BE2203

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Direito civil e registro – diálogos abertos


O Professor Doutor Sergio Llebaría Samper é professor titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Ramon Llull - ESADE, em Barcelona. É um civilista, que eu não conhecia, mas que foi muitíssimo elogiado pelo colega espanhol Nicolás Nogueroles, e me pareceu realmente um grande civilista. Além de bom civilista, pareceu ser um civilista preocupado com as questões registrais, razão pela qual resolvi entrevistá-lo. Eis aí o resultado. (Leonardo Brandelli, registrador de imóveis de Jundiaí, SP).

Leornardo Brandelli: Qual é a importância que tem o direito registral imobiliário para um civilista?

Sergio Llebaría Samper: Os civilistas vêm sempre redefinindo o âmbito e a natureza do Direito Civil, seguramente para tratar de explicar esses fenômenos de emancipação (muitas vezes não lograda) de matérias que originalmente pertenciam ao seu âmbito. Uma delas foi o Direito Imobiliário Registral. Porém, da posição de um civilista, creio que a febre pretensamente emancipadora que rondava este último se diluiu. O Direito Imobiliário Registral é Direito Civil, e sua importância está em consonância com o grau de útil aporte que a este proporciona: confiança, segurança no tráfico jurídico imobiliário e, a partir daí, fomento do crédito territorial, garantia financeira e eficácia econômica.

LB: Na Espanha existe um dos registros imobiliários mais desenvolvidos do mundo, seja em seu aspecto teórico, seja no aspecto prático. Há uma preocupação acadêmica com a formação dos alunos para que conheçam a importância do registro e para que possam manejar o sistema registral na proteção dos direitos subjetivos?

SLS: Certamente há uma preocupação acadêmica, em nossa Universidade Ramon Llull, elevada a autêntico compromisso. Pelo dito anteriormente, se nossos alunos desconhecem o Direito Imobiliário Registral, isto prejudicará direta e gravemente sua formação civil e privada em geral. Também é certo que esta preocupação não é, na Espanha, igual em todos os planos de estudo das distintas Faculdades. Contrariamente ao que defendo, em algumas delas o Direito Imobiliário Registral foi marginalizado, foi convertido em disciplina optativa; somente algumas pinceladas são dadas nos conteúdos obrigatórios, e apenas há um rigoroso controle docente. É o primeiro passo para que esta matéria se atomize, logo de relativize, e, finalmente, se a desconheça. Felizmente na Faculdade de Direito da ESADE, onde sou professor, foi pouco custoso convencer-se da grande importância que o Direito Imobiliário Registral tem no tráfico jurídico moderno.

LB: A propriedade imobiliária sofreu uma profunda evolução no Século XX. O direito absoluto cedeu lugar a um direito relativo, voltado à sua função social e aos interesses não-proprietários. Em razão destas mudanças, como deve ser a atuação do registrador da propriedade imóvel? Que função jurídica e econômica tem o registro a cumprir?

SLS: A função social da propriedade, reconhecida no artigo 33 de nossa Constituição (ainda que já viesse sendo reconhecida antes), tem como expresso limite o respeito ao conteúdo essencial ao direito (que é, antes de tudo, privado). Quer dizer, não se autoriza um esvaziamento do direito a ponto de torná-lo irreconhecível ao seu titular. A partir daqui, e em relação à função dos Registradores, duas questões surgem. A primeira nos leva à discussão sobre a extensão destafunção social: deve estender-se a todo o direito subjetivo, ou aos direitos subjetivos reais, ou somente ao direito de propriedade? A segunda questão faz referência a sua utilidade: estamos ante um princípio geral de direito (positivado) e, como tal, e segundo nosso ordenamento, cumpre um papel informador e subsidiariamente normativo. Assim, a função social não somente está dirigida ao legislador. Nessa dupla função, quando proceda, também está dirigida aos intérpretes e aplicadores do direito e, portanto, aos Registradores da Propriedade.

