BE2230
Compartilhe:
Direito registral comparado
No modelo francês, o registro é mais fraco
Mônica Jardim*
Nos sistemas jurídicos nos quais a constituição ou transmissão dos direitos reais não ocorre com base no mero acordo de vontades das partes, dependendo da verificação de um modo (ato de execução do acordo de vontades previamente firmado, por exemplo, a tradição da coisa e o registro), a situação jurídica dos bens é suscetível de ser facilmente conhecida por parte dos terceiros.
Mônica Jardim em aula proferida em Tiradentes, MG em 27/9/2005.
Acontece que o Direito francês, desde 1804, consagra um sistema de título e, portanto, a transferência da propriedade e a constituição de outros direitos reais realizam-se por mero efeito do consentimento das partes (conforme os artigos 1138 e 1583 do Código Civil). Por isso, a transferência da propriedade é, em princípio, ignorada pelos terceiros – sobretudo quando a coisa fica (por exemplo, até ao pagamento do preço) nas mãos do vendedor que a pode ceder a um segundo adquirente, ao qual será, posteriormente, oposta à primeira aquisição, o mesmo ocorrendo em relação à constituição de um direito real menor (por exemplo: uma servidãonon aedificandi ) que é, em regra, ignorada pelo subadquirente do direito de propriedade.
Tentando obviar a estes inconvenientes:
a) No domínio dos bens móveis, a posse é assumida como instrumento de publicidade e entre dois adquirentes sucessivos do mesmo móvel é preferido não o primeiro, mas aquele que tiver obtido a posse da coisa, mesmo que o seu título tenha data posterior, desde que prove que adquiriu a posse de boa fé (artigos 2279, 1 e 1141 do Código Civil) – princípio da posse vale título.
b) Em matéria imobiliária, ao contrário, a posse não confere o direito, conseqüentemente, é necessário que os terceiros sejam informados sobre a situação dos imóveis através de outro meio de publicidade. Tal é conseguido (ou tentado) através do registro, na medida em que a transmissão e a constituição de direitos reais, enquanto não inscritas, são inoponíveis a terceiros.
c) Apublicité foncière (publicidade imobiliária) foi introduzida no ordenamento jurídico francês há longa data e têm sido objeto de evolução permanente.
No entanto, a reforma mais significativa surgiu com o decreto-lei de 4 de janeiro de 1955, posteriormente ampliado por decreto de 14 de outubro de 1955, os quais ainda hoje estão em vigor, apesar de algumas alterações posteriores.
Devido à reforma de 1955 e às disposições complementares posteriores, o sistema deixou de padecer de vícios e defeitos que o faziam alvo de múltiplas críticas, tornando-se digno de uma consideração bem mais favorável.
Características da publicité foncièreatual
1) O registro é efetuado em repartições públicas – dependentes do Ministério das Finanças – com competência territorial delimitada (Bureau des Hypothèques).
2) O registrador, dotado de um estatuto particular, é um agente da administração fiscal.
3) Não se toma o prédio como unidade registral; o registro não é feito por prédios mas por pessoas, que são o fulcro da atividade do conservador.
Não obstante, desde o decreto de 4 de janeiro de 1955, o sistema francês mistura uma publicidade pessoal com uma publicidade real, uma vez que, apesar das inscrições e das transcrições se fazerem a partir das pessoas (do nome das pessoas), uma busca pode ser feita a partir do índice imobiliário relacionado com o cadastro.
4) Não estão sujeitos a registro todos os atos referentes a direitos reais, mas apenas aqueles casuisticamente assinalados pela lei.
5) O registro das hipotecas e dos privilégios faz-se por “inscrição”; o registro de atos e julgamentos é feito por “publicação/transcrição”;
6) A inscrição das hipotecas e dos ônus imobiliários é facultativa e, portanto, quem não a solicite não se sujeita a outra conseqüência para além da inoponibilidade do seu direito em face de terceiros. No entanto, a verdade é que a referida inoponibilidade torna as garantias em apreço inúteis para os beneficiários.
O registro de atos e decisões judiciais é, regra geral, obrigatório, devendo ser requerido dentro de determinado prazo; no entanto, o conservador não pode recusar o registro após o decurso desse prazo e, portanto, o seu cumprimento não é condição legal para o registro.
7) A falta de realização do registro gera conseqüências diversas consoante os casos: inoponibilidade; impossibilidade de registrar um ato posterior, responsabilidade civil, inadmissibilidade do pedido em certas ações judiciais, etc..
8) O funcionário encarregado do registro não faz a prévia qualificação do ato, limitando-se a examinar os requisitos que lhe são extrínsecos e fá-lo somente de acordo com as regras dapublicité foncière. Não vigora, assim, neste sistema, o princípio da legalidade.
9) O registro não gera qualquer presunçãoiuris tantum de exatidão do seu conteúdo: o que é conforme com a modalidade da sua execução, a qual, envolvendo apenas um controle formal dos títulos não pode, mesmo por via da presunção, atestar a existência do direito na esfera jurídica do titular aparente. Conseqüentemente, o registro apresenta uma fraca força probatória, impedindo que o sistema consagre o princípio de legitimação.
10) A publicidade serve, apenas, para informar terceiros sobre atos já ocorridos e para solucionar conflitos entre titulares de direitos reais concorrentes sobre o mesmo imóvel; por isso, a conseqüência para a falta de publicidade é, em regra, a inoponibilidade.
