BE1992

Compartilhe:


XIV  Congresso do Cinder, de Moscou, Federação Russa, em 2003

Relaçãodoregistrodapropriedadecomoutrasinstituições
Judicatura e administração tributária
Germán Rodríguez López *


Sumário

Introdução    I. O    registro  da  propriedade    como    instituição    a)    Finalidades  da  instituição  registral   . b)    Seu  enquadramento na  administração  do  Estado   . c)    Direito  registral  imobiliário  ;  Direito  processual;  Direito    administrativo  ;  Direito    fiscal   . II. O procedimento registral . A qualificação . III. A qualificação do    documento    judicial  e do  administrativo   .

Introdução

A relação que o registro da propriedade mantém com a administração da Justiça e com a fiscal não pode se entender senão partindo do conhecimento que se tenha da função registral. Essa, como controladora da legalidade dos atos e negócios jurídicos que procuram o amparo do registro, confronta-se com o ato administrativo – bem como o fiscal – e com o Judiciário; portanto, seu    fundamento não difere do controle que se exerce sobre o negócio concluído entre particulares e modelado no documento público notarial ou privado.

A tarefa de qualificação, como expressão do princípio de legalidade, deve ser “única” como se depreende do artigo 18 da Lei Hipotecária espanhola; outra coisa suporia abrir o registro a atos nulos ou anuláveis e dar-lhes os efeitos erga omnes que o assento produz, com a insegurança a respeito do terceiro que isso provocaria. É diferente o caso em que, salvo aquele fundamento , a resolução judicial ou a administrativo-fiscal, por trazerem intrínseca a executividade e já garantirem seus efeitos inter  partes , sejam objeto de uma qualificação restringida ao controle daqueles aspectos cuja falta só podem prejudicar o terceiro. É a essa restrição que se referem os artigos 99 e 100 do Regulamento Hipotecário. Por isso, excluem o exame registral da “ validade  do  ato ” e da “ capacidade  do  outorgante ”.

A primeira, pela presunção legal de que todo ato judicial ou administrativo traz consigo. A segunda, porque, à margem da falta de competência, que certamente é qualificável, a capacidade jurídica e de realizar da autoridade judicial ou administrativa no exercício de suas funções também está legalmente reconhecida (art. 117.3 da Constituição espanhola ou 57, da lei 30/92, de 26-11, do Regime Jurídico de Administrações Públicas e Procedimento Administrativo Comum, RJAP).

Pelo exposto, este trabalho pretende dar uma visão genérica daquilo que a tarefa registral significa na sua relação com o âmbito judiciário e com o administrativo em geral, uma vez que a especificação “ tributaria ”, à margem de algumas referências concretas (art. 26, RH), não apresenta mais singularidade do que a procedimental, mas não deixa de ser uma manifestação do ato administrativo em geral, no qual a administração atua revestida de imperium e à qual o registrador qualificará de maneira igualmente essencial à do resto dos atos administrativos, inclusive os judiciais, quando se trate de procedimentos executivos.

É por essa razão que o exame da qualificação do documento administrativo e judicial, sobretudo pela extensão deste àquele, que vai configurar o epicentro deste trabalho, pois se parte da concepção do registro e do registrador em nosso sistema como uma instituição e um funcionário totalmente independentes e não subordinados, na sua tarefa, à decisão de outros órgãos da administração, quando se trate de determinar o acesso ao registro daqueles atos que pretendem precisamente estar sob a salvaguarda dos tribunais.

I. O registro da propriedade como instituição

Já no I Congresso de Direito registral (Buenos Aires, 1972), apresentou-se como ata de fundação, aquilo que se denominou Carta de Buenos Aires , subscrita por oito países europeus e 14 americanos, e que foi uma declaração de princípios na qual se manifestava “a conveniência da formulação universal dos princípios do Direito Registral, admitidos pela doutrina, ainda que não fossem coincidentes com os textos positivos das legislações”.

O caminho percorrido desde então tem sido longo, porém, destacaremos como introdução ao conteúdo desta exposição a conclusão do V Congresso (Roma, 1982 ), que situa a função registral como um tertium genus entre a judicial e a administrativa, pelas conseqüências que deste enfoque derivam para a amplitude  e  independência  da qualificação registral,  que  tipifica o  encarregado  dos  registros    jurídicos  de  bens    como    profissional  do  Direito    independente  na  sua  qualificação,  tanto    em    face  da  autoridade    judicial    quanto  da  administrativa .

