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Função social do Registro Imobiliário
Venício Antonio de Paula Salles *


Abordando este tema que envolve a função social do registro , a primeira tarefa que se apresenta, diz respeito à definição, mesmo que sumária, do conceito jurídico de “registro” ou “ato de registro”, para que, a partir desta conceituação genérica, se possa fixar as hipóteses em este ato cumpre uma função social.

Como sabemos registro imobiliário , em princípio, possui função institucional e não social e pode ser definido como  ato formal e solene  por excelência,  de natureza oficial e público  , que materializa e estrutura  o Direito de Propriedade  , dando a este o seu  conteúdo específico e individual  . É considerado, em razão de seu campo eficacial, e em razão da qualidade do órgão emissor, que atua com delegação estatal, como ato administrativo , que ostenta as presunções legais de veracidade, legalidade e legitimidade, aparelhado para declarar e constituir o direito de propriedade.

A propósito se mostra relevante enfatizar que o direito de propriedade individual assegurado pelo ato de registro representa uma das bases estruturais de todo o sistema normativo pátrio, sendo um dos pilares maiores e mais expressivos de todo o nosso sistema constitucional, representando uma das garantias inerentes às liberdades individuais, consagrada sob a forma de direito subjetivo fundamental.

A Constituição Federal, em seu art. 5°, consagra, ao lado da garantia à vida , que é o direito de maior tutela do sistema constitucional, todos os princípios que escoram as múltiplas formas de liberdade individual - como a liberdade de iniciativa, liberdade de culto, liberdade de associação, liberdade de expressão, liberdade de ir e vir, liberdade de consciência ou de crença, bem como a liberdade da conquista e disposição da propriedade privada, entre outras -, que foram agrupadas e reverenciadas de modo solene. Entretanto apenas o direito de propriedade recebeu tratamento integral, na medida em que foi sublinhado no caput do art. 5°, e consagrado de forma detalhada em seus incisos XXII, XXIII, XXIV, XXV e XXVI, que asseguram o direito, bem como todos os seus limites possíveis .

O direito de propriedade individual é, portanto, um típico direito constitucional, pois suas prerrogativas são asseguradas diretamente pelo texto maior, não permitindo ou admitindo mitigação ou limitação, a não ser pelos mecanismos previstos no próprio texto supremo, que por seu turno contempla apenas duas formas restritivas distintas, que são a expropriação e a função social , atuando a primeira como forma de extinção da propriedade privada e a segunda para a limitação ou restrição de seu uso e fruição.

Para efeito de nosso estudo, apenas a questão da função social tem interesse, e esta pode ser tratada, em termos genéricos, como uma verdadeira escala de valores ou um nível de prioridades , dando sempre prevalência para o interesse coletivo voltado à organização das cidades quando em conflito ou em antagonismo com interesse individual.

Em verdade a função social que afeta e atinge o direito de propriedade credencia o interesse organizacional coletivo tornando-o prevalente e autorizando a deflagração de sanções ao seu descumprimento.

O social que a expressão função social da propriedade carrega, não diz respeito diretamente a questões ligadas aos níveis sociais ou classes sociais , tendo um propósito mais operativo e mais direito com os interesses sociais relativos à sociedade ou à cidade, de forma que a propriedade privada cumpre sua função social quando atende seus desígnios de bem organizar a cidade, tal como expresso no Plano Diretor.

As cidades para propiciarem uma melhor qualidade de vida a seus habitantes, necessitam se organizar incentivando o adensamento populacional em locais dotados de equipamentos públicos capazes de fornecer suporte às necessidades da população e desestimulando o crescimento em locais carentes de tais equipamentos ( assim considerados: o transporte público; vias de acesso; locais de lazer; escolas; hospitais; creches, etc ). Este é o vetor da função social que deve ser esmiuçado e detalhado pelo plano diretor da cidade.

Prever e estabelecer a função social para uma cidade, só se torna fácil a nível teórico, pois na prática as questões e os problemas são quase que insolúveis, pois além de orientar o crescimento e a ocupação dos espaços urbanos, a função social reclama a solução dos problemas que a cidade já ostenta, que a cidade já possui, mormente no que afetas às situações irregularmente consolidadas ao longo de anos.

