BE1824

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Seminário Georreferenciamento, Cadastro e Registro de Imóveis:
uma mudança de paradigmas
 
Cadastro e registro público: uma conversa com o presidente do Irib, Dr. Sérgio Jacomino*


P) O Senhor proferiu uma palestra enfocando aspectos relacionados com o cadastro e o registro e o desenvolvimento dessas instituições no bojo de um processo econômico que vem desde a época colonial até atingir os dias atuais. Qual a importância dessa discussão para o registro imobiliário?  
 
R) Eu procurei fazer um recorte no tema mais geral da realidade fundiária brasileira desde os tempos da Colônia para procurar destacar um aspecto relacionado com a formalização das transações, desde as capitanias hereditárias, passando pelas cartas de sesmarias, de doação de datas de terras até chegarmos à legitimação de posses e transferência da propriedade. Em todas essas fases houve uma roupagem jurídica – atos jurídicos instrumentalizados por tabeliães ou escrivães – e uma constante no que se referia à determinação dos bens imóveis. Mas isso não seria possível sem conhecer um pouco mais sobre os impulsos econômicos que movimentaram os interesses da Colônia, Império e Primeira República.
 
Marcos de sesmarias (Museu Chico Boticário, Fundação Francisco de Paula Leopoldino Araújo, Rio Novo,  Minas Gerais). Imagem1 Imagem2

P) O Senhor manifestou em sua exposição que as descrições precárias dos imóveis encontradas em documentos e registros não deveriam motivar perplexidade e nem mesmo suscitar e alimentar os comentários críticos que depreciam os sistemas notarial e registral brasileiros  - como se os registros padecessem de um defeito infra-estrutural. Esse fenômeno seria, então, compreensível e justificável?
 
 
R) Procurei trazer à reflexão a história de duas importantes tendências que se firmaram entre os séculos XVIII e XIX e que dizem respeito ao cadastro e registro hipotecário brasileiros tendo como elemento informador a propriedade ou simplesmente a posse das terras. Os estudos se orientam no sentido de se fazer uma análise acerca da persistência, em nossa cultura registral (ao menos até meados da década de 80, quando se deu uma exasperação do princípio de especialidade objetiva), de procedimentos precários de descrição de bens imóveis rurais, tentando ligar esse fato – que a muitos pareceu desde sempre uma irremediável deficiência – ao lento desenvolvimento do conceito da propriedade privada, que entre nós se vai modulando com o passar do tempo até atingir a cristalização desse modelo antropológico napoleônico-pandectístico, na expressão de Paolo Grossi. A idéia que temos da propriedade privada (absolutizada, exclusiva, singular, abstrata, formal, e rigorosamente “especializada”) não é a mesma que vamos encontrar na Idade Média Lusitana, especialmente quando flagramos os impulsos e elementos da cultura medieval portuguesa que nos brindaram tanto a regulação do notariado quanto o sesmarialismo para cá trasladado, destacando-se, como ponto referencial, a lei de 1375, de Dom Fernando. As datas de terras doadas, nos primórdios da colonização, trazem um modelo descritivo que nos parece hoje inteiramente inadequado, mas que à época servia aos objetivos perseguidos. A visibilidade da posse nunca é suficientemente ponderada e as indicações encontradas, meramente referenciais, são, como disse,  adequadas às contingências da época.
 
P) O Senhor reportou que a primeira fase da Colônia (capitanias hereditárias) não apresenta tão grande interesse para o tema, mas a segunda fase (sesmarias) é fundamental para compreender o paradigma da especialização objetiva.
 
