuavam em levantamentos de imóveis rurais, em sua maioria, não estavam preparados para estas novas exigências. A opção do INCRA pelo credenciamento dos profissionais e a necessidade de definição, pelo CONFEA, dos profissionais que estariam habilitados a realizar tais levantamentos, gerou uma tensão entre aqueles que já atuavam na área, aqueles que ainda não atuavam, porém são capacitados para atuar, e aqueles que não atuavam, não estavam capacitados para atuar, mas enxergaram a oportunidade que surgia. Tornou-se aparente um conflito de atribuições que existia, porém não se evidenciava porque o mercado não era atrativo.

Em vários países da Europa (França, Alemanha, Suíça, Áustria, Dinamarca) profissionais que são credenciados para atuar em cadastro para fins legais possuem uma formação muito próxima da graduação dos engenheiros cartógrafos e agrimensores brasileiros. Além disso, exige-se uma experiência prática em atividades de cadastro e cursos adicionais envolvendo temas de administração, economia e legislação.

No Brasil, os cursos de engenharia passam por um processo de adaptação dos seus currículos às novas diretrizes curriculares exigidas pelo Ministério da Educação - MEC. Nessa oportunidade, os currículos foram ou estão sendo adaptados para o atendimento a estas novas exigências do mercado.

Profissionais se mobilizaram e organizaram eventos e listas de discussão para trocar experiências e tirar dúvidas relacionadas às questões legais e técnicas envolvidas.

O site do INCRA relaciona atualmente 3201 profissionais credenciados, distribuídos de forma desigual entre os estados. Este número é suficiente para o atendimento da demanda? Uma análise superficial da lista de credenciados indica que os estados do Sudeste e Sul, que possuem uma dinâmica imobiliária mais acentuada, possuem mais credenciados.

Outra pergunta: estão todos estes credenciados preparados para a realização dos levantamentos de acordo com as normas estabelecidas? A resposta dependeria de um dado que o INCRA deve dispor. Qual o percentual de levantamentos devolvidos sem certificação?

Quanto à norma técnica para o georreferenciamento, é consenso que necessita ser aperfeiçoada. Discussões realizadas em eventos e listas virtuais indicam a pertinência de sua alteração, para atendimento a questões que a prática do levantamento trouxe à tona.

Universidades têm se debruçado sobre o tema, divulgando os resultados de pesquisas realizadas sobre o tema. Profissionais que têm se dedicado aos levantamentos georreferenciados também têm se manifestado. É necessário, portanto, que as sugestões sejam encaminhadas de forma organizada ao INCRA, para que sejam efetivadas as mudanças necessárias.

A certificação dos levantamentos pelo INCRA

O INCRA é, sem dúvida, o principal responsável pela efetiva aplicação da lei. O sucesso ou o fracasso da sua aplicação, portanto, depende em grande parte da eficiência e da estrutura do órgão na execução das atividades que estão sob sua responsabilidade.

A Portaria 1102, de novembro de 2003, estabelece as diretrizes para a formação do Comitê Nacional de Certificação e Credenciamento e dos Comitês Regionais de Certificação. Passados dois anos, das 30 superintendências regionais, 22 possuem comitês de certificação e apenas15 funcionam efetivamente. Coincidência ou não, os 1.768 imóveis certificados (em 13/10/05, segundo www.incra.gov.br) encontram-se situados em 15 estados.

Os números permitem questionar o que estaria acontecendo nestes estados que não possuem comitês de certificação. Existem profissionais credenciados em todos os estados. Por que em alguns desses estados não existe um único imóvel certificado?

É importante destacar o esforço da equipe do INCRA no desenvolvimento do programa utilizado no processo de certificação para a verificação de possíveis superposições, bem como o valor da disponibilidade desta ferramenta para a uniformidade dos procedimentos. A utilização do programa, no entanto, é uma etapa do processo de retificação. Não se tem notícias, por exemplo, de que o INCRA tenha realizado algum treinamento dos funcionários dos comitês de certificação, de forma que todos tenham uma mesma interpretação das normas. É importante, ainda, que se crie uma espécie de banco de “jurisprudência” referente aos casos que ainda não estão contemplados na norma, para que as decisões sejam homogêneas.

Os dados apresentados indicam problemas evidentes na certificação, o que nos remete, mais uma vez, à formação do profissional de cadastro. Os membros dos comitês de certificação devem ter, no mínimo, uma qualificação igual à dos profissionais que realizam o levantamento.