LB: A Espanha tem um direito de propriedade imóvel bastante seguro e definido. Porém, no início do século passado, havia a situação da propriedade informal, não tão segura, e cujas hipotecas não resultavam tão eficazes para reduzir os juros bancários, situação que temos hoje em países em desenvolvimento, como o Brasil. Qual foi, em sua opinião, a motivação jurídica determinante para esta mudança na Espanha? O Registro tem algum papel a cumprir neste desenvolvimento do direito de propriedade?

SLS: Sem dúvida. A satisfação do direito de crédito é o final feliz com que sonha todo credor. Se não encontra um sistema que lhe assegure esse final mais ou menos feliz, irá buscar uma rentabilidade compatível com o risco que assuma, coisa que, às vezes, obtém recorrendo a uma elevação dos juros. Por tanto, um sistema que outorgue segurança na propriedade imobiliária é um sistema que proporcionará tranqüilidade. Porém, isto não basta. É preciso que o Direito civil assuma seu papel de árbitro no uso da autonomia privada, sendo generoso, e ao mesmo tempo prudente, na criação, pelos particulares, de garantias que assegurem o crédito. Outrossim, as leis processuais (e sua execução), devem ser claras, ágeis, e proporcionar uma rápida resposta para o credor lesado, sem sacrificar os direitos do devedor ou garante. Tudo sem esquecer o devido controle e fiscalização que a Administração deve realizar, sob um estrito princípio de responsabilidade de todas as entidades que intervêm no mercado creditício e financeiro.

LB: O princípio da dignidade da pessoa, consagrado pelo direito, e que coloca a pessoa no centro do ordenamento jurídico, inclusive o civil e o registral, tem a conseqüência de mudar a atuação do Registrador Imobiliário? Colocar a pessoa (e não mais a propriedade) no primeiro plano, diminui a importância do registro da propriedade, ou dá a ele um novo contorno e relevo?

SLS: O direito em geral, e em particular o Direito civil, sempre considerou a pessoa como centro do sistema: uma verdade que foi tão obvia que, em algumas passagens históricas, se chegou a margear. Na Espanha esta consideração personalista restou elevada graças à Constituição de 1978, onde foram reconhecidos certos direitos da pessoa como “fundamentais”. Isto teve maior transcendência, por exemplo, no Direito de família do que no patrimonial, porém sua vigência neste não pode passar despercebida. O princípio da legalidade a que estão submetidos os Registradores em sua qualificação significa que, como intérpretes do direito (legal e convencional), devem também zelar no âmbito de suas funções pelo respeito aos direitos da personalidade, máxime se gozam destatus constitucional (já assim agem; por exemplo, o princípio da publicidade formal fica sempre subordinado às exigências derivadas do respeito à intimidade das pessoas).

LB: Diante das novas formas de contratação e das novas tecnologias, que papel deve exercer o registro da propriedade?

SLS: Primeiramente, adaptar-se a elas. O registro é útil por sua funcionalidade, pelo que não se poderia compreender um registro que por não adaptação erigisse obstáculos onde as novas tecnologias tendem a eliminá-los. Quanto às novas formas de contratação, creio que estas vêm se caracterizando pelo distinto modo de contratar em relação às formas tradicionais, e, assim, o controle deve ser mais de fundo, quer dizer, deve-se tratar de que neste outro modo de contratar resultem igualmente protegidos e enaltecidos os princípios e valores que, ainda que se diga o contrário, presidiram e presidem nosso sistema contratual e de intercâmbio de bens e serviços. Neste empenho, é a legislação que deve dar o primeiro passo, algo que já está acontecendo, com luzes e com sombras.

LB: Na sua opinião, qual a importância do princípio da fé pública registral para a garantia do direito de propriedade? A consagração deste princípio em países que, como o Brasil, não o têm, pode melhorar o trato do direito de propriedade?

SLS: Pouca dúvida resta! Apostar no princípio da fé pública registral, em sua máxima expressão, supõe preferir a proteção da confiança na segurança (proteção do terceiro adquirente de boa fé), ao valor da legitimação extra registral (conceptualismo jurídico). O primeiro gera confiança, reduz os conflitos, e agrega solidez ao sistema, sempre que aquela segurança normativa e institucional contenha fissuras.



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