O registro não é condição de existência ou de validade do ato; ele não é pressuposto para que ocorra a constituição ou transmissão do direito cujo fato aquisitivo é publicado; ele não expurga os eventuais vícios de atos inscritos, conseqüentemente, o registro não garante o adquirente contra o risco de vir a sucumbir em face doverus dominus. Mas o registro é condição de oponibilidade do ato em face de terceiros (para efeitos de registro), protegendo, assim, o titular inscrito perante terceiros que não hajam registrado direitos conflitantes adquiridos anteriormente e cumprindo, nessa medida, o seu papel de instrumento de informação e proteção, que assegura a prevenção de conflitos.
11) Está consagrado, obviamente, o princípio da prioridade;
12) Vigora o princípio denominado deefeito relativo da publicidade, nos termos do qual, nenhum ato ou julgamento pode ser publicado no álbum imobiliário "se o título do disponente ou anterior titular não tiver sido previamente registrado" (artigo 3, al. 1 do decreto de 14 de janeiro de 1955). E todo o documento depositado, quer com o intuito de inscrever uma hipoteca quer com o intuito de publicar outro ato ou julgamento, deve conter uma referência (data, volume e número) ao registro de que foi objeto o título do disponente ou anterior titular do direito (artigo 33 do decreto de 14 de outubro de 1955). Desta forma, assegura-se uma publicidade contínua, ou seja, o conhecimento de toda a cadeia de transmissões que afetaram o imóvel e a cadeia dos sucessivos titulares de direitos.
13) Como a publicidade imobiliária não oferece plena segurança aos adquirentes, tal segurança apenas é obtida, em definitivo, através do instituto da prescrição aquisitiva ou do usucapião.
*Mónica Jardim é Mestra em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. É membro do Conselho Editorial do Irib. O texto foi publicado na Revista do SFI, publicação oficial da Abecip. Edição 21, 2005, p. 32-33.
Últimos boletins
-
BE 5811 - 17/04/2025
Confira nesta edição:
IRIB suspenderá atividades até o dia 22 de abril | 50ª edição do Encontro Nacional do IRIB debaterá aspectos da reforma do Código Civil | Transformação digital no atendimento e na gestão amplia eficiência e acessibilidade de serviços extrajudiciais | Missão Índia: ONR participa de encontro internacional para impulsionar transformação digital nos Cartórios brasileiros | Caravana da Reurb Nacional realizará edição especial em Manaus/AM | Clipping | Encontro Convergência 2025: faça sua inscrição para a 21ª edição! | XVIII Congresso Notarial e Registral do Estado do Pará | Os 45 anos da lei 6766/1979: Passado e futuro – por Kelly Durazzo | Jurisprudência do TJRS | IRIB Responde.
-
BE 5810 - 16/04/2025
Confira nesta edição:
Ratificação de imóveis rurais em faixa de fronteira: assunto será debatido na 50ª edição do tradicional Encontro do IRIB | Imóveis com inundações periódicas poderão ser isentos de ITR | TJPA promove curso “Solo Seguro: A Importância da Regularização Fundiária Urbana nos Municípios” | TJRR realiza sorteio de Serventias Extrajudiciais vagas para candidatos negros e PCDs | Clipping | Encontro Convergência 2025: faça sua inscrição para a 21ª edição! | Biblioteca: Regularização Fundiária: Experiências Regionais – obra publicada pela Livraria do Senado contém temas que serão abordados no L Encontro do IRIB | XVIII Congresso Notarial e Registral do Estado do Pará| A responsabilidade pelo pagamento da despesa propter rem do imóvel entre a arrematação e a imissão na posse – por Sâmla Campissi | Jurisprudência do TJMG | IRIB Responde | FAQ – Tecnologia e Registro.
-
BE 5809 - 15/04/2025
Confira nesta edição:
Georreferenciamento será um dos temas do L Encontro do IRIB | Débitos relativos ao ITR poderão ter prazo máximo de pagamento ampliado | "Registro para Todos": mais Prefeituras de Municípios maranhenses aderem ao programa | "Novos Lares, Novos Olhares": Notária de Salvador/BA contrata primeira jovem de Casa de Acolhimento | Cartório TOP: não perca live sobre o módulo Planejamento do programa de capacitação | XVIII Congresso Notarial e Registral do Estado do Pará | Morosidade da Justiça em meio às disputas de posse e propriedade de terra – por Alex Sandro Sarmento Ferreira | Jurisprudência do TJES | IRIB Responde.
Ver todas as edições
Notícias por categorias
- Georreferenciamento
- Regularização fundiária
- Registro eletrônico
- Alienação fiduciária
- Legislação e Provimento
- Artigos
- Imóveis rurais e urbanos
- Imóveis públicos
- Geral
- Eventos
- Concursos
- Condomínio e Loteamento
- Jurisprudência
- INCRA
- Usucapião Extrajudicial
- SIGEF
- Institucional
- IRIB Responde
- Biblioteca
- Cursos
- IRIB Memória
- Jurisprudência Comentada
- Jurisprudência Selecionada
- IRIB em Vídeo
- Teses e Dissertações
- Opinião
- FAQ - Tecnologia e Registro
Últimas Notícias
- 50ª edição do Encontro Nacional do IRIB debaterá aspectos da reforma do Código Civil
- Cédula de Produto Rural. Alienação fiduciária – garantia – diversos credores.
- Retificação administrativa de área. Interessado – cônjuge – assinatura. Regime de bens – separação absoluta – exceção.