Como instituição, o Registro da Propriedade tem como objetivo fundamental dotar de forma pública e solene os atos de constituição, transmissão, modificação e extinção do domínio e de direitos reais sobre imóveis. De tal modo que a publicidade registral tende a manifestar um fato, ato ou situação jurídica relativa aos bens imóveis e ao tráfico imobiliário.

Ou seja, o Direito imobiliário registral utiliza o registro da propriedade como instrumento de publicidade. A exposição de motivos da LH, de 1861, por sua vez, assinalava que: “(...) sem negar que os Registros da Propriedade e de Hipotecas possam e devam vir em auxílio da Administração nas árduas tarefas que para o benefício público lhe sejam encomendadas, acredita – a comissão  – que isto deve entender-se sem prejuízo dos princípios de justiça e sem desnaturar os Registros, desviando-os de seu verdadeiro objetivo, que é melhorar as condições do propriedade imóvel, assegurar o crédito territorial e pôr limite a fraudulentos enganos. Sair desse terreno, considerar os Registros principalmente como um censo da riqueza imóvel, dar intervenção direta neles à Administração, conduz irremediavelmente a desconhecer seu caráter social, econômico e civil, e sacrificar o principal ao acessório” (Exposição de motivos da Lei Hipotecária, EMLH, 1861).

a)Finalidades da instituição registral

O registro da propriedade consolida-se, assim, como um instrumento para a segurança jurídica dos direitos e do tráfico jurídico imobiliário. Essa segurança jurídica transfere-se para a sociedade como uma exigência a ser cumprida mediante o Direito. Este deve oferecer as soluções que levem à constituição de um sistema estruturado de “certeza ordenadora” que permita, por um lado, depositar nele um mínimo de confiança e, por outro, proporcionar as garantias que o protejam (Luis J. A. Dominguez, Registro  da  Propriedade  e  Administração    Pública ).

E é, precisamente, uma dessas soluções que oferece o ordenamento jurídico, o registro da propriedade, que fica assim estruturado como uma instituição que encarna um sistema de segurança, em face das possíveis perturbações que tanto o indivíduo como a sociedade possam sofrer em suas propriedades.

Dessa forma, a segurança nas relações jurídicas com transcendência real imobiliária provém do caráter público dos livros do registro, assim como da presunção de veracidade resultante de seus assentos, com base no princípio da legitimação registral, que estabelece a dupla presunção da certeza e da exatidão dos assentos registrais, e a existência e subsistência objetiva do direito inscrito e sua correspondência com o titular assinalado na inscrição.

A publicidade registral constitui, portanto, um aspecto a mais dentro do conceito amplo de segurança jurídica que se ergue como uma das finalidades fundamentais do Direito em geral, e que encontra seu reconhecimento constitucional no artigo nono, n  o  3, da Constituição espanhola.

Definitivamente, a publicidade registral oferece tanto a segurança    estática do direito subjetivo, como a dinâmica do tráfico jurídico e imobiliário, ambas constitutivas da dimensão “segurança jurídica”, que se ergue como um princípio essencial do ordenamento jurídico e de cuja efetiva realização são responsáveis últimos os poderes públicos, nesse caso, mediante a instituição  registral .

Diz Mezquita Del Cacho que no caso de acontecer uma colisão, “os modernos direitos positivos preferem subordinar o direito subjetivo à segurança do tráfico, em favor daqueles que, de boa fé, confiaram nos mecanismos institucionais da certeza”. Definitivamente, o registro da propriedade reporta um valor social que se exterioriza na segurança jurídica, individual e coletiva, pois aquele não só afiança o direito individual, mas também, obviamente, o interesse coletivo (J. A. Dominguez, op. cit,).

b)Seu enquadramento na administração do Estado

Lasarte assinala que o artigo 149.8 da Constituição espanhola, quando fala da “ordenação dos Registros e Instrumentos Públicos”, atribuindo-os à competência estatal, não pode entender-se limitado ao registro da propriedade, “(...) mas deve-se entender igualmente aplicável aos demais Registros e Instrumentos Públicos”.

Isso não quer dizer que as comunidades autônomas (CCAA), no âmbito de suas respectivas competências, não possam regular o reflexo registral da questão substantivamente fixada (Pretel).

No caso do urbanismo, diz Cabello de los Cobos que, se bem as competências correspondam às comunidades (art. 148.1.3  o  , CE) e, em matéria civil comum, notarial e registral ao Estado (art. 149.1..8  o  , CE), isso não significa que aquelas não possam ditar normas que, “destinadas a reforçar a proteção da legalidade urbanística, incidam na atividade dos Registradores, sempre que isso não derive numa extra-limitação da sua competência”.