R) Na Colônia, o elemento essencial do sistema sesmarial é a obrigatoriedade do cultivo como condição da posse. Seiam costranjudos per as laurar e semear na dicção do regulamento fernandino. A idéia de “funcionarização” da propriedade, tendo em vista a necessidade (social) de prover o abastecimento de mantimentos (trigo e cevada) a esse notável sobrado europeu sobre o Atlântico, bem como enfrentar a aguda escassez de mão-de-obra para amanhar a terra (em virtude da grande peste de 1348-50) vai conformar a primeira tentativa de disciplinar a complexa relação entre homens e coisas e isso inevitavelmente vai repercutir na maneira como o objeto dessas transações vai sendo descrito em títulos notariais (em sua esmagadora maioria). Se não tivemos aquela vistosa pletora de direitos da terra típica do medievo - sem o traslado do regime feudal para a Colônia - ao menos tivemos um lance de apropriação de modelos que nos autorizam a falar de "propriedades". As sesmarias são o ponto de partida de nossa história fundiária. Com todas as críticas que se pode fazer acerca da trasladação dessa figura tão entranhada na cultura portuguesa à realidade da Colônia - uma idéia que injustamente vai ser considerada "fora do lugar" – o fato é que essa falta de absolutização e singularização da propriedade, com sujeição jurídica que se dá exclusivamente a um titular determinado, vai influir na maneira como se descreviam os bens dados em sesmarias - afora o aspecto já apontado anteriormente (em outro trabalho) de que o modelo colonial não estimulava a perfeita delimitação das posses em virtude de uma exploração extensiva, o que originava o fenômeno de "ablaqueação". Por isso falhou o intento de se demarcar as terras a partir, principalmente, de 1822, com as  reformas inspiradas por José Bonifácio.

D. Fernando I (1345-1383)

Chronica dos feitos, vida e morte do Infante sancto Dom Fernando que morreo em Feez. - Reuista & reformada agora de nouo pelo padre frey Hieronymo de Ramos da Ordem dos Preegadores, 3ª reimp. - Lisboa Occidental : na Off. de Miguel Rodrigues, 1730. - [22], 348 p. ; 16 cm http://purl.pt/423

P) Então a falta de precisão na descrição dos imóveis estava relacionada com o o modelo de exploração da Colônia?
 
 
R) Exatamente. No início, as concessões de terras eram imensas, existia um modelo extrativista que se baseava no latifúndio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial. Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado, com uma intrínseca necessidade de mobilidade – o que acarretava uma flexibilização dos limites da posse ou propriedade. A efetiva posse tinha essa característica dinâmica, expandia-se de um lado para o outro. Não admira que, embora houvesse à disposição tecnologia geodésica para a realização de uma adequada demarcação das terras, isso não se fará na Colônia. Diz a Profa. Lígia Osório Silva: “o caráter externo da acumulação de capital determinou uma das características internas da produção colonial: todo o crescimento do sistema, seja açucareiro, seja da pecuária, fazia-se por extensão. Os métodos de cultivo sendo rudimentares, o esgotamento do solo fazia-se também sentir rapidamente, obrigando o contínuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras férteis. O arado foi muito pouco utilizado. O colono não cultivava o solo de modo muito diferente do indígena, apenas o fazia em proporções muito mais amplas”. E continua: “decorria dessas características uma fonte permanente de terras que, por sua vez, acarretava uma grande mobilidade. Arruinava-se a terra, queimavam-se as florestas e passava-se adiante, repetindo o ciclo novamente” (Terras devolutas e latifúndio – efeitos da Lei de 1850. São Paulo: Editora Unicamp, 1996, p.47). 
P) O Senhor contesta a opinião comum dos estudiosos ao refutar a idéia de que o registro do vigário, previsto no regulamento de 1854, seria o antecessor do moderno registro imobiliário. Como o Senhor enxerga o registro do vigário?
 
R) A tese é a seguinte: a Lei de 1850 e o seu regulamento não podem ser considerados - principalmente o regulamento de 1854 - como os antecessores do registro de imóveis. Os autores apontam e reconhecem a lei hipotecária de 1846, mas consideram o registro hipotecário um capítulo avant la lettre da regulação tardia da publicidade da propriedade privada. O registro do vigário não era um registro com os fins anelados já no regulamento de 1846. Era, sim, um registro público lato senso, porém mais afeiçoado à atividade notarial, que não deixa de ser afinal de contas um registro jurídico.
 
P) O registro paroquial seria uma atividade notarial atípica? Como assim?
 