O mais grave é que o INCRA parece não ter percebido ainda o tamanho do problema: que profissional tem capacitação para analisar todos os relatórios de levantamento e ajustamento de coordenadas exigidos pela norma técnica? Os únicos que estudam ajustamento de observações, no Brasil, são engenheiros cartógrafos e agrimensores. No entanto, foi realizado um concurso em 2004 onde não foram previstas vagas para estes profissionais. Acaba de ser publicado o edital de mais um concurso, com a previsão de 35 vagas para profissionais da área específica de agrimensura/cartografia. Serão suficientes estas vagas, perante a tarefa que o instituto tem pela frente?

4. PERSPECTIVAS PARA A EXIGÊNCIA DE GEORREFERENCIAMENTO DE IMÓVEIS URBANOS

Quando surgiram as primeiras ações visando a elaboração do projeto de lei que deu origem à lei 10.267/2001, havia restrições da parte de alguns pesquisadores que se dedicavam ao cadastro no Brasil, entre os quais me incluo. Iniciando estudos para doutoramento cujo tema propunha a integração entre cadastro e registro de imóveis, parecia incoerente investir numa legislação que tratasse unicamente do cadastro de imóveis rurais.

Uma análise mais cuidadosa da situação do cadastro no Brasil e de projetos de reforma cadastral em outros países, no entanto, mostrou que uma mudança tão radical não acontece da noite para o dia, modificando estruturas administrativas que parecem incompatíveis. E experiências internacionais indicavam que uma reforma progressiva do cadastro é o melhor caminho para o seu aperfeiçoamento, principalmente em países com pouca cultura cadastral, o caso do Brasil.

Sob esse ponto de vista, avaliou-se que o melhor caminho para o aperfeiçoamento do cadastro brasileiro seria a partir do cadastro rural, que já possuía legislação e administração em âmbito federal. Imaginou-se que, a partir da experiência da aplicação da legislação aos imóveis rurais, seria facilitado o tratamento dos imóveis urbanos.

E qual a situação do cadastro urbano? Sem uma legislação específica que estabeleça diretrizes para o seu estabelecimento e manutenção, o cadastro urbano desenvolve-se em cada prefeitura segundo as necessidades e interesses locais, muitas vezes de maneira improvisada, copiando-se modelos adotados por outros municípios.

Enquanto se discutia a aplicação da lei de georreferenciamento de imóveis rurais, evoluía a legislação voltada para áreas urbanas. A mais importante delas, a lei 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, regulamenta instrumentos urbanísticos e jurídicos para a regularização fundiária, além da exigência de plano diretor para os municípios com mais de 20.000 habitantes. O cadastro multifinalitário passa, assim, a ser valorizado como um instrumento importante para um planejamento eficiente, principalmente para a otimização da utilização de recursos sempre escassos.

Outras leis ou alterações de leis existentes, menos conhecidas no meio técnico cadastral, trouxeram novas possibilidades para o aperfeiçoamento da informação territorial. Pode-se citar a lei 10.931/2004, que permite a retificação administrativa da descrição de imóveis, sejam urbanos ou rurais, desde que apresentada planta georreferenciada assinada por profissional habilitado. E ainda a Ementa Constitucional n.42, que prevê o repasse do valor integral do Imposto Territorial Rural – ITR para o município que se dispuser a implantar e administrar o cadastro rural. Sobre estas leis voltarei a falar mais adiante.

O Cadastro Multifinalitário como instrumento de planejamento urbano e seus elementos técnicos

Uma importante iniciativa realizada em 2005 deve ser destacada. Dentro do Programa Nacional de Capacitação das Cidades, promovido pelo Ministério das Cidades, Caixa Econômica Federal e Lincoln Institute for Land Policy, foram realizados seminários sobre cadastro multifinalitário dirigidos a gestores e técnicos de cadastro municipal. Foram abordados temas como os elementos de um cadastro multifinalitário, seus benefícios, estudos de caso, alternativas tecnológicas. Criou-se uma oportunidade única de divulgar diretamente para os envolvidos com cadastro os benefícios e possibilidades de uma boa informação cadastral, assim como as alternativas tecnológicas atuais, suas aplicações e limitações. E esse trabalho deve ser fortalecido em 2006.

O cadastro multifinalitário é apresentado como um cadastro básico, que contém informações comuns aos diversos usuários da informação cadastral e possibilita a integração de cadastros temáticos variados, como de logradouros, fiscal, de infra-estrutura (concessionárias, equipamentos urbanos), legal (registros imobiliários). Observa-se que as aplicações do cadastro têm evoluído dos fins exclusivamente fiscais para diversas outras finalidades, principalmente de planejamento e ambientais. Por isso, é necessário que se estabeleça um alicerce sólido para que a estrutura cadastral seja robusta e suficientemente confiável para atender aos seus múltiplos usos.