Dessa maneira, é preciso assinalar que em quase todos os estatutos de autonomia incluem-se referências aos registros da propriedade ao falar da administração de Justiça, se bem que o tribunal constitucional (St. 56/90 de 29-3) já se encarregou de manifestar que uma coisa é a “Administração de Justiça” (competência exclusiva do Estado), à qual identifica com o “Poder Judiciário”, e a outra, “a administração da Administração de Justiça”, na qual as comunidades autônomas poderão assumir certas competências. Com base nessa sentença, e respeitando com exclusividade a competência estatal em matéria de: elaboração de normativa sobre registros; gestão do pessoal encarregado; e direção e inspeção dos registros, corresponderia unicamente às comunidades autônomas determinadas competências executivas ou de informe, que se concretizariam em propostas na fixação das demarcações e nomeações, sem intervir na fase de seleção.

Tudo isso não deixou de originar alguns conflitos de competência apresentados diante do tribunal constitucional da seguinte maneira.,

1. Demarcações : (St. 97/89, de 30-5). Declara que o título de competência aplicável nessa matéria é claramente determinado pelo artigo 149.1.8  o  , CE, que atribui ao Estado a competência exclusiva em matéria de ordenação de registros. Reconhecendo, não obstante, às comunidades autônomas sua participação na elaboração dos informes correspondentes.

2. Nomeação de  registradores (St. 56/1984, de 7-5). Também aqui o TC, como já foi dito, limita a competência autonômica da expressão “nomeação” à “concreta designação para o exercício da função em um lugar determinado”, sem incluir o processo de seleção nem o ato final no qual se outorga a uma pessoa a condição de funcionário.

Definitivamente, em face do critério de máxima simplicidade que o modelo clássico de federalismo oferece, no qual se estabelece uma lista de matérias de competência exclusiva do Estado, correspondendo as não-incluídas aos estados-membros (art. 85, Constituição suíça), estabelece-se o modelo contrário representado pela fórmula italiana na qual se enumeram as matérias que são de competência dos entes autônomos, correspondendo ao Estado central todas as não-incluídas. E, entre uma e outra, achar-se-ia o modelo mais elaborado do federalismo alemão, que enumera tanto as competências estatais exclusivas da federação (art. 73, Lei Fundamental de Bonn), junto à relação de competências legislativas concorrentes nos Länders (art. 74, lei citada).

Nossa Constituição apresenta caracteres que a diferenciam das anteriores, estabelecendo duas listas de matérias, uma referente às competências das comunidades autônomas (art. 148, CE, “teto mínimo das competências”), e outra, às do Estado (art. 149, CE); se bem que se deveria falar de uma só lista com alcance permanente e geral – a do 149 –, pois a que se refere às competências autonômicas estabelece um regime que as assume com a condição de serem consideradas como uma possibilidade eventual, que haverão de concretizar os respectivos estatutos de autonomia.

Dessa maneira, diz Garcia de Enterria, é preciso interpretar a reserva constitucional em favor da exclusividade de competências do Estado, no sentido de “ asseguramento dos  elementos  estruturais  básicos    que  sustentam a  construção    inteira  do  Estado    em    seu    conjunto ”.

Seguindo a Parejo Alfonso, podemos assinalar que a função registral é uma função pública de qualificação, registro, certificação e publicidade com relação aos direitos e ao tráfico imobiliário.

A peculiaridade do registro reside na sua construção institucional. A função pública é desenvolvida por pessoal profissional altamente qualificado, e as competências do órgão exercem-se em regime de independência, com atribuição da responsabilidade a seu titular, inclusive nos aspectos que dizem respeito à dotação do cartório registral.

Não compartimos, por outro lado, a opinião do ilustre catedrático sobre o caráter “administrativo” do serviço prestado. A peculiaridade da função qualificadora nos faz inclinar mais a favor da concepção clássica do serviço prestado como ato de jurisdição voluntária e, em todo caso, não entraria no conceito de ato administrativo, dado o juízo que o registrador faz a favor ou contra a prática do assento, o que é estranho à mera decisão administrativa.

Por isso, o registro como instituição mantém uma relação diferente com esses dois poderes do Estado. Com  a  administração , por não deixar de ser uma instituição criada pelo poder do Estado (art. 149, CE) e integrada nela para a proteção de terceiros, do tráfico imobiliário e da publicidade jurídica imobiliária, mas dotada de independência  na  gestão  e na  função  qualificadora do registrador, à qual se submete a própria administração, portanto, subtraída ao princípio de hierarquia que regula os órgãos administrativos. Com  o  poder    Judiciário , como instituição submetida, como todas, à executividade da decisão judicial, mas controlando a legalidade dela no que diz respeito à proteção do terceiro registral, precisamente pela salvaguarda que o próprio tribunal dá ao assento.

