BE1811
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Especialidade Objetiva e Georreferenciamento
Eduardo Agostinho Arruda Augusto *
Introdução
O tema georreferenciamento continua no auge, pois está causando um grande alvoroço em vários setores da sociedade, principalmente agora que os prazos estão chegando ao fim e os proprietários rurais estão percebendo que não há outra saída senão cumprir as novas regras estabelecidas pela lei.
O problema fica maior ainda para aqueles que não têm condições financeiras para realizar os levantamentos técnicos e precisam da certificação do Incra para alienar suas terras. Nem se fale do desespero daquele que não obtém o crédito rural pelo fato de suas terras ainda estarem em nome de outrem, não podendo regularizar a situação devido à superveniência dessa nova legislação.
O Instituto de Registro Imobiliário do Brasil está fazendo sua parte. Desde a criação da lei, está estudando a fundo o novo sistema e oferecendo a toda a comunidade um painel aberto e democrático para debates, visando tão-somente encontrar soluções concretas para viabilizar o cumprimento da lei sem causar prejuízos ao proprietário rural. Desse debate surgiu a Carta de Araraquara, um documento com propostas sérias e robustas que, se assimiladas pelo Governo Federal, poderá salvar o programa do georreferenciamento e colaborar para o desenvolvimento de nosso País.
O princípio da Especialidade Objetiva
O princípio da especialidade objetiva é um dos pilares do sistema registral imobiliário. Por esse princípio, todo o imóvel deve possuir descrição suficientemente exaustiva a ponto de distingui-lo dos demais (individualizá-lo) e a demonstrar com clareza sua grandeza (disponibilidade quantitativa) e formato (disponibilidade qualitativa).
Uma matrícula cumpre integralmente esse princípio se (e somente se) a sua descrição tabular for capaz de gerar o mesmo desenho e os mesmos cálculos de área e perímetro, independentemente do técnico que o for interpretar. Havendo divergências no desenho ou em alguns cálculos, comprovada está a fragilidade da descrição tabular.
A grande maioria das descrições tabulares não cumpre esse princípio, pois são descrições antigas, elaboradas numa época em que a importância da determinação física do imóvel não era tão importante como é hoje. Essas descrições cumpriram muito bem seu papel no passado, mas hoje estão ultrapassadas e carecem de uma urgente reforma.
A lei do georreferenciamento veio com esse propósito, o de acabar de vez com as dúvidas quanto à verdadeira configuração do bem de raiz, acrescentando algo novo para os registros, que é o exato posicionamento do imóvel no terreno, iniciando um controle antes inexistente, o do perfeito encaixe dos imóveis na planta, evitando sua indesejada imbricação ou a continuidade de títulos de imóveis ablaqueados (existentes no título, mas inexistentes no físico).
Especialidade Objetiva e a Matrícula
As descrições hoje existentes mal possibilitam saber o formato do imóvel rural. A maior parte preocupava-se apenas com o controle quantitativo de área. Para possibilitar o desmembramento desse imóvel, o proprietário tinha que se socorrer do demorado processo de retificação de área.
Apesar de muitos imóveis terem passado por essa reformulação em sua descrição tabular, alguns deles voltaram a perder sua especialidade objetiva, após a efetivação de um ou mais desmembramentos. Isso ocorreu ora por culpa do agrimensor, ora por culpa do registrador.
Alguns parcelamentos foram feitos sem a observância da descrição constante da matrícula (ou seja, houve retificação da descrição de forma unilateral e irregular) e outros, apesar da perfeição técnica, não foram sucedidos pela necessária averbação da descrição da área remanescente, perdendo-se o controle da disponibilidade qualitativa do imóvel rural.
Quando houve apenas um, dois ou alguns poucos desmembramentos, a recuperação do remanescente é viável, se tais parcelamentos foram realizados com perfeição técnica. Mas, o que não é raro, se o imóvel foi alvo de dezenas ou centenas de parcelamentos (resultando nas famosas e complicadas chácaras de recreio), a apuração do remanescente passa a ser um trabalho muito árduo e de difícil conclusão. Não sobra outra saída senão nova ação de retificação de área.