Do ponto de vista técnico, dois elementos são fundamentais para a integração das informações de várias bases de dados: a identificação única dos imóveis e um sistema de referência de medição único. A identificação única permite que cada usuário possa reconhecer o mesmo imóvel nos bancos de dados específicos, e assim aproveitar os dados existentes, produzidos por possíveis parceiros. Por outro lado, se todos os levantamentos (plantas de loteamentos, projetos de intervenção urbana) forem realizados utilizando o mesmo sistema de referência e atenderem ao mesmo padrão de precisão de levantamento, é possível aproveitar essas medições para manter atualizada a base cadastral, reduzindo assim os custos com a necessária atualização do cadastro.

E qual o relacionamento do cadastro multifinalitário com o georreferenciamento de imóveis? Se o georreferenciamento de imóveis rurais foi pensado para evitar a superposição de imóveis, este é um problema também em áreas urbanas. E não são poucos os casos locação inadequada de loteamentos, que causam futura ilegalidade dos imóveis, ou impossibilidade de legalização devido à dificuldade de identificação entre o imóvel cadastrado e o registrado. E aí surge também a importância do intercâmbio entre cadastro e registro de imóveis.

Voltando agora à lei 10.931/2004, citada anteriormente. Através dessa lei, o registrador pode retificar administrativamente, ou seja, no próprio cartório, uma descrição de imóvel que esteja equivocada ou imprecisa, desde que seja por iniciativa do proprietário, com anuência dos confrontantes e apresentação da planta georreferenciada assinada por profissional habilitado.

É um caminho importante para o georreferenciamento de imóveis urbanos, principalmente porque envolve o caráter legal do cadastro, mas é preciso definir normas para este georreferenciamento. Para os imóveis rurais, existe a responsabilidade do INCRA para definir as normas e certificar que os imóveis foram medidos de acordo com estas normas. Para os imóveis urbanos, não existe ainda essa estrutura técnica. A precisão do levantamento apóia-se exclusivamente na responsabilidade do profissional. E é importante lembrar outro ponto: a precisão da determinação dos limites de imóveis rurais é de 50cm. E para os imóveis urbanos? Terá que ser uma precisão maior, em torno de 6 a 10cm, se adotada a mesma metodologia do caso dos imóveis rurais. É preciso pensar quais os impactos econômicos dos custos dos novos levantamentos sobre o mercado imobiliário. O fator custo é fundamental na definição da viabilidade.

Quanto à Emenda Constitucional n.42, com a possibilidade de implantação e gestão do cadastro rural pela própria prefeitura, pode-se finalmente construir o cadastro municipal, e muitos já estão convencidos dos seus benefícios. Afinal, a administração municipal é responsável pelo planejamento e gestão do município como um todo e a carência de informações sobre as áreas rurais fica evidente nesse momento em que muitos municípios estão obrigados a elaborar planos diretores até outubro de 2006. Mas isso não contraria a lei 10.267/2001, que delega ao INCRA e Receita Federal a administração de um cadastro único para as áreas rurais (o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais - CNIR)?

Finalmente, o georreferenciamento de imóveis urbanos é viável?

São muitos os desafios, mas é possível indicar ações que permitam o amadurecimento da idéia.

Quanto ao sistema de referência único necessário à integração dos levantamentos, desde 1998 temos a norma da ABNT NBR-14.166 para implantação de redes de referência cadastral.

Uma norma importante, que detalha os métodos de levantamento e padrões de precisão necessários. Traz inclusive um modelo de decreto municipal oficializando os marcos de referência e estabelecendo a exigência de georreferenciamento de todos os levantamentos topográficos e geodésicos a esta rede.

Com relação à projeção cartográfica, no entanto, a norma admite os sistemas transversos de Mercator (UTM, LTM, RTM) ou o plano topográfico. De uma maneira geral, as redes de referência têm sido implantadas na área urbana, algumas vezes usando o plano topográfico como referência. Nesse caso, haverá divergências com o cadastro rural, que adota o sistema UTM em conformidade com a norma do INCRA.

Quanto à precisão dos levantamentos, é importante que se desenvolvam estudos para definir o valor desta precisão para imóveis urbanos, bem como as normas para a realização dos levantamentos.

Estas e outras questões (por que não pensar numa lei nacional de cadastro?) servem de planejamento para o georreferenciamento de imóveis urbanos. E devem ser tema de discussão durante esse ano de 2006, para que estejamos prontos para os novos desafios que com certeza virão.