A Administração Pública não tem forças e não há interesse público na remoção e deslocamento de toda a população que se encontra nesta situação de irregularidade de forma que deverá utilizar o vetor da função social para indicar o tratamento a ser dado em cada situação concreta, a cada uma das situações consolidadas.

Como se sabe, os grandes certos urbanos foram desenhados e formados por movimentos desorganizados, de uma massa populacional que sempre fluiu em busca de emprego e oportunidades, promovendo invasões e ocupações, que deram uma feição nada agradável às cidades, do ponto de vista organizacional, principalmente em seus anéis periféricos.

As invasões em regra atingiram áreas excluídas do mercado formal, que são invariavelmente áreas de risco ou áreas de preservação permanente, pois sempre se mostraram desguarnecidas de qualquer controle ou vigilância, ao passo que as chamadas ocupações decorreram do irregular fracionamento de grandes glebas, impulsionadas pela perspectiva de lucro fácil, para empresários inescrupulosos, que vitimaram um contingente grande da população humilde.

A busca à solução desta questão ligada às invasões e principalmente às ocupações pode ser desenvolvida pelos mecanismos da regularização fundiária que possui como um dos suportes básicos a utilização de procedimentos tendentes ao fornecimento da titulação dominial para amparar esta faixa populacional mais carente e desprotegida.

Cumprindo este mister, o registro imobiliário, como um dos termos finais da regularização fundiária, estará reverenciando e cumprindo sua função social.

Titulação dominial  

É de se destacar que a regularização fundiária, no sentido de titulação, é capaz de deflagrar, por si só, um movimento interno capaz de propiciar reflexos positivos com a melhoria da vida coletiva, pois é apto gerar impulsos individuais neste sentido e de determinar o surgimento de associações locais em compasso com os interesses maiores da cidade.

A mudança que se instaura com a titulação atinge o cidadão em seu íntimo, em seu sentir, que reflete em seu comportamento, pois o título de domínio transforma o informal em formal , o excluído em incluído , transmudando opositores em aliados aos interesses da cidade.

O tecido social passa a ser oxigenado economicamente por micro-investimentos, que produzem em razão da grande dimensão e extensão, macro-resultados para a cidade atuando como uma forma de urbanização espontânea.

A disseminação de títulos dominiais pode permitir, ainda, a criação de um salutar suporte financeiro para a população agraciada com o benefício, como ocorre nos países mais desenvolvidos, que criam linhas de crédito atrativas, escudadas em garantias hipotecárias, que muito podem contribuir para a melhoria da condição de vida da população, conferindo perspectiva de progresso e acessão social a uma camada social até então desprotegida e impedida de aspirar por evolução social.

Evidentemente que a urbanização deve caminhar ao lado da titulação e com propósitos convergentes, o que na prática não se mostra tão fácil, pois questões urbanísticas, quando tratadas com rigor, emperram a regularização, que por sua vez impedem a urbanização, podendo gerar um movimento reflexivo sem fim.

Portanto o início deste movimento é determinado pela opção legal que confere às cidades o exato conteúdo da função social da propriedade , prestigiando o individual na medida em que este atende aos interesses coletivos.

Assim, definido por caminhos políticos/discricionários a opção que deve ser adotada, ou melhor, o sentido e conteúdo da função social que deve ser emprestado a uma dada organização urbana, feita a escolha pela titulação dominial de áreas consolidadas por ocupações ou invasões, se torna necessário manejar os mecanismos para se atingir a esta finalidade.

O Estatuto da Cidade apresenta um longo rol de instrumentos jurídicos destinados à organização das cidades, mas para efeitos práticos de titulação dominial, que pode ser o ponto inicial da regularização fundiária, pouco se pode aproveitar desta norma geral.