R) Será pelo Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigário.  O artigo 91 desse regulamento previa que todos os possuidores de terras, qualquer que fosse o título de sua propriedade ou posse, seriam obrigados a registrar as terras. Os títulos deveriam ser formalizados por declarações unilaterais dos possuidores, conforme previa o artigo 93 do regulamento. O mais curioso desse decreto é que a incumbência de receber as declarações para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a repartição competente – art. 107) ficou a cargo dos vigários de cada uma das freguesias do Império. Além disso, os vigários poderiam fazê-lo por si ou por meio de escreventes, que poderiam livremente nomear. Assim dispôs o regulamento no seu artigo 97. Os vigários estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigação que lhes foi imposta pela Lei, amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais, proclamas, etc.). Calham aqui algumas observações. Em primeiro lugar, o registro não era exclusivamente de posses, mas também de propriedades havidas por justo título - muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimação das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapião, conforme decidido pelo STF. De fato, o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras, “qualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessão”, estavam obrigados ao registro. O vigário funcionava, aqui, menos como registrador imobiliário e mais como um tabelião, pois ele deveria reter as declarações que lhe fossem apresentadas, emaçando os exemplares, numerando-os pela ordem de apresentação, organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado. Esse livro seria remetido, findos os prazos estabelecidos para o registro, ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Públicas da Província respectiva, para a formação do registro geral das terras possuídas, do qual se enviaria cópia ao Diretor para a organização do tal registro. O registro das terras, portanto, estaria situado em outro lugar – exatamente na Administração Pública. Outro aspecto importante e digno de nota é que o “tabelião-vigário”, no exame dos exemplares apresentados, poderia suscitar impedimentos. É que as declarações deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas. Só se faria o registro se fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idênticos entre si. Se eventualmente os exemplares não contivessem as declarações necessárias exigidas pela Lei, ele poderia fazer notar, aos apresentantes, as observações convenientes de molde a instruí-los nas declarações devidas. Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notórios. De qualquer maneira, insistindo as partes no registro de suas declarações, pelo modo por que se acharem feitas, os “tabeliães-vigários” não poderiam recusá-las e o registro de qualquer maneira se faria. É fato que o registro da Lei n. 601, de 1850, pelo regulamento de 1854, não tinha finalidade puramente estatística, mas visava a legalizar a situação de fato das posses que se multiplicaram nos três séculos anteriores, mas não era um registro de imóveis no sentido que hoje emprestamos a essas instituições. Os seus registros, lato sensu, ainda quando se referissem a propriedade (art. 91), não apresentavam as características de eficácia probatória que o registro hipotecário de 1846, por exemplo, já ostentava. Indícios probatórios, como de resto se identifica em qualquer escrito público ou particular, com ou sem registro, é isso que ficou. Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 80.416, Goiás, pela 1ª Turma. Portanto, em conclusão, o chamado registro do vigário tinha uma característica francamente notarial – não registral. O “tabelião-vigário” tinha incumbências precisas e os dados, por ele coletados, comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Públicas para a constituição do registro geral das terras possuídas do Império, quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaçados.
 
P) Bem por isso o Senhor sustenta que o registro hipotecário de 1846 não será afetado pela Lei de Terras de 1850...
 
R) De fato não. Pretendo tentar demonstrar a persistência do paralelismo dos regulamentos hipotecários e aqueles outros que visaram a concretizar a lei de terras. Isso porque se encontra amiúde, em doutrina, a afirmação de que o regulamento de 1854 (registro do vigário) seria o antecessor do registro hipotecário. A legitimação de posses – um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 – ainda persistirá, ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminação de terras públicas, matriculação de terras discriminadas ou possuídas pela União, de que a Lei 5.972/73 é um entre vários exemplos. Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade, proporcionando um título legítimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliário. O que sustento é que, desde 1846 até a vigente Lei 6.015/73, houve uma nítida trajetória e desenvolvimento do sistema registral que não experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador.
 
P) E o cadastro?
 
R) Em fins do século XIX gestavam-se os irmãos siameses da gestão agrária, o cadastro e o registro. Muitos indícios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcação de terras e constituição de cadastros públicos para albergar esses dados. Mas não se dará a absorção de um sistema (registral hipotecário) pelo outro (cadastro). Este, de fato, será o cenário até que essas fortes tendências se encontrem mais à frente, com a reforma de Nabuco de 1864, em que o tema da interconexão do cadastro e registro será agitado. Ainda assim o Brasil será considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco, referência que sempre foi o tormento do legislador decimonômico, consistente na interconexão entre o registro jurídico e o cadastro.
 
P) Os críticos se referem a uma balbúrdia fundiária com títulos superpostos – fenômeno que o Senhor qualificou de “síndrome do beliche dominial”. Essas descrições imprecisas não são, portanto, uma deficiência do sistema?
 