Definitivamente, o registro da propriedade apresenta-se em suas relações com a administração e o poder Judiciário como posto a serviço deles e, mediante eles, da cidadania, para garantir a aplicação da proteção registral que o próprio Estado dá aos que nela procuram proteção.

c)Relação do Direito registral imobiliário como Direito processual, administrativo e fiscal

A relação do registro da propriedade como instituição com outros órgãos da administração e com o poder Judiciário não se pode entender senão no contexto da relação do Direito imobiliário registral, enquanto concretamente aplicável à instituição registral, com outras manifestações do conhecimento jurídico, tais como o Direito administrativo ou o processual. Não acontece assim nas relações “institucionais” cujo registro se estende à administração ou ao poder Judiciário. De um lado, por não existir nele uma especialidade jurídica que lhe seja exclusivamente aplicável, salvo o Direito processual modelado nas leis adjetivas procedimentais civis e penais, inclusive as administrativas; e de outro, pela própria natureza da função judicial, que não combinaria com a aplicação excludente ou exclusiva de determinada disciplina jurídica. No referente à administração, pois em suas relações com os administrados ela atua no exercício de seu imperium , sem faculdade mediadora ou arbitral, é parte, em geral, do ato jurídico que pretende seu acesso ao registro.  

1.Direito processual

Diz García García: “A aplicação de certas instituições hipotecárias ao Direito Processual, determina uma ‘especialidade’ da matéria processual, que não poderia explicar-se exclusivamente na perspectiva da Lei de Ajuizamento Civil, senão precisamente essa especialidade produz-se pela aplicação dos princípios e normas hipotecarias, o que revela, em definitivo, que estamos diante de questões  tipicamente registrais , relacionadas com o Direito Processual”.

As referências processuais na Lei Hipotecária derivam em geral do princípio  de  legitimação  registral sancionado nos artigos 38, 97 e parágrafo terceiro, da Lei Hipotecária, com as conseqüências processuais de seu artigo 41 (regulamentado hoje nos artigos 439 e concordantes da Lei de Ajuizamento Civil). E o princípio  de não-oponibilidade dos artigos 32 e 313 da LH, princípios já assinalados pelo Tribunal Constitucional na sentença 9-5-95, que os distingue junto com o de fé pública registral.

Outras manifestações “processuais” na Lei Hipotecária, se bem que hoje estejam integradas na nova LEC, as teríamos nos artigos 129 e seguintes, da LH, na sua relação com os artigos 681 e seguintes, da LEC, e concordantes com o Regulamento hipotecário.

Tudo isso sem prejuízo das múltiplas referências que a LH faz a juízes e documentos judiciais.

Por seu lado, a LEC estabelece múltiplas referências à disciplina do registro da propriedade que, seguindo ao autor citado, poderíamos enumerar: juízo de incidentes; rebeldia; execução de sentenças; matéria sucessória; procedimentos de concursos; embargos preventivos; regulamento do juízo executivo; embargos de terceiro; normativa sobre citações, notificações e intimações; mandados judiciais; ou resoluções judiciais e suas formas.

Obviamente, excede o âmbito e extensão desta exposição entrar nos pormenores da regulamentação específica de todos esses aspectos, mas, como já foi dito, eles não fazem senão confirmar que o exercício do poder constitucional de “julgar e fazer executar o julgado” implica necessariamente a aplicação dos princípios hipotecários e da normativa que os reflete.  

2. Direito administrativo

A relação que em geral vierem a ter o registro da propriedade e o Direito hipotecário com a administração e o Direito administrativo, deriva tanto da utilização que a administração faz do registro da propriedade para dar publicidade às modificações jurídico-imobiliárias que resultam da atuação administrativa, como também da sujeição da própria administração aos princípios hipotecários condensados no princípio da segurança  jurídica amparado pela Constituição, e ao qual o registro da propriedade serve especialmente.

