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Força Estranha
João Baptista Galhardo*


O Kio era um amigo de infância. Fazia parte da turminha de dez e onze anos de idade. Na realidade seu nome era Kiochi, filho de japoneses. Embora gordinho, era esperto, jogava bem futebol. Chutava com os dois pés. Andava de patinete. Era ágil na bicicleta.

O pai, senhor Takeo, não falava muito, mas demonstrava alegria quando íamos visitar o amigo. Nessas ocasiões, o pai nos mostrava a sua habilidade com a arte da dobradura de papel – o “origami”, originalmente orikami (ori – dobrar – kami – papel).

Ele colocava sobre a mesa pedaços de papel, de cores diferentes, todos quadrados e sem cortes. Quadrado e sem cortes, embora não absolutas, são as duas regras básicas do origami.

E ali, para nossa alegria, com destreza descomunal, ele fazia flores, aves, bichos, barcos. Para cada peça que formava dava uma explicação. Quando fazia um sapo, dizia que este representava a fertilidade e o amor. A tartaruga a longevidade.

Ensinava, também, seus nomes em japonês. Dizia que o origami favorece a concentração e paciência, além da satisfação de criar formas com apenas um pedaço de papel. Ganhávamos barquinhas, que ficavam dobradas nos livros e cadernos, para serem colocadas na enxurrada por ocasião das chuvas.

D. Fumiko, mãe de Kio, e a sua irmã Fujika, também gostavam da nossa presença. D. Fumiko me ensinou que se toma chá em xícara fina sem asa para não queimar a língua: “Se os dedos suportarem o calor, pode-se levar à boca despreocupado”.

Kio fazia aniversário no feriado de 7 de Setembro. Era o único amigo que dava festa.

Juntamos dinheiro, fomos à Papelaria Neide e lhe compramos de presente uma caixa de lápis de cor, face dupla, que mandamos embrulhar num papel de seda. No dia, lá pelas cinco da tarde, fomos à sua casa para o aniversário.

Quando nos aproximamos vimos um grande movimento. Gente entrando com presentes nas mãos e outros saindo com semblante que não era de festa. Já na porta da casa nos contaram que enquanto a mãe fazia doces, salgadinhos e o bolo de aniversário, Kio foi de bicicleta com um amigo mais velho, nadar num tanque perigoso pelos lados da estrada de rodagem e morreu afogado.

O mundo caiu sobre nossa cabeça. Entramos. Naquele tempo se velava em casa. Kio no caixão, com sua roupa branca da primeira comunhão. Não se ouvia qualquer barulho. Não havia choro. Não havia lágrimas. Ninguém conversava. O silêncio era eloqüente. Todos eram recebidos por d. Fumiko. Não se abraçavam. Não se apertavam as mãos. Ela, apenas de mãos juntas, balançava o corpo para frente numa reverência. E quando lhe entregavam presentes para o aniversariante, ela desembrulhava e colocava carinhosamente dentro da urna funerária, para que ele levasse consigo. Chuteiras, um par de suspensórios, uma camisa de futebol, meias, um livro de histórias...

Encostamos na parede e também em silêncio, assistíamos o que se passava. Aquela quietude dizia muita coisa que não compreendíamos. E eu com a caixa de lápis de cor segura pelas mãos nas costas. A sala encheu de gente. Fui praticamente empurrado para a cozinha, passando por uma cortina feita com pequenos pedaços de bambu. E ali deu para ver, cobertos por uma renda branca transparente, os doces, salgados e o bolo do aniversário.

Era um campo de futebol, com gramado verde e traves. Quando o povo dispersou para o quintal e calçada, nos aproximamos de D. Fumiko e entreguei o nosso presente. Antes de nos reverenciar, pendendo o corpo para frente, ela me fitou por alguns instantes sem dizer nada. Tirou o papel de seda e colocou a caixa entre o peito e o braço esquerdo do Kio, bem perto do coração, olhando para nós, querendo no silêncio dizer como fomos importantes para seu filho. Eu não entendia de onde vinha aquela força estranha, contagiante e acalmadora. Tive vontade de chorar, mas não chorei quando o sr. Takeo colocou no caixão um “tsuru”, uma cegonha de papel dobrado, símbolo da sorte e da felicidade.

Em que Deuses se escoraram para suportar aquela dor, com tanta serenidade? Não sei. Nunca soube. Já estava escurecendo. Fomos embora. Sem trocar palavras, em silêncio, cada um para sua casa. Naquela noite, numa oração de boca fechada pedi aos Querubins e Anjos da Guarda que acompanhassem o amigo, já que foram tão incompetentes na sua proteção.

Na próxima chuva colocamos na enxurrada as últimas barquinhas. Quietos, acompanhamos até perdê-las de vista. Deveria haver um Dicionário do silêncio. É verdade... Dicionário do silêncio.

*O autor é registrador imobiliário, diretor do Irib e escreve no Jornal de Araraquara



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