R) Quando se buscam as fontes (principalmente escrituras públicas, cartas de datas e sesmarias – algumas apresentadas no evento), vê-se claramente que as descrições são meramente referenciais. As conquistas da cartografia do século XVIII e as técnicas de geodésia - tão bem utilizadas no cadastro napoleônico - seriam simplesmente desprezadas. Por desnecessidade! Sobre as demarcações pergunta-nos Costa Porto em seu festejado livro: “e como se mediam e demarcavam essas terras?” Logo nos responde: “Aí é que estava o grave problema – a carência de geômetras – muita demarcação, talvez, processando-se por aquele método que Ulisses Lins recolheu de velhos sertanejos do Pajeú: ‘o medidor enchia o cachimbo, acendia-o e montava a cavalo, deixando que o animal marchasse a passo; quando o cachimbo de apagava, acabado o fumo, marcava uma légua´”. Suspeito que não era exatamente por falta de geômetras que as descrições eram assim tão precárias; é que a lógica do sistema econômico impunha um modelo de exploração que não se compadecia com uma necessidade mais tarde sentida e imposta: a perfeita determinação e localização dos imóveis.
 
Instrumentos cartográficos e sua utilização em campo - século XVI. (Brown, Lloyd A. The story of maps. New York: Dover Pub. Inc., 1979, p. 230).

Veja, por outro lado, que a lei hipotecária de 1846 dá uma importância minúscula à “especialidade objetiva”. O indicador real é simplesmente referencial. Vejamos a literalidade do artigo 22: “Os Tabelliães do Registro geral das hypothecas são obrigados a ter os seguintes Livros: (...) 3.º O Livro indice, escripturado por ordem alphabetica, e por fórma que facilite, sem equivoco, o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartorio". Claro está que o registro hipotecário preocupa-se, essencialmente, com a especialidade dos direitos envolvidos; a questão da demarcação e precisa determinação dos imóveis, isso é próprio de outra instituição: o cadastro.

Exemplo do indicador real (1º Registro de Imóveis de SP). A mera referência era suficiente para os fins do registro hipotecário e posteriormente do registro geral de imóveis.

P) Muitos estudiosos sustentam que o advento da Lei 6.015/73 inaugurou entre nós um verdadeiro sistema cadastral. É equivocada essa concepção?
 
R) É recorrente em nossa comunidade de estudiosos de direito registral a utilização pouco técnica da expressão cadastro real como sinônima de fólio real, de matrícula. Nada mais incorreto. O cadastro é um inventário público de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo país ou distrito, baseado no levantamento de seus limites. Essa é a definição da Federação Internacional de Geômetras. Já o registro, diferentemente e coerentemente com sua história, é uma instituição jurídica encarregada de prover publicidade, autenticidade, segurança e eficácia do negócio jurídico. A questão da determinação física e situação do imóvel ocorre em suporte, entre outras, à atividade registral, que se contrapõe claramente em relação ao cadastro. Essa a razão pela qual onde há cadastro e registro num único órgão, a tendência é que as duas cabeças queiram se separar, uma vez que são atividades muito singulares, embora interdependentes. Uso a metáfora dos irmãos siameses da gestão territorial para ilustrar a situação de indefinição institucional. Ambas manejam o mesmo objeto. O objeto do cadastro é o imóvel, e o objeto dos direitos reais (registro de imóveis) também é o imóvel. Mas a lógica organizativa e as informações e referências que apresentam são distintas. O cadastro e o registro se inter-relacionam. De um lado, temos a descrição e situação físicas dos bens perfeitamente apuradas, de outro, temos o registro cuja missão essencial é a determinação da situação jurídica dos bens e a assinalação de direitos. Isso permite a gestão territorial.
 
P) As agências internacionais que financiam projetos nos países em desenvolvimento apontam essa orientação que se tornou standard...
 
R) É verdade. Nas reuniões com o Incra e com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, de que participamos, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, BID, que era a agência internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento, defendeu enfaticamente o Registro de Direitos, entendendo que os investimentos estrangeiros não deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituição do cadastro; faltaria a contraparte essencial que é justamente o registro imobiliário. O BID não financiaria esse projeto se não houvesse, ao lado do levantamento cadastral, uma perfeita determinação da situação jurídica do imóvel. É impossível pensar em gestão territorial sem que haja assinalação dos direitos reais, que só o registro de imóveis pode fazer no Brasil. A perfeita compreensão dessas duas instituições – cadastro e registro – foi se tornando clara pelo trabalho consistente de dois professores que muito apoiaram a difusão desse conhecimento especializado entre os registradores. Falo do professor Jürgen Philips, da Universidade Federal de Santa Catarina, e da professora Andréa Carneiro, da Federal do Pernambuco. Eles demonstraram claramente que uma instituição não haveria de suplantar ou absorver a outra; elas devem estar relacionadas.
 
