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ENTREVISTA - Evangelina Pinho

“Hoje existe uma aproximação muito maior dos registros com os órgãos públicos”


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O registrador Ruy Rebello Pinho entrevistou a gerente do patrimônio da União no estado de São Paulo e diretora do Departamento de regularização do parcelamento do solo da prefeitura de São Paulo, Resolo, doutora Evangelina Pinho, no programa Cartório  ,o Parceiro Amigo, da Anoreg-BR, exibido pela TV Justiça no dia 3 de outubro de 2004.

No programa, Evangelina Pinho comentou as experiências de regularização fundiária ocorridas em Recife, Belo Horizonte e São Paulo.

Confira a íntegra da entrevista.

 Ruy Pinho –   Conte-nos um pouco suas experiências dentro do setor da regularização fundiária no Brasil.

Evangelina Pinho – É um prazer poder estar aqui para falar de um tema tão caro como a regularização fundiária. O poder público já passou por algumas fases, ao longo dos tempos, em relação a novos assentamentos de pessoas de baixa renda, como favelas e loteamentos irregulares.

Movido por razões de ordem sanitárias, houve uma época em que a tendência do poder público era trabalhar com a expulsão desses locais, como forma de “limpar” as cidades.

Com o crescente aumento das ocupações irregulares na cidade, o poder público passou a adotar uma concepção no sentido de desconhecer esses assentamentos, como se fossem invisíveis, apesar de estarem aos olhos de todos.

No final da década de 1970 e começo da de 1980, apareceram alguns movimentos no poder público que passaram a admitir na legislação a existência desses assentamentos e a dar a eles uma direção, ou seja, proceder à regularização. O poder público passou a trabalhar para que ocorresse não só a regularização, no sentido jurídico, segundo a qual as pessoas obtivessem um título regular de posse ou de propriedade sobre seus locais de moradia, mas também ocorresse a regularização urbanística, a regularização do solo, de forma a dotá-lo de infra-estrutura básica de água, esgoto, luz e sistema de drenagem.

Assim, o trabalho de regularização fundiária começa a se intensificar no Brasil a partir do início dos anos de 1980, quando houve a primeira alteração da legislação federal do parcelamento do solo, a lei 6.766/79, que traz no conjunto de regras nacionais uma figura chamada “urbanização específica de interesse social”. A partir de então, num grande movimento nacional, começam a surgir as legislações de interesse social, com a criação das zonas especiais de interesse social e das áreas especiais de interesse social.

 Ruy Pinho –    vi muitas pessoas tratarem a lei 6.766 como uma das causadoras da informalidade no país. Qual sua avaliação sobre isso?

Evangelina Pinho – Na realidade, a lei 6.766 traz exigências urbanísticas que, até então, eram bem mais flexibilizadas pelo decreto-lei 58. A partir do momento que a lei 6.766 vem para o ordenamento jurídico brasileiro, ela traz as exigências – que existiam na época, hoje não é mais assim – da reserva de 35% de área pública para a implantação dos equipamentos urbanos e comunitários, como água luz e esgoto, exigindo a implantação da infra-estrutura básica nos outros.

Não consigo encarar isso como estímulo a novas formas irregulares de parcelamento do solo. O que ocorre é que se altera uma situação legal e, por conta disso, é normal que a própria sociedade passe por um processo de adaptação para uma nova realidade legal que se instala. Mas não funciona como um estímulo à irregularidade.

É preciso lembrar que, quando falamos em parcelamento do solo, não estamos falando meramente da divisão de uma terra em lotes, mas da criação de um novo assentamento urbano, da formação de um local destinado à construção de casas e comércios que vão precisar de uma infra-estrutura.

Não podemos atribuir única e exclusivamente à lei 6.766 a informalidade que temos nas cidades. Você pode me dizer que a lei estimula a informalidade porque criou uma série de exigências que tornou mais difícil o processo de parcelamento do solo, e eu posso retrucar dizendo-lhe que ocorria uma forma regular de parcelamento independentemente de ter sido implantado um plano urbanístico, ou seja, sem dispor os serviços de água e de esgoto.

 Ruy Pinho –   Por  outro lado, não estamos justamente fazendo isso, ou seja, aceitando o que foi feito fora da lei 6.766?

Evangelina Pinho – Sim. Estamos aceitando o que foi feito fora das normas urbanísticas, mesmo fora da lei 6.766. A informalidade se estende para um rol enorme de legislações urbanísticas, mesmo a do parcelamento do solo.