Por outro lado, a relação interdisciplinar entre ramos diferentes do Direito, o privado e o público, é dada pela recíproca sujeição da aplicação de um e de outro aos atos administrativos que pretendem aceder ao registro. Senão vejamos.

a) Em matéria de título    formal , pela autonomia que o documento administrativo tem para seu acesso ao registro (art. 3  o  , LH), sempre que reúna os requisitos formais que para cada ato se requeiram (art. 99, Regulamento Hipotecário), dados os efeitos erga omnes que a publicidade registral concede ao título administrativo. A Direção Geral dos Registros e Notariado (DGRN) já manifestou que a qualificação do documento administrativo situa-se numa via intermédia entre a judicial e a notarial.

b) No referente ao título    material , a capacidade da administração para ser sujeito ativo ou passivo de direitos com transcendência real manifesta-se em matéria de concessões administrativas, expropriações, urbanismo... assim como nas suas faculdades arrecadadoras e impositivas, como veremos a seguir.

As várias legislações patrimoniais do Estado e as comunidades autônomas e entidades locais contemplam do mesmo modo a inscrição de seus bens patrimoniais no registro da propriedade bem como daqueles de domínio e uso público (art. 5  o  , RH), assim como de órgãos públicos estatais, sejam eles autônomos ou público-empresariais; previdência social, domínio público marítimo, etc.

c) É muito importante a qualificação que o registro faz do cumprimento dos requisitos administrativos que, como já foi exposto no VI Congresso Internacional de Direito Registral , se bem que em princípio possa não afetar a validade civil do ato, sempre que ela se dê efetivamente, pode tratar-se de exigências legais qualificáveis que impeçam a validade propriamente administrativa do ato e que não permitam sua inscrição.

3. Direito fiscal

A relação deste ramo do direito com o hipotecário e, portanto, com o registro da propriedade, tem sido tradicionalmente estreita, como diz García García, por ter a repartição registral a encomenda da gestão e arrecadação dos impostos de transmissões patrimoniais e atos jurídicos documentados, sucessões e dações, quer dizer, aqueles que gravam as modificações patrimoniais que, por sua natureza, possam ter acesso ao registro, tendo-se mostrado essa instituição altamente útil aos interesses públicos.

Mas além dessa função gestora, o registro da propriedade é o instrumento que a administração tributária, em particular, usa fundamentalmente como meio de publicidade dos atos e negócios jurídicos que, em seu respectivo âmbito, devem ser conhecidos pelos terceiros, para garantir, como vem sendo dito, o princípio de segurança jurídica. E assim, seguindo o autor citado, temos.  

a)
 Processo  de  execução  fiscal . Da mesma forma que os executivos ordinários ou hipotecários, aos quais o regulamento geral de arrecadação remete-se, desde seu início o processo de execução fiscal se desenvolve relacionando-se com o registro da propriedade; da solicitação de informação sobre bens inscritos, passando pela penhora, pelo débito fiscal (art. 134, Lei Geral Tributária, e 125, Regulamento Geral de Arrecadação), certificação de domínio e impostos, e extensão da correspondente nota marginal (art. 143, RH, relacionado com o artigo 134-2, LGT), até a adjudicação em favor da administração ou terceiro (art. 151 seg., RGR). Seguindo a Marco Mas Rajchwerk ( Anales , III., 1999-2001, Ciddrim), o procedimento de prêmio fiscal apresenta algumas particularidades de procedimento que assinala.

1. Nele, rege o princípio de oficialidade de maneira diferente do processo civil presidido pelo princípio  de rogação (art. 93.3, RGR).

2. É um procedimento exclusivamente    administrativo (art. 129, LGT, e 93, RGR). O autor citado entende que isso salvaria a disposição derrogatória da LEC 1/2000, na medida em que ela afete esse procedimento. Não obstante, entende-se que em vista da finalidade integradora da Lei Processual Civil (Exposição de motivos, lei 1/2000, citada, inciso XVII), ainda que seja pela via da analogia, haverá princípios gerais de execução aplicáveis também ao processo de execução fiscal.

3. Não é acumulável a outros procedimentos de execução nem aos judiciais. Em caso de conflito, em princípio, a autoridade judicial ou administrativa que primeiro penhorou terá preferência. Não obstante, do ponto de vista registral, a prioridade será a do assento e o que nele conste (data do impedimento), sem prejuízo dos embargos correspondentes, a que determinará a prelação.

4. Quanto a terceiros   (art. 171 a 175, RGR), a administração goza do privilégio do “ato prévio” (art. 120, lei 30/92, RJAP), que exige interpor reclamação administrativa antes de estabelecer ações civis sobre as administrações públicas.