Com a vigência da Lei nº 10.931/2004, que deu nova redação aos artigos 212 a 214 da Lei dos Registros Públicos, esse problema foi minorado, haja vista que hoje é de competência do próprio registrador o procedimento de retificação de registro, que engloba o da retificação da descrição tabular do imóvel e da apuração de seu remanescente.
Mas esse problema poderia ser evitado. Bastava a exigência de averbação da área remanescente após cada destaque de parcela do imóvel. E a boa técnica diz que, a cada nova descrição, encerra-se a matrícula desatualizada e abre-se nova matrícula totalmente saneada para o remanescente, pois a matrícula deve ser sempre clara, precisa e concisa , pois ela foi feita para o usuário do sistema entendê-la e não se trata de um documento de uso exclusivo de técnicos e juristas.
Os princípios basilares que informam a matrícula são três: o da especialidade (tanto objetiva como subjetiva), o da unitariedade da matrícula e o da disponibilidade (tanto quantitativa como qualitativa). Compete ao oficial diligenciar para que todos esses princípios sejam respeitados e convivam harmonicamente, de forma a garantir a necessária segurança jurídica do registro público.
O princípio da especialidade objetiva refere-se à correta individualização e identificação do bem imóvel, tornando-o único no universo de imóveis da circunscrição imobiliária. O princípio da especialidade subjetiva refere-se à correta identificação dos titulares dos direitos reais relativos ao imóvel.
A unitariedade da matrícula significa que para cada matrícula há apenas um imóvel e cada imóvel deve estar descrito em uma única matrícula. É com base nesse princípio que não se pode abrir matrícula para fração ideal ou para servidões.
A disponibilidade está ligada ao poder de disposição do titular em poder alienar, renunciar ou abandonar seu bem imóvel, nos termos da legislação civil. Compete ao registro imobiliário o controle dessa disponibilidade, tanto no aspecto quantitativo (que sempre foi feito) como qualitativo (infelizmente muito negligenciado no passado).
No aspecto quantitativo, o controle é fácil. Trata-se de mero cálculo aritmético de disponibilidade.
Entretanto são muitas as dificuldades para se fazer o controle da disponibilidade qualitativa, principalmente nos casos em que houve vários desmembramentos sem que tal controle fosse oportunamente realizado.
Pelo princípio da disponibilidade, deve ser verificado se o que o proprietário está alienando está realmente dentro de sua esfera de disponibilidade, mas não somente em termos de quantidade, mas também de qualidade, ou seja, aquela parcela localizada de terreno existe? é de sua propriedade? pode ser alienada?
Para cumprir esse princípio, que está intimamente ligado ao da especialidade objetiva, deve a descrição tabular permitir a elaboração de uma planta inequívoca do imóvel originário. Para controlar as alienações, a planta deve ser dividida em tantas áreas quantas forem alienadas mais o seu remanescente, de forma que não apenas o somatório de áreas, mas o encaixe das plantas resulte no imóvel originário de forma perfeita (como a junção de peças num quebra-cabeça).
Assim, em termos muitos singelos, a disponibilidade quantitativa é controlada pelo somatório das áreas parceladas; e a disponibilidade qualitativa pela perfeita junção das plantas de cada parcela, como peças de um quebra-cabeça.
Com a nova descrição georreferenciada, é essencial a abertura de nova matrícula para o imóvel, aproveitando a oportunidade para sanear outros problemas, como a correta definição das frações ideais de cada condômino (raramente declaradas nas matrículas antigas) ou identificação dos ônus que ainda oneram o referido imóvel (muito comum a existência de muitos registros de hipoteca e muitas averbações de aditivo e cancelamento, situação que dificulta saber o que continua ativo ou não). Uma averbação de transporte na nova matrícula tornará esta muito mais eficaz.
Portanto, recomenda-se a averbação do encerramento da matrícula do imóvel retificado e a abertura de nova matrícula totalmente saneada para esse imóvel agora bem descrito e caracterizado. Essa é a proposta nº 10 da Carta de Araraquara : “10. Especialidade Objetiva – Abertura de Nova Matrícula para o Imóvel Georreferenciado”.