Na verdade, a titulação depende basicamente de três mecanismos jurídicos tratados e disciplinados em diplomas jurídicos distintos. Estamos nos referindo à retificação de registro , disciplinada na Lei de Registros Públicos pela Lei 10.931/2004, o usucapião que tem sua forma genérica prevista e detalhada no Código Civil, e a concessão de uso especial de que trata a MP 2220/01. Estes mecanismos jurídicos, mesmo modernizados em face das novas regras, continuam representando fórmulas pouco operativas e ágeis, mormente porque o segmento imobiliário, por sua natureza se mostra essencialmente conservador e a opção liberal - prevalência do individual em face do coletivo -, ainda é a regra de nossos Tribunais e Corregedorias, impregnando assim o comportamento dos Registradores.

Mormente para resolver as questões de ocupação decorrente de parcelamentos que em São Paulo estão estimados em 2.100 loteamentos irregulares, o que abrange cerca de 200.000 a 400.000 famílias, afora as ocupações de áreas públicas, está sendo concluído todo um mapeamento aéreo, por meio de fotos que permitem a reprodução em plantas.

A partir da planta, a Municipalidade, investida das prerrogativas previstas no art. 40, da Lei 6.766, busca a regularização interna, descrevendo o parcelamento, com suas vias e ocupações. Concluído o processo interno Municipal se torna necessário o registro imobiliário desta nova realidade, com a substituição da gleba bruta, pelo fracionamento em lotes ocupados.

Neste momento aparecem as dificuldades pela total assimetria entre as glebas descritas tabularmente e o resultado do levantamento real . Estas antigas glebas foram precária ou insuficientemente descritas no Registro Imobiliário, o que representaria uma grande dificuldade, que pode até ter motivado o abandono do empreendimento.

Ademais, as áreas irregularmente parceladas ou representaram uma parte remanescente indeterminada dentro de um todo maior, ou ainda envolvem mais de uma transcrição, sem que se possa aquilatar que espaços ocupam, em cada um dos assentos registrais e no todo.

As indefinições e as dificuldades são expressivas. O processo de retificação de registro deve, portanto, produzir uma difícil e custosa prova técnica, com o levantamento de toda área, que invariavelmente conclui pela existência de sobreposições tabulares, ou ausência de elementos para a exata indicação de sua localização.

As dificuldades se elevam mormente porque se constata alteração de medidas, o que exige a notificação dos confrontantes, exigência que estorva e retarda em muito o resultado final, porque as divisas geralmente atingem outros parcelamentos e o chamamento de todos os confinantes e confrontantes se revela uma tarefa quase que insuperável e infindável. A nova Lei 10.931 conferiu uma maior racionalidade a esta formalidade, limitando os chamamentos no local do imóvel confinante ou no endereço constante no próprio Registro Imobiliário. Caso estas tentativas venham a se mostrar frustradas, o edital encerra o ciclo notificatório. Houve indiscutível acerto na eleição legal , neste sentido, mas temos que aguardar as primeiras decisões de nossas Cortes, para verificar se estas não irão resgatar conceitos e conteúdos superados, exigindo o esgotamento extraordinário das medidas para localização dos confrontantes.

Após a regularização da área, abre-se ensejo para que o titular registre o seu título , escudado na franquia do art. 41, da Lei 6.766, comprovando o pagamento integral do preço. Entretanto, em regra o adquirente/ocupante não dispõe de título que permita o registro e neste caso terá que cumprir o calvário da ação de usucapião .

A legislação, como um todo, foi pródiga em facilitar o processamento, reduzindo os prazos de ocupação e concebendo uma variedade grande de hipóteses de usucapião singulares ou coletivos. Entretanto a grande dificuldade, materializada pelas citações dos confrontantes e do antigo titular do domínio, ainda emperra o seu processamento.

Observe-se que o processo de usucapião normalmente exige perícia , que gera um alto custo para esta população carente e que o Governo Estadual em São Paulo, mesmo reconhecendo a sua obrigação em responder por esta despesa decorrente da assistência judiciária, cria dificuldades na liberação das verbas periciais, ao fixar unilateralmente tabelas com padrões de quantificação impróprios e estimando valores insuficientes para o pagamento dos serviços técnicos, repassando para o Judiciário este encargo.