No caso de uma legislação municipal que permite a regularização de um assentamento feito diferentemente do que estava previsto na lei 6.766, não se trata de anistiar uma determinada situação de irregularidade, mas de regularizá-la. É preciso passar pela implantação dos serviços básicos de regularização para adaptar um assentamento jurídico a uma situação de normalidade jurídica.

 Ruy Pinho – Quais foram as diferenças que você encontrou nas experiências que teve em Recife, Belo Horizonte e São Paulo e quais foram os resultados?

Evangelina Pinho – As primeiras leis de interesse social surgiram em Recife (Pré-Zeis) e em Belo Horizonte (Pró-Favela). Apesar da distância física entre as duas cidades e da natureza de comunicação diferente, as legislações guardavam alguns princípios comuns. Desse modo, a leis de interesse social foram surgindo em diversas cidades, como em São Paulo, Santos, Santo André, Diadema, todas elas conservando alguns princípios básicos.

Dentre  esses princípios, um deles diz respeito à necessidade de se consolidarem assentamentos com obras de urbanização e trabalhar a regularização por meio de títulos da posse da terra ou da propriedade da terra.

 Ruy Pinho – Como definir essa opção da posse ou da propriedade?

Evangelina Pinho – Na verdade, era uma opção municipal escolher se trabalharíamos nas terras públicas de propriedade municipal, como o Recife optou, com instrumentos de concessão de direito real de uso, instrumento antigo criado em 1967 pelo decreto-lei 271. Até a década de 1980, esse instrumento não era aplicável a grandes políticas públicas. Foi no cenário do processo de regularização que ele surgiu.

Recife optou por trabalhar com a concessão real de uso, de acordo com a concepção de que as terras públicas municipais deveriam ter sua posse regularizada como direito real.

Belo Horizonte optou por regularizar suas áreas públicas por meio do instrumento de transferência da propriedade. Eram contratos de compra e venda que traziam alguns encargos, o que os diferenciava, pois, para alguns, transferia-se a propriedade por contratos de compra e venda e, para outros, transferia-se o direito de posse submetido a um conjunto de encargos que deveriam ser avaliados.

 Ruy Pinho – Mas a concessão não é um direito real? Para o poder público, qual é a diferença de transferir logo a propriedade em vez de manter um domínio sobre uma coisa que ele não vai utilizar?

Evangelina Pinho – O poder público precisa ter controle sobre o processo. Essa era uma grande preocupação, que ainda existe, na década de 1980. Era muito comum a briga do mercado pelas áreas urbanizadas das cidades.

 Ruy Pinho – Ou seja, o sujeito recebe a propriedade e pode vender. Mas a concessão real de uso também não pode ser vendida? Quais as cláusulas do contrato?

Evangelina Pinho – Uma delas é a da anuência prévia do município, que verifica as condições de um novo concessionário, se ele se enquadra no conceito previsto naquele zoneamento da cidade, ou seja, se se trata de uma pessoa de baixa renda, razão pela qual pode gozar, para fins privados, de um direito real de utilização de uma propriedade pública.

Você tem razão quando levanta essa questão porque, ao trabalhar com o direito real de uso e com a propriedade, acabamos nos aproximando muito do ponto de vista do conjunto de direitos – o que a pessoa vai usufruir, gozar e dispor, segundo algumas condições. O importante é que esses instrumentos não estão sozinhos, estão casados com um conjunto de instrumentos urbanísticos que atingiriam o desenho da nova propriedade. Uma das cautelas para evitar o processo de transferência direta era, por exemplo, proibir o remembramento de terrenos de baixa renda, que vão de 25m 2 a 250 m 2 .

Cheguei a defender que a forma mais eficiente de se controlar o processo de transferência direta é mediante instrumento de controle urbanístico do que, propriamente, mediante instrumento de transferência de propriedade. Mesmo porque as prefeituras nunca conseguem pronta eficiência no controle dessas transferências.

O grande resultado em Recife foi o processo de participação popular que se desenvolveu a partir de então. A lei da Pré-Zeis criou instâncias colegiadas de discussão de políticas públicas que criou um modelo de quase autogestão, de correção de políticas públicas na área de regularização fundiária. Essa foi a grande experiência tida em Recife. Por intermédio do conselho da Pré-Zeis conseguimos ter condições de urbanização e legalização de cada área e a participação da população nesse processo de urbanização.