P) A interconexão do cadastro com o registro é um antigo anelo do legislador pátrio. O Senhor concorda?
 
R) A interconexão do registro com o cadastro, que ficou nas intenções confessas do legislador de 1916, agora encontra um momento propício de renovação dos mesmos termos e desafios enfrentados lá atrás, desde as propostas originais de Nabuco. A verdade é que prevaleceu até aqui, lamentavelmente, uma visão que debilitou a eficácia do registro, calcada na crítica acérrima perpetrada por Soriano Neto em sua conhecida obra (Publicidade material do registro immobiliário – efeitos da transcripção), editada em 1940 – malgrado o fato de que a crítica de Soriano tenha sido refutada por uma pletora de juristas como Filadelfo Azevedo, Serpa Lopes, Lysippo Garcia entre outros. O sistema alemão de registro não se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiências que tínhamos na contraparte do sistema, que era justamente o cadastro. Não investimos no cadastro como, por imperiosas razões econômicas, havíamos investido no registro hipotecário...
 
P) Mesmo assim o registro cumpriu a sua missão...
 
R) Sim!  O registro cumpriu satisfatoriamente sua missão, independentemente da existência de um suporte cadastral. Aliás essa é a tese de Filadelfo Azevedo, que eu tenho o gosto de reeditar. Vale a pena ler o conjunto de sua obra. Pense no seguinte: se o registro, apesar dessa carência, foi mantido até agora, cumpridos longos 160 anos, é porque o saldo é positivo; fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado! O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situações jurídicas em seu lugar. É preciso enxergar devidamente a importância relativa do cadastro para não cairmos na tentadora tese de que o cadastro é condição essencial para o registro... Tanto não é assim que sobrevivemos à sua falta por longo tempo. E o advento da Lei 10.267/2001, se de um lado deve ser saudada como um importante avanço, de outro não pode se constituir em embaraço à livre circulação dos bens, impondo obstáculos à consagração e assinalação de direitos.

Philadelfo Azevedo (STF).

P) Mas o advento da Lei 6.015/73, com a criação da matrícula, não significou um avanço?

 
R) Claro! Mas vamos enxergar em perspectiva. O processo de registro era muito complexo. A dinâmica nas transações imobiliárias, com incremento dos registros (fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanização do país), trouxe a necessidade de aperfeiçoamento tecnológico do registro e isso motivou a mudança do sistema, inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em fóruns internacionais, especialmente após a fundação do Cinder, em 1972, na cidade Buenos Aires [Cinder – Centro Internacional de Direito Registral, NE]. A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiários veio com a lei 6.015, de 1973, que entrou em vigor em 1976. Houve o aperfeiçoamento técnico com a criação do fólio real, em que cada matrícula corresponderia a um imóvel, e cada imóvel a uma matrícula. Com o advento da matrícula, tivemos algumas vantagens. 1) A obrigatoriedade da matrícula para cada transação imobiliária. A lei foi sábia, houve um ponto de partida para a migração de dados dos livros fundiários para um novo suporte, que é a matrícula. Não houve um cronograma rígido para a completude do círculo: até hoje há imóveis registrados no modelo anterior. 2) Exigência legal de especialidade imobiliária, objetiva e subjetiva.Objetiva no que diz respeito à determinação do bem, e subjetiva em relação às pessoas envolvidas nas transações. Pode-se falar até em especialidade do direito, especialidade do título e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro. 3) Concentração da informação sobre a situação jurídica do imóvel.Com a matrícula, passou a imperar o princípio da inscrição que atraiu para a folha do imóvel todas as vicissitudes jurídicas que, direta ou indiretamente, estivessem relacionadas com o imóvel – direitos, pessoas titulares daqueles direitos, ônus, restrições legais, administrativas, convencionais etc. Houve, portanto, uma clarificação da informação registral e uma segurança ampliada. Ou seja, a matrícula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos. Visto em perspectiva, quase chego a afirmar que a matrícula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10.267, em que o ciclo vai se completar finalmente com a interconexão do registro com o cadastro, agora com o apoio de um cadastro estruturado.

Exemplo de descrição lacônica (livro 3, 1867, 1º Registro de Imóveis de SP).

* entrevista concedida a Fátima Rodrigo em 5/11/2004.



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