Modelos de Matrículas georreferenciadas
Para que a matrícula cumpra sua real função e esteja conforme seus princípios informadores, é essencial a abertura de nova matrícula para o imóvel georreferenciado, em substituição àquela desatualizada. Também é importante estudar como esse imóvel será descrito e apresentado para o usuário do sistema, ou seja, como ficará o aspecto da matrícula, de forma a cumprir os princípios e seus atributos essenciais já estudados.
O modelo incluído no Anexo III da “Norma Técnica para Georreferenciamento de Imóveis Rurais” do Incra, como exigência imposta ao agrimensor, segue o padrão típico das matrículas existentes, com o estilo tradicional dos instrumentos públicos, sem espaços em brancos ou entrelinhas, estilo este oriundo do tempo dos títulos e registros manuscritos, cuja segurança jurídica somente era alcançada com base em rígidas regras de escrituração.
Mas esse modelo apresenta as seguintes falhas:
1) o que o Incra confere são os dados do software e não essa folha que foi digitada especialmente para cumprir o modelo instituído, em que a probabilidade de erros de digitação é enorme; e
2) a descrição do imóvel fica confusa, sendo de difícil leitura e entendimento até mesmo para o pessoal técnico. Basta, por exemplo, tentar localizar, numa descrição desse tipo, alguns confrontantes e entender onde realmente se encontram para sentir sua complexidade.
Para solucionar essas falhas, um modelo mais limpo e de melhor compreensão seria com a inclusão dos dados georreferenciados em uma tabela extraída diretamente do CD-Rom conferido pelo Incra, que viria logo após um pequeno resumo descritivo do imóvel, resumo este que atende tanto ao usuário comum como aos técnicos.
Por essa forma de descrição, a matrícula começaria por um pequeno resumo em que constasse a localização genérica do imóvel, sua denominação e área (que são os principais dados buscados pelo usuário do sistema). Após isso, viria a tabela dos dados georreferenciados (ou seja, a descrição precisa do imóvel, estritamente técnica) e, no final, o rol de confrontações (também de interesse do usuário comum do sistema).
Descrição proposta: muito clara e de fácil compreensão.
Não tardará o dia em que as matrículas trarão em seu bojo a planta do imóvel. Com a popularização da informática e com o constante aprimoramento tecnológico, isso pode ocorrer a qualquer momento. Aliás, não há qualquer óbice legal para que isso seja feito hoje pelo registrador que assim desejar. Existem apenas óbices técnicos para que isso seja feito hoje por todos, uma vez que os cartórios teriam que possuir softwares específicos para isso.
Portanto uma outra possibilidade da matrícula seria a seguinte:
Descrição com a planta do imóvel: não tardará sua obrigatoriedade.
Toda essa discussão acerca da forma como inserir a nova descrição georreferenciada na matrícula tem apenas um único escopo, comprovar a necessidade de que a matrícula, instrumento principal da atividade do registrador imobiliário, receba o tratamento devido. Nunca é excessivo repetir: a matrícula deve ser clara , precisa e concisa , ou seja, ela deve ser escriturada de forma que o usuário possa entender, garantindo a publicidade e a segurança jurídica dos registros públicos.
Hipóteses que exigem a descrição georreferenciada
Um ponto que merece destaque é a definição das hipóteses legais que geram a obrigação de georreferenciar o imóvel rural. Essa definição fez-se necessária após discussões sobre a possibilidade ou não do registro de hipoteca na matrícula de imóvel com a descrição não adaptada à nova legislação.
Com base nos artigos 176 e 225 da Lei dos Registros Públicos e com base na lógica de todo o sistema, concluiu-se que as hipóteses que geram a obrigação do georreferenciamento são as seguintes:
- desmembramento, parcelamento e remembramento;
- transferência voluntária; e
- decisões em ações judiciais que versem sobre imóveis rurais.
O §2º do artigo 10 do decreto regulamentador não pode ultrapassar os limites do artigo e muito menos do decreto e da lei que o ampara. Assim, não faz sentido seu texto que prevê: “após os prazos assinalados nos incisos I a IV, fica defeso ao oficial do registro de imóveis a prática de quaisquer atos registrais envolvendo as áreas rurais de que tratam aqueles incisos, até que seja feita a identificação do imóvel na forma prevista neste Decreto.”
A Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, é a “lex legum” brasileira, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do artigo 59 da Constituição Federal. O inciso III do artigo 11 trata da coerência posicional, geográfica dos dispositivos. A alínea “c” define que “os parágrafos têm a função de complementar a norma expressa no caput ou expor as exceções à regra por ele estabelecida” .
Dessa forma, uma leitura mais coerente do §2º do artigo 10 leva à conclusão de que, após os prazos carenciais do caput , fica proibido ao registrador a prática dos seguintes atos registrais: desmembramento, parcelamento, remembramento, transferência voluntária e as resultantes de autos judiciais que versem sobre imóveis rurais.
Portanto, não há mais que se discutir se é possível ou não o registro, na matrícula de imóvel não georreferenciado, de hipoteca, de penhora, de locação, de sucessão “causa mortis” , de arrematação. Excluindo as hipóteses legais da obrigação, todos os demais atos registráveis têm acesso ao fólio real independentemente do cumprimento da legislação do georreferenciamento.
Prazos carenciais do georreferenciamento
A Lei nº 10.267/2001 criou a obrigação; o Decreto nº 4.449/2002 estipulou os prazos; mas somente os atos normativos do Incra, publicados em 20 de novembro de 2003, definiram as regras do georreferenciamento. Entretanto, os prazos previstos no artigo 10 do decreto regulamentador têm como termo “a quo” , segundo texto expresso do próprio artigo, a data de publicação do decreto (31/10/2002).
Diante desse anacronismo, a única interpretação justa é considerar o termo inicial dos prazos a data de publicação desses atos normativos que estipularam claramente as regras do jogo, ou seja, os prazos passariam a ser contados da seguinte maneira:
área igual ou superior a 5.000 hectares
90 dias
18/2/2004
área de 1.000 a menos de 5.000 hectares
1 ano
20/11/2004
área de 500 a menos de 1.000 hectares
2 anos
20/11/2005
área inferior a 500 hectares
3 anos
20/11/2006
A efetivação dessa forma de interpretar a lei, por si só, não resolve o problema da inflexibilidade da legislação. Os prazos são muito exíguos, ousados, de cumprimento praticamente impossível, quer pelo proprietário rural, quer pelo Incra que necessita analisar os trabalhos emitir as certificações. A ampliação mais realista dos prazos, pelo menos por 10 anos, é a melhor saída para a viabilização do programa nacional de cadastro de terras e regularização fundiária.
Gratuidade dos trabalhos de levantamento
Consciente de que os trabalhos técnicos de georreferenciamento seriam custosos para o proprietário rural, o legislador criou uma espécie de isenção. O § 3º, in fine , do artigo 176 da Lei dos Registros Públicos dispõe que é “garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.”
O termo “módulo fiscal” foi criado pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), em seu artigo 50, que cuida do cálculo do ITR (imposto territorial rural). Módulo fiscal é, portanto, uma forma de catalogação econômica dos imóveis rurais, variando com base em indicadores econômicos e de produtividade de cada região e indicadores específicos de cada imóvel.
O cálculo de quantos módulos fiscais possui cada imóvel rural leva em consideração dois aspectos: a região em que se encontra (aspecto geral) e as particularidades do imóvel (aspecto particular).
O aspecto geral está expresso no parágrafo segundo do artigo 50, que define a determinação do módulo fiscal por município, que será expresso em hectares e quantificado com base em fatores socioeconômicos.
Quanto ao aspecto particular do imóvel, o §3º do artigo 50 prevê que “o número de módulos fiscais de um imóvel rural será obtido dividindo-se sua área aproveitável total pelo módulo fiscal do Município” . O §4º do mesmo artigo estabelece: “constitui área aproveitável do imóvel rural a que for passível de exploração agrícola, pecuária ou florestal” e que “não se considera aproveitável: a área ocupada por benfeitoria; a área ocupada por floresta ou mata de efetiva preservação permanente ou reflorestada com essências nativas; e a área comprovadamente imprestável para qualquer exploração agrícola, pecuária ou florestal” .