Em Belo Horizonte, a participação popular foi muito mais pontual. O Pró-Favela não consegue ter um caráter de consolidação como política pública, como teve o Pré-Zeis, em Recife. O movimento popular em Belo Horizonte construiu outros canais de participação cujo início é dos primeiros anos de 1990, mediante novas formas de gestão da máquina pública municipal.

 Ruy Pinho – Do ponto de vista ambiental e urbanístico, qual foi o modelo de gestão mais bem sucedido?

Evangelina Pinho – Do ponto de vista ambiental e urbanístico conseguimos avançar com uma série de experiências vitoriosas, ganhadoras de prêmios, etc., mas, do ponto de vista quantitativo, os números da regularização são muito baixos.

 Ruy Pinho – A regularização fundiária envolve vários aspectos, como o urbanístico, o ambiental, o registral e, principalmente, o da inclusão simbólica. Estamos num processo de evolução, ou seja, no começo dávamos apenas o título, depois, o título registrado, agora existe a preocupação ambiental e cultural. Como isso está sendo enfrentado?

Evangelina Pinho – Ao longo da história da regularização fundiária no país, demos muitos títulos que não eram registráveis. Temos uma má experiência de emissão de títulos sem valor jurídico algum. Somente agora, anos depois do processo de regularização ter sido deflagrado no país, conseguimos emitir os primeiros títulos registrados. Essa é uma realidade compartilhada em todos os locais.

 Ruy Pinho – Mas isso aconteceu porque faltou diálogo com a estrutura registral desde o começo? Os registros não estavam preparados ideologicamente? Dá para se identificar uma ideologia pró-regularização do registro?

Evangelina Pinho – Hoje em dia percebemos que existe uma aproximação muito maior dos registros com os órgãos públicos. Durante muito tempo, essas partes se postaram em situações opostas. Além da falta de diálogo, como o próprio Edésio Fernandes diz, “os cartórios tinham muita culpa no cartório” em relação ao fato de não efetivarem uma série de registros.

Temos notado que as relações entre as prefeituras e os cartórios mudaram, no que diz respeito à regularização dessas áreas. Hoje, já existe uma nova concepção de propriedade, graças à ocorrência de uma grande mudança de paradigmas.

 Ruy Pinho – E é nessa mudança de paradigma que se inclui a preocupação ambiental?

Evangelina Pinho – Sim. A grande tendência da urbanização hoje é agregar a instância de desenvolvimento econômico às comunidades, é trabalhar a urbanização integrada aos programas de desenvolvimento social, econômico e comunitário, criando fontes de geração de renda que permitam a sustentabilidade do ponto de vista ambiental e econômico daquele assentamento. É fundamental envolver a comunidade nesse processo; o problema é o patamar de envolvimento dessa comunidade que hoje se alcança.

 Ruy Pinho – Me recordo de um projeto de inclusão cultural feito pelo arquiteto Ruy Otake, na comunidade de Heliópolis. Não sei qual a metragem, mas sei que foi deixada área verde no local. Como isso foi feito em São Paulo?

Evangelina Pinho – São Paulo tem hoje o maior programa de regularização fundiária do país. Mesmo sendo uma cidade grande, São Paulo ficou excluída das discussões sobre regularização fundiária. Hoje, temos o maior programa do país com cerca de 90 mil títulos em processo de registro, sempre acompanhados de obras de urbanização, bem como iniciativas que trazem para dentro do entendimento da regularização um conjunto de obras sociais.

 Ruy Pinho – Você acha que São Paulo criou um paradigma de tecnologia de regularização? Isso já está sistematizado de alguma forma?

Evangelina Pinho – Enquanto informação sim, por demandas mesmo de organismos internacionais. São Paulo faz parte de grupos internacionais, como a força-tarefa da ONU contra o despejo forçado. Isso tudo já está sistematizado e colocado à disposição desses órgãos, do ponto de vista federal.

Esse trabalho é produzido em conjunto, como é o caso da Aliança de Cidades, um programa do Banco Mundial que produz, junto com a prefeitura, o material que retrata as diferenças de São Paulo no que se refere à urbanização, considerada pioneira sobre diversos aspectos. A Cepal, Comissão econômica para a América Latina, também é um órgão da ONU que tem um trabalho com a prefeitura voltado para o desenvolvimento observatório da habitação. Essas são ações conquistadas nessa atual gestão em função do trabalho que estamos desenvolvendo na habitação.

 Ruy Pinho –   Qualquer  informação sobre as experiências bem sucedidas de regularização fundiária pode ser encontrada nos sites das prefeituras.



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