5. O processo de execução fiscal tem seu próprio    título    executivo , providência de execução fiscal, com a mesma força executiva que a sentença judicial (art. 127.4, LGT).

b) Garantias  da  administração    tributária . Além das derivadas da publicidade da penhora, podem citar-se a hipoteca    legal    tácita do artigo 194, da LH, relacionado com os artigos 71 seg., da LGT, e 33 seg., do RGR, e a hipoteca    em    garantia  de  pagamentos  aprazados  ou  fracionados .

c) Prioridade    fiscal ,  que sujeita os bens, prioritariamente, ao pagamento do imposto devido pela transmissão patrimonial onerosa ou o ato jurídico documentado (art. 122, Regulamento ITP e de AJD) e sua constância por meio de nota à margem do assento praticado, e igualmente no caso de transmissões gratuitas ou mortis  causa (art. 100, Regulamento do Imposto de Sucessões), e com efeitos de fechamento registral (art. 122, citado).

Haveria que acrescentar a nota de dedicação ao pagamento do imposto de renda de pessoas físicas, no caso de vendas de não-residentes, de acordo com o artigo 18 do Regulamento do Imposto de Renda dos não-residentes (RD 326/99 de 26-2).

d) Igualmente, a necessária coordenação do cadastro-registro da  propriedade , que tem ainda finalidades claramente diferenciadas, em virtude do caráter    jurídico do registro, como sendo o único com efeitos de fé pública (lei 49/2002, de 23-12), permite à administração tributária conhecer as modificações registrais ocorridas e as modificações nos sujeitos passivos do imposto sobre bens imóveis.

II. O procedimento registral. A qualificação

O registrador constitui o elemento pessoal principal da instituição registral, quer dizer, do órgão estabelecido pelo Estado para dar publicidade aos atos com transcendência jurídico-imobiliária.

O encarregado do registro configura-se assim como aquele funcionário público “não-burocrático”, a quem corresponde a qualificação dos títulos apresentados para a registração, e o procedimento ou não da mesma (Enrique Fuentes; Exposições ao IV Cinder, p. 142). Mesa Martin e Lopez-Medel ressaltam esse caráter não-burocrático do registrador, por sua imparcialidade  ,  independência   e   responsabilidade diretas e imediatas que requerem suas decisões.

Lacruz e Sancho acrescentam a esse caráter funcional (art. 274, LH), uma “substância” profissional, de profissional jurista, encarregado de funções públicas de valoração jurídica, mais próprias de um árbitro   imparcial do que de um burocrata a serviço da administração.

Em definitivo, diz Mezquita del Cacho, o estatuto do registrador enquadra-se naquilo que se conhece como “ enfoque    econômico  do  direito ” ou neo-utilitarismo econômico-jurídico. Enquadra-se também naquilo que os teóricos da administração denominam como “organização administrativa especializada” (Santamaría Pastor), que, em nosso caso, poderia ser uma “administração registral”, sediada na Direção Geral de Registros e Notariado, que vem a responder ao moderno desafio que apresenta a heterogeneidade funcional do Estado atual, e à qual atribuem-se as potestades que hão de atuar como pressupostos de sua atividade (Luis J.A. Dominguez). Quer dizer, as “procurações-mandatos de atuação” (Parejo Alonso), que se destinam à organização e que, no caso do registro da propriedade, formariam parte daqueles órgãos destinados à proteção e garantia da segurança jurídica dos direitos e titularidades com transcendência jurídico-real, públicas e privadas, ao tempo em que servem como um meio de apoio e controle das políticas públicas relacionadas com a propriedade imobiliária (Luis J.A. Dominguez).

Por sua vez, Lacruz e Sancho vêem no procedimento registral uma “sucessão regrada de atos (...) através dos quais o Registrador realiza a função e os particulares obtêm a constância registral”.

Gonzalez Perez vê no procedimento registral um procedimento administrativo especial, porém, o próprio autor reconhece que determinar a natureza jurídica de tal procedimento equivale a examinar a própria natureza da função qualificadora do registrador, o que dá ao procedimento registral esse caráter tão especial.

A qualificação

Concebe-se como a “ função    jurídica    determinante  da  inscrição  e  seu    conteúdo ”, se bem que seria mais apropriado falar de função controladora da  legalidade (Antonio Pau), ou, como diz García García, “ o  princípio  de  legalidade  tem  sua    modalidade    fundamental  no  princípio  de qualificação ”, que, por outro lado, constitui uma das notas características dos sistemas  registrais de  inscrição , e ausente nos sistemas de transcrição.

Afirma Gómez Galligo (RCDI n  o  619-1993): “No Direito Registral, qualificar é determinar se o ato ou contrato apresentado ao registro reúne ou não os requisitos exigidos pela lei para sua inscrição”. Quer dizer, a qualificação do título determinará se, no âmbito extra-registral, teve lugar o ato jurídico que suponha a alteração da situação registral.  