Como a definição da gratuidade dos trabalhos técnicos do georreferenciamento seguiu a mesma lógica do critério econômico, o seu cálculo deve levar em consideração não apenas o aspecto geral (tamanho do imóvel divido pelo módulo fiscal da região), mas também o aspecto particular do imóvel, ou seja, devem ser desprezadas as áreas economicamente não aproveitáveis.
Portanto, não basta apenas dividir a área total do imóvel pelo módulo fiscal do município, mas sim levar em consideração todos os aspectos previstos no artigo 50 do Estatuto da Terra, único diploma legal que definiu o que vem a ser “módulo fiscal”, e o fez de forma exaustiva, não deixando margem a outras interpretações.
Desoneração dos imóveis abrangidos pela gratuidade legal
Em decorrência da gratuidade legal, há uma falha na legislação que deve ser corrigida o quanto antes, para evitar injustiças e o atravancamento do Poder Judiciário com inúmeras ações de mesmo sentido.
A lei garante a gratuidade mas não desonera o proprietário da obrigação de georreferenciar seu imóvel. Assim, após o término dos prazos, o imóvel que não possuir certificação do Incra não poderá, por exemplo, ser alienado, mesmo sendo seu proprietário beneficiário da gratuidade legal. Nesse caso, a única solução jurídica seria a propositura de uma ação na Justiça Federal em face do Incra, para que essa autarquia procede os levantamentos técnicos do georreferenciamento.
O Incra não terá condições de efetuar os levantamentos dos imóveis com direito à isenção num prazo razoável. Portanto, por pura coerência, devem ser expressamente desonerados do georreferenciamento todas as propriedades rurais com área não excedente a quatro módulos fiscais, as quais deveriam ser paulatinamente atualizadas pelo Incra de acordo com sua disponibilidade operacional. Essa é a proposta nº 4 da Carta de Araraquara: “4. Prazos – Não Devem Prejudicar os Imóveis Beneficiários da Gratuidade”.
Escritura Pública para Imóvel não georreferenciado
Outro assunto que já foi discutido é sobre a possibilidade ou não de se efetuar escritura pública de alienação de imóvel não georreferenciado, após os prazos carenciais do artigo 10 do decreto regulamentador.
Não há lei que exija o prévio georreferenciamento do imóvel para a lavratura de escritura pública. As hipóteses geradoras da obrigação de georreferenciar são apenas aquelas previstas nos artigos 176 e 225 da LRP, ou seja, atos registrais (e não notariais) que acarretem em desmembramento, parcelamento, remembramento e transferência voluntária (além do registro resultante de ações judiciais cujo objeto seja o imóvel rural). Não proibindo a lei, a lavratura da escritura é livre.
Superada a questão jurídica, deve-se também analisar o caso sob a ótica socioeconômica e da segurança jurídica, uma vez que tais escrituras, se elaboradas, não terão acesso ao fólio real antes do cumprimento integral das regras do georreferenciamento.
Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que não é a proibição do registro ou da escritura pública que irá impedir as negociações imobiliárias. Poderá prejudicar o mercado, influenciar em seus preços, mas as negociações ocorrerão, pois as necessidades existem independentemente da vontade do legislador.
O que traz maior segurança jurídica às partes, ao Estado e à sociedade? A elaboração de contratos particulares de gaveta, cuja negociação fica adstrita às partes, longe das estatísticas e fora do controle tributário dos governos, ou uma escritura pública, cujo ato negocial é comunicado à Receita Federal e cujos tributos são integralmente fiscalizados? Não há dúvida de que o instrumento público é a melhor saída para todos.
Não havendo qualquer diploma legal que exija a descrição georreferenciada para a elaboração da escritura pública, esta se torna um ato jurídico perfeito quando de sua lavratura, não necessitando de novo instrumento de re-ratificação quando da retificação da matrícula do imóvel para sua adaptação às regras do georreferenciamento.
Entretanto, como o tabelião é um profissional do direito que tem por obrigação orientar as partes contratantes, convém que, no corpo da escritura, conste expressamente a declaração de que “as partes contratantes foram orientadas pelo tabelião e declaram conhecer o inteiro teor do Decreto nº 4.449/2002, especialmente do artigo 10, § 2°, que impõe o dever de apresentar a documentação georreferenciada por ocasião do registro desta escritura” .