5. PROPOSTA PARA A ESTRUTURAÇÃO DE UM CADASTRO MULTIFINALITÁRIO PARA O BRASIL

O pré-requisito de qualquer projeto de reforma cadastral no Brasil é a definição de diretrizes nacionais, nos moldes de uma lei de cadastro, a exemplo da lei de registros públicos brasileira. Assim, a primeira etapa da estruturação é a elaboração da lei de cadastro, que deverá estabelecer:
 

    • adoção da parcela como unidade territorial do cadastro: a ausência desde conceito já traz problemas para um importante passo do cadastro brasileiro, a Lei 10.267/2001, que estabelece o georreferenciamento de imóveis rurais para fins de registro. A existência de diferentes conceitos de imóvel tem sido um entrave à aplicação da lei. Enquanto para fins fundiários o imóvel é definido por destinação, para fins tributários o imóvel é definido por localização, se em áreas urbanas ou rurais. Para fins fundiários, admite-se a descontinuidade do imóvel, desde que a sua exploração econômica seja uniforme. Para fins de registro, esta descontinuidade não é admitida. Se a unidade for a parcela, cada instituição pode manter seu próprio conceito de imóvel, resultado de uma composição específica de parcelas.
 

    • conteúdo mínimo do cadastro: para cumprir funções multifinalitárias, o cadastro deve disponibilizar informações oficiais mínimas, relativas a cada parcela, relativas a informações geométricas: localização e dimensões da parcela; legais: proprietário, direitos e obrigações; uso do imóvel: urbano, rural, comercial, residencial, etc...; valor do imóvel.
 

    • definição de um órgão responsável pelo estabelecimento dessas diretrizes, um órgão de cadastro.
 


Administração do cadastro

Propõe-se que a administração do cadastro seja descentralizada, e orientada pelas diretrizes nacionais definidas através da lei de cadastro. Escritórios estaduais de terra deverão ser responsáveis pela normatização dos processos e metodologias a serem adotadas em cada estado, de acordo com necessidades regionais. Muitos estados já possuem institutos de terra, que atualmente atuam apenas em áreas rurais. Sua atuação deverá ser estendida para áreas urbanas. O estabelecimento e manutenção dos bancos de dados cadastrais devem ser de responsabilidade das administrações locais. O quadro a seguir resume a proposta de reforma administrativa.

Tabela

Integração com o registro de imóveis

Várias das funções multifinalitárias do cadastro descritas anteriormente serão atendidas apenas se for estabelecida uma forma sistemática de integração entre cadastro e registro de imóveis. Como, no Brasil, os sistemas funcionam com administrações e funções distintas, esta condição deve ser mantida. Deve ser estabelecido para imóveis urbanos um intercâmbio sistemático de informações entre cadastro e registro, nos moldes do que já foi estabelecido para áreas rurais, através da Lei 10.267/01. Este intercâmbio não é difícil de ser obtido, havendo alguns exemplos de aplicação em algumas cidades brasileiras, sempre com resultados positivos.

Questões técnicas

Na definição dos aspectos técnicos do cadastro, que determinam de forma importante o seu custo de implantação e manutenção, não se pode deixar de lado as características de cada região. Por esse motivo, esta proposta considera que as normas técnicas devem ser definidas pelo órgão estadual. Estas normas devem contemplar os seguintes aspectos:

Identificação da parcela: O modelo a ser adotado para a identificação da parcela dependerá do nível de informatização do cadastro. Naqueles municípios onde não há nenhuma informatização, a identificação em termos de centróide, por exemplo, não fará sentido. A localização do imóvel dentro da quadra tem sido suficiente nesses casos. A norma deve, assim, determinar padrões para cada tipo de identificação possível. O mais importante é que todos os usuários identifiquem a parcela através de uma chave única de acesso.

Padrões para o levantamento cadastral: As normas devem prever a utilização de novas tecnologias, mas também definir níveis de precisão para a coleta de dados por métodos tradicionais. Padrões de precisão para o levantamento de imóveis urbanos e rurais devem ser determinados.

Padrões para o mapeamento cadastral: Independentemente do nível de tecnologia utilizada, devem ser definidos padrões mínimos para a elaboração do mapeamento cadastral, como conteúdo mínimo da carta.

Métodos de avaliação imobiliária: O Brasil já dispõe de normas técnicas para a realização de avaliação de imóveis. As normas técnicas cadastrais devem, no entanto, exigir a aplicação dessas normas de avaliação para a obtenção do valor do imóvel, adotando-se os métodos de avaliação adequados a cada realidade. Para grandes cidades, estas metodologias estão bem definidas. Para cidades sem uma estrutura mínima e onde a dinâmica imobiliária é quase inexistente, no entanto, deve-se definir o tipo de procedimento a ser utilizado.

*Profª Andrea Flávia Tenório Carneiro é professora da Universidade Federal de Pernambuco – Convênio de Cooperação Técnica UFPE/IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. 



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