Função
 qualificadora que, em termos gerais, se vem configurando como ato de jurisdição voluntária (Gonzalez e Martinez, Morell y Terry, Sanz Fernández, Roca Sastre, García García) ao passo que:

            • é uma função de garantia de direitos privados;
            • é uma função cautelar, sem contencioso entre as partes;
            • tem eficácia erga omnes , se bem que não de “coisa julgada”;
            • faz referência a situações de direito privado – embora, como já vimos, com implicações de Direito público, ao passo que a administração serve-se do registro, em muitos casos, como meio de publicidade das limitações públicas do domínio; e
            • caracteriza-se pela imparcialidade  e  independência do órgão que a exerce com respeito à administração e pela ausência de hierarquia administrativa. 

De qualquer maneira, a qualificação registral somente pode ser compreendida à luz dos princípios constitucionais de segurança    jurídica (art. 9  o  , CE) de legalidade (art. 9  o  e 103, CE) de proteção  dos  consumidores (art. 51, CE) e de unidade  jurisdicional (art. 117, CE) (Gómez Galligo), enquanto instrumento para realizar a exigência constitucional de controle  de  legalidade na contratação imobiliária, em benefício de consumidores e usuários, e, além disso, redundar em beneficio da economia nacional e do sistema financeiro, pois, mediante ela, fortalece-se a confiança nos pronunciamentos registrais e obtém-se, em definitivo, a agilidade do tráfico jurídico e do crédito territorial  sobre uma sólida base de segurança jurídica.

É por isso que os demais profissionais ou funcionários que intervêm na redação do título que pretende seu acesso ao registro exercerão, uns, tarefas de assessoria, e outros, de aplicação da legalidade vigente ao ato ou contrato modelado naquele título, mas só ao registrador corresponde apreciar se estão preenchidos ou não, efetivamente, os requisitos exigidos pelo ordenamento jurídico para a publicidade das relações jurídico-imobiliárias.

Segundo Lacruz, o registrador julga de acordo com os dados que a parte lhe fornece, mas, além disso – e nisso distingue-se do juiz –, com base nos antecedentes que constam no registro. Vem assim o registrador a realizar uma tarefa “aplicativa” do Direito com relação ao ato ou contrato cuja inscrição se pretende, com o propósito de decidir sobre sua validade, eficácia, anulabilidade... (Luis J. A. Dominguez).

Na minha opinião, não é tarefa do registrador decidir sobre a validade ou não do ato contido no documento, mas sobre sua validade registral. O valor que possa ser dado à qualificação depende indubitavelmente do sistema registral adotado. No espanhol, a dualidade dos efeitos civis do ato realizado entre as partes e a respeito de terceiros e, dentro deles, entre o terceiro civil e o hipotecário, determina o conteúdo e eficácia da qualificação ao teor dos efeitos que o acesso ou não do ato ao registro possam supor.

Não há, na realidade, dupla  qualificação , como se vem dizendo, uma por parte do funcionário autorizante do título e outra por parte do registrador (Morell y Terry, Mezquita ...). A aplicação da lei – que a todos incumbe-nos, inclusive à administração –, é exigível ao funcionário autorizante para que o documento autorizado reúna as exigências legais que outorgam validade entre as partes contratantes. Exigências formais e substantivas. Mas ao pretender seu acesso aos livros registrais, com os efeitos erga omnes que a inscrição dispensa, é ao encarregado do registro a quem corresponde controlar  a  legalidade do documento e do ato nele contido, com base não só no próprio documento, como também no que resulte dos assentos registrais, de maneira que a transcendente proteção que o Estado oferece a quem contratou confiado nos pronunciamentos registrais ultrapassa os efeitos exclusivamente inter  partes que o ato jurídico documentado produz, e isso tanto a respeito do documento notarial (art. 1.257, CC), como ao próprio documento judicial ou administrativo.

Se só o registro produz esses efeitos, é lógico que quem vai decidir o acesso possa, num exercício de responsabilidade máxima, controlar  a  legalidade do ato registrável, sem que isso suponha de maneira alguma a “dupla qualificação”, nem revisão da “aptidão legal” do documento, decidida por um outro funcionário, senão a constatação do cumprimento desses e dos demais requisitos legais e registrais para a prática do assento. Não há dupla qualificação, no sentido de duplo controle, mas um controle exclusivamente  registral,  para    que  se produzam os  efeitos  registrais do  ato (art. 101, RH).