Pelo exposto, conclui-se pela possibilidade de lavratura de escritura pública para a alienação de imóveis rurais sem o georreferenciamento, mesmo após os prazos carenciais, não necessitando, inclusive, de posterior re-ratificação, nos termos do §13 do artigo 213 da Lei dos Registros Públicos.
A história de Seu João Alcides
Esta é a história de Seu João, um velho produtor rural de nossa comarca de Conchas, um senhor batalhador de 87 anos de idade, proprietário de um sítio de 18 alqueires na zona rural de Pereiras, Comarca de Conchas. Sempre deu duro na vida, retirando seu sustento da terra.
Comprou seu sítio em 1950, pagando à vista, dinheirinho contado na mão do vendedor. Guarda até hoje a escritura devidamente registrada numa velha mas bem cuidada pasta de plástico. Guarda com muito carinho, pois ali está seu título, o documento que comprova ser ele um homem de posses. São as escrituras de suas terras, feitas pelo tabelião João Herculano de Almeida, falecido há muitas décadas. Tem tudo guardado com o maior primor e orgulho, inclusive o recibo manuscrito do então-Ofício Judicial que registrou seu sítio no Livro 3A (transcrição 1.019).
Entretanto, a descrição de seu sítio é por demais falha e não define a forma nem a área exata de seu imóvel. Mas essa era a forma usual da época para descrever os imóveis rurais: um sítio localizado na Água Choca, Município de Pereiras, com uma área de mais ou menos 300 braças quadradas, dividindo com Fulano, Sicrano e Beltrano.
As descrições vagas e lacônicas existentes nos registros antigos não foram assim feitas por culpa dos proprietários. Era a regra vigente e por todos aceita. Era o que o Estado fazia e, com base nela, prometia garantir a eles a necessária segurança jurídica.
Com o passar do tempo, houve um progressivo (e correto) rigor na interpretação dos princípios registrais, em especial do princípio da especialidade objetiva. Mas só nós, registradores, sabemos disso. O Seu João, orgulhoso de seu título registrado e muito bem conservado, nunca ouviu falar nisso…
Esse pequeno proprietário rural, que é um leigo, teve parcela de sua terra desapropriada pelo Estado para passagem de uma rodovia, lá no final da década de 60. Um pedaço pequeno, num canto, tanto que ele nem fez questão de discutir os valores, aceitando numa boa a desapropriação amigável. Afinal, a estrada vai trazer progresso para suas terras.
No passado nunca se fazia descrição de remanescente. Ou seja, seu imóvel, que já estava numa transcrição mal descrita, com a perda de parcela de área, ficou com sua especialidade objetiva e disponibilidade qualitativa ainda mais comprometidas.
– “Impossível abrir matrícula, Seu João. Vai precisar pedir pro Juiz” – disse-lhe o cartorário há alguns anos.
O coitado, desesperado para emitir cédulas hipotecárias e dar continuidade à sua lavoura, paga engenheiro, paga advogado, tudo com muita dificuldade, dinheirinho contado moeda por moeda. O levantamento do engenheiro é lento, demora algumas semanas. Após isso, o processo é iniciado, e, este, muito mais lento ainda. No meio do caminho: Leis, decretos, portarias do Incra. Seu João nem ouviu falar disso (na verdade nem seu advogado…).
Antes da sentença, o juiz cauteloso manda o processo para que o Oficial de Registro se manifeste. Este, ciente da nova lei do georreferenciamento, faz seu parecer, técnico e de um primor jurídico inigualável. O juiz acata. Decisão interlocutória: “Prazo para georreferenciar o imóvel sob pena de extinção do feito”.
Seu João não teve alternativa: desistiu da ação por insuficiência financeira para dar prosseguimento ao processo.
Diante disso, pergunto-lhes:
Como exigir o georreferenciamento neste caso?
E o princípio da razoabilidade?
E o direito do proprietário de dispor de suas terras?
E a gratuidade que a lei do georreferenciamento lhe garante?
Como ainda não houve a regulamentação sobre a gratuidade do georreferenciamento, Seu João perdeu tudo. Perdeu o dinheiro pago ao engenheiro (aquele serviço não serviu pra nada); perdeu o dinheiro pago ao advogado (ele prestou seu serviço e os honorários são devidos); perdeu o financiamento que o Banespa lhe havia prometido mediante emissão de cédula rural hipotecária (não há como registrar a hipoteca sem abrir matrícula).