Assim, quer em face das citações , quer em razão da perícia , o processo de usucapião é lento e emperrado e invariavelmente não atende aos anseios que a função social assinalou.

Em São Paulo, mesmo como um movimento exclusivo da 1ª Vara de Registros Públicos os juízes estão buscando racionalização no processamento do usucapião singular.

Neste sentido estamos estimulando os postulantes a indicarem eventual coincidência entre a posse e um registro ou transcrição anterior, para superar a necessidade de perícia.

Estamos também, - e neste passo contamos com a ajuda da Municipalidade de São Paulo, por sua Secretaria de Habitação e Resolo -, recebendo plantas de loteamentos irregulares e cobrando a vinda das plantas de reprodução de fotos aéreas, que refletem a realidade do local e que permitem que o perito , por simples vistoria, possa indicar nas próprias plantas o local da posse, simplificando e reduzindo os custos do processo de usucapião.

Ademais, estamos estudando com os Registradores uma forma de averbar todas as vias abertas nestes empreendimentos, dando marcas definitivas à ocupação e facilitando a identificação.

Inclusive em áreas de favela , como a Paraisópolis em São Paulo, estamos tencionando a averbação das ruas e vias internas, desfalcando a matricula ou transcrição em razão da afetação pública, compondo um quadro mais perene da situação, propiciando a localização das posses e facilitando a urbanização, pois atualmente alguns usucapiões estão sendo declarados com base em levantamentos técnicos precários , que sequer indicam o exato local da posse, gerando encavalamento e sobreposições.

Quanto à Usucapião Coletiva, mormente quando o pedido contempla partes ideais , não acreditamos no maior êxito de tal medida.

Em São Paulo temos algumas áreas antigas que em razão de movimentos organizados por associações ou por igrejas foram usucapidos coletivamente. Como exemplo, temos na zona leste uma área usucapida e titulada para cerca de 300 famílias e em Santo Amaro temos uma situação semelhante que beneficiou 165 famílias.

O que acontece atualmente é que os titulares das frações ideais querem a sua porção divisível e específica, querem suas respectivas casas e os títulos a elas correspondentes. Entretanto a situação coletiva criou uma situação quase que insuperável, pois estes proprietários coletivos de frações ideais , para lograrem a conquista dos títulos individuais que almejam, precisariam ingressar com nova ação de usucapião singular e mesmo assim, não lograriam êxito, frente às dificuldades na citação de mais de uma centena de famílias , das quais grande parte já não mais se encontra no local.

As soluções coletivas em partes ideais frustraram e inviabilizaram qualquer solução individual. São áreas que sequer comportam ação de usucapião.

O melhor caminho processual é a usucapião multitudinária ou plúrima, que reúna vários possuidores de áreas contíguas, de preferência que encerrem uma quadra fiscal, em uma única postulação. Este pedido, com apoio da plantas da Municipalidade, poderá obter um resultado célere e de baixo custo, atendendo aos desígnios maiores, inclusive cumprindo o disposto no art. 5°, inciso LXXVIII, da Constituição Federal.

Afora a Usucapião, a regularização, quando diga respeito a ocupação de áreas públicas pode ser feita pela via da concessão especial de uso .

Em São Paulo, em muitos loteamentos irregulares as áreas institucionais e destinadas a logradouros foram ocupadas ou invadidas. A Municipalidade, nestes casos, tem que desafetar o bem, através da edição de uma Lei e providenciar a medição e levantamento da área para que esta possa gerar uma matrícula imobiliária.

No levantamento devem ser previstas todas as ocupações, com a apresentação de memoriais correspondentes que são registrados na nova matrícula (item 40, do art. 167 da Lei de Registros Públicos). Fornecido o titulo de concessão pela Municipalidade este pode ser registrado em nome do beneficiário em matrícula a ser descerrada.

Ao que consta, cerca de 45.000 títulos foram outorgados neste sentido sem que a população tenha realizado qualquer registro individual. Acreditamos que tal descaso ocorreu por ignorância ou descrença.

* Venício Antonio de Paula Salles é juiz de direito titular da Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo



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