III. A qualificação do  documento    judicial  e do  administrativo

Documento judicial

Alvarez Caperochipi diz que o artigo 100, do RH, “consagra uma ampla liberdade qualificadora do documento judicial”, pois, como já expressou o RD, de 3-I-1876, isso se justificava para atender ao objetivo principal da Lei Hipotecária, que era “assentar no sucessivo a propriedade do solo e todos os seus desmembramentos e modificações, sobre bases sólidas e firmes que lhe dessem certeza e segurança ao domínio e aos demais direitos reais por meio da publicidade dos títulos de aquisição que tivessem verdadeiro valor jurídico”. Se bem que, continua o autor, “no marco do respeito à separação de poderes, esta faculdade qualificadora não supõe menosprezo algum às prerrogativas dos tribunais, uma vez que os Registradores, ao qualificarem os documentos judiciais, em cumprimento do dever que lhes impõe a Lei Hipotecária, não  examinam os  fundamentos da decisão judicial cuja inscrição solicita-se, mas se limitam a examinar a natureza do mandado judicial e a do juízo ou procedimento em questão, para apreciar o caráter das mesmas e os efeitos que as leis lhes atribuem, assim como o que resulta dos livros do registro em favor de um terceiro que não tenha sido parte naquele julgamento (...)”.

Não obstante, a faculdade de qualificação deverá exercitar-se naqueles supostos que sejam considerados como omissões ou defeitos nas resoluções judiciais, suspendendo a prática do assento, dado o caráter de convalidação dos atos processuais (art. 214 e 215, LEC 1/2000). Em qualquer caso, é doutrina da DGRN a improcedência de qualificar o fundamento das resoluções judiciais. Caperochipi considera que “a maneira concreta de formular as faculdades qualificadoras dos Registradores frente aos atos e sentenças judiciais, deve ser a de distinguir entre as declarativas plenárias de propriedade (juízo declarativo ordinário), que não são qualificáveis (se bem que seja indubitável o controle registral dos princípios de legitimação e especialidade – identidade de partes e prédios), e os demais atos e declarações e mandados judiciais, que certamente podem ser qualificadas tanto no fundo como na forma, por não ter eficácia de coisa julgada constitutiva de direitos”.

A atividade judicial é definida na Constituição (art. 117.3) como aquela que corresponde a juízes e tribunais, em todo tipo de processo, julgando e fazendo executar o julgado, ao que o artigo 118 do texto constitucional acrescenta o “obrigado cumprimento das Sentenças e demais Resoluções transitadas em julgado dos juízes e tribunais, assim como prestar a colaboração requerida por estes no decurso do processo, na execução das resoluções”, delineando, ao falar de qualificação do  documento    judicial , a interrogação sobre se aquela atenta ao princípio de unidade  jurisdicional.

Como diz García García, o juiz não é só o redator e o responsável pelo documento que acede ao registro, mas o órgão que decide a controvérsia suscitada entre duas partes, o que corresponde a uma competência exclusiva. Feita essa ressalva, e a eficácia inter  partes da resolução judicial, ao pretender esta seu acesso ao registro, vai produzir efeitos sobre terceiros não-intervenientes no processo. Nisso a sentença não produz seus efeitos, e o registrador exerce sua função. Isso não pode referir-se a questões de fundo, vale dizer, ao fundamento da mesma, mas para decidir se essa resolução pode ou não aceder ao registro e produzir, portanto, aqueles efeitos erga omnes .

Mas, além dos efeitos que pelo assento registral possam gerar as resoluções judiciais, a salvaguarda    judicial do assento praticado (art. 1  o  , LH) obriga o registrador à proteção do titular registral e seu direito, por um lado, e, por outro e como conseqüência do anterior, aquelas resoluções devem ficar sujeitas aos requisitos que a legislação hipotecária exige para a prática dos assentos.

A Direção Geral de Registros e Notariado, em resolução de 7 de julho de 2001, insiste em sua linha doutrinária pela qual “a qualificação registral do documento judicial é conseqüência da eficácia erga omnes da inscrição e da proscrição ordenada pelo Art. 24 da Constituição (...)”.

Por outro lado, a exigência genérica de qualificação, sancionada pelos artigos 18 e 21 da LH, que afeta a todo documento que pretende seu acesso ao registro, o RH matiza aquilo que se deve qualificar no documento judicial que pretende aceder ao registro.

Tudo isso referido, naturalmente, ao documento judicial strictu sensu, pois a qualificaç&at



Últimos boletins



Ver todas as edições