Conclusão: criaram um sistema novo para dar maior segurança jurídica ao proprietário rural, para ajudar o proprietário rural, para ajudar o Seu João, para trazer progresso à suas terras… Louvável a iniciativa pública!
Mas, em virtude disso, Seu João está perdendo tudo! Seu João está passando fome!
Desesperado, Seu João encontra alguém que quer comprar suas terras – sua salvação!
Mas não pode vendê-las! O tabelião sabe que não há como descrever o imóvel na escritura e que não há como registrá-la. Propõe, então, um contrato de gaveta (paliativo, mas todos fazem), mas o interessado pelas terras se assusta e vai embora. Seu João perde o negócio, perde de novo. Continua a passar fome…
Esta é a história de Seu João Alcides, da Comarca de Conchas. Mas também é a história de muitos outros Joões de nosso imenso Brasil, pessoas honestas, trabalhadoras, de vida sofrida, que necessitam e aguardam a compreensão do Estado para uma vida melhor.
Seu João, esta é a sua história. Seu João, esta é a verdadeira história do Brasil.
Justiça: a necessária flexibilização da lei
A história de “Seu” João fora contada em todo o Brasil. Por ser uma história que se encaixa perfeitamente na situação de vários brasileiros por aí afora, teve que ser repetida à exaustão, pois a realidade comove, a realidade choca.
Aqui, em Porto Alegre, no GeoPOA, foi a última vez que a história de “Seu” João foi contada. Ela não mais fará parte das futuras palestras do Irib sobre o georreferenciamento. Para ela, agora, apenas o registro nos anais do instituto, com todo o carinho e respeito que merece.
O registro imobiliário é um repertório de importantes informações sobre a comunidade local. Para conhecer uma boa parte da história de uma localidade, basta pesquisar o conteúdo dos registros públicos, em especial as matrículas e seus assentos modificadores. Praticamente tudo passa pelo registro, e a história se perpetua, fica gravada para sempre nos arquivos do cartório.
Na semana passada chegou, em Conchas, um documento para ser averbado numa matrícula: era uma certidão de óbito. Uma certidão novinha, extraída há poucos dias, que noticiava o falecimento de um cidadão da comarca. Seria um documento comum, como qualquer outro que adentra a serventia imobiliária para completar as informações do registro, se não fosse por um porém: a certidão comunicava o falecimento do nosso velho amigo “Seu” João Alcides.
Mas a sua história não teve um final tão trágico como parece. A sua história, contada aos quatro cantos do País, não foi exatamente como narrado.
Na verdade, ao término da ação de retificação de área, o processo não foi extinto pelo não-cumprimento da lei do georreferenciamento. Não foi porque Poder Judiciário, Ministério Público e Registro Imobiliário trabalham com um mesmo fim, todos objetivam a Justiça do caso concreto. A lei, da forma como está, é injusta e merece flexibilização. E assim foi decidido.
Seu título judicial resultou numa nova matrícula para seu imóvel, totalmente saneada de velhos vícios, e, logo em seguida, “Seu” João efetuou a doação de seu sítio a seus dois únicos filhos, reservando a si o usufruto vitalício do imóvel, uma vez que não possuía nenhum outro bem.
Seus filhos obtiveram acesso ao crédito rural e construíram uma pequena granja. Os negócios vão bem e a família (“Seu” João, os filhos, as noras e os cinco netos) conhece finalmente a fartura sobre a mesa. A certidão de óbito apresentada é para extinguir o usufruto. Junto com ela, outra cédula de crédito rural hipotecária, outro financiamento, novos negócios para a família.
“Seu” João cumpriu seu papel entre nós. Deixa filhos e netos, bem encaminhados. Deixa seu patrimônio partilhado. Deixa tudo bem documentado. Deixa, enfim, saudades.
* Eduardo Agostinho Arruda Augusto é oficial de registro de imóveis, títulos e documentos e civil das pessoas jurídicas de Conchas-SP e diretor de assuntos agrários do IRIB ([email protected]).
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