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ENTREVISTA - Carlos Eduardo Duarte Fleury

“Os registros de imóveis estão plenamente capacitados para utilizar essa nova garantia. Foi a parceria da Abecip com o Irib que permitiu o desenvolvimento de estudos da alienação fiduciária cujos frutos já aparecem.”


Ruy Pinho e Carlos Eduardo Duarte Fleury

O doutor Carlos Eduardo Duarte Fleury, superintendente-geral da Abecip, concedeu entrevista ao registrador Ruy Rebello Pinho, no programa Cartório, Parceiro Amigo , da Anoreg-BR, exibido pela TV Justiça no dia 15 de outubro de 2004.

No programa, Carlos Eduardo Duarte Fleury falou sobre a perspectiva de crescimento para o mercado secundário de crédito imobiliário brasileiro, as alterações trazidas pela lei 10.931/04 e a importância da participação dos registradores nesse processo.

Confira a íntegra da entrevista.

Ruy Rebello Pinho   – O que é a Abecip?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – Abecip é a Associação brasileira das entidades de crédito imobiliário e poupança, uma associação que congrega todas as entidades financeiras que captam poupança e fazem o financiamento imobiliário no Brasil.

Ruy Rebello Pinho   – Há um mercado de crédito imobiliário no país?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – Mercado há, mas ainda bastante insipiente. Hoje, o déficit habitacional brasileiro gira em torno de 6 milhões de habitações, das quais 5,4 milhões estão na área urbana. O Brasil está todo concentrado na área urbana.

Desde 1964, houve um êxito da área rural para a urbana, quando foi criado o sistema financeiro da habitação, o que fez com que houvesse a necessidade de habitações na área urbana brasileira.

O crédito imobiliário depende de fontes de recursos para a concessão de financiamentos. Ele é baseado em dois pilares: a poupança e o FGTS, que é um recurso compulsório, ao passo que a poupança é voluntária, uma vez que a população brasileira deposita suas economias numa caderneta de poupança. Com esses recursos e mediante uma instituição financeira, ocorre o financiamento.

Relativamente à caderneta de poupança, área em que a Abecip mais atua, uma vez que o FGTS é vinculado ao conselho curador do fundo cujo agente operador é a Caixa Econômica federal, nos últimos anos, ela teve uma queda razoável de saldo. O saldo que cresce ano a ano cresce de forma vegetativa, uma vez que os recursos recebem correção monetária pela taxa referencial, TR, e juros de meio por cento ao mês. O que faz com que a poupança cresça, mas as retiradas, comparadas aos depósitos, vêm sendo superiores. Resultado: o crédito a ser oferecido vem diminuindo.

Apesar disso, 2004 foi bastante positivo para o sistema. Apesar de a poupança oferecer um baixo rendimento, sem atratividade para o investidor, o sistema, ainda assim, cresceu graças à simplicidade de captação de recursos, da aplicação de economia e da segurança efetiva do investimento. A população confia e acredita que o seu recurso está bem guardado por um agente financeiro.

No primeiro semestre de 2004, comparado ao mesmo período de 2003, houve um crescimento de mais de 50% das cadernetas de poupança, quando foram aplicados 1,2 bilhão de recursos para o financiamento imobiliário, o que trouxe crescimento para o mercado.

Ruy Rebello Pinho   – Em que medida as dificuldades de recuperação da execução da hipoteca interferem nesse mercado?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – O mercado imobiliário brasileiro vinha, basicamente, com um único tipo de garantia: a hipoteca. Eventualmente, em alguns tipos de financiamentos, era possível utilizar-se, além da hipoteca, a fiança.

A hipoteca vem padecendo dois problemas sérios. O primeiro diz respeito à construção de imóvel. O financiamento é entregue para um incorporador, que vai construir um determinado empreendimento, o qual será dado em hipoteca, ou seja, o terreno e as benfeitorias que vão aceder no terreno.

Outro problema é o dos financiamentos para compradores de imóveis prontos. No caso da produção de construção de moradia, a hipoteca vem sofrendo um tremendo abalo.

No caso da falência da Encol, 42 mil famílias perderam suas casas e algo em torno de 700 empreendimentos em andamento estavam hipotecados. Os moradores entregaram suas economias para a Encol, que não repassou para o agente financeiro para que quitasse proporcionalmente as obrigações.

Quando se estabelecem duas relações jurídicas, comprador e agente financeiro, comprador, devedor e incorporador, incorporador devedor do agente financeiro, levando em conta que o comprador é um hipossuficiente que o mercado precisa proteger, essa operação acaba fazendo com que a hipoteca tenha sua eficácia posta em dúvida.

Foi isso que gerou a preocupação de o agente credor receber seu crédito, seja porque diminuíram os recursos da poupança, seja porque faltou segurança.

Ruy Rebello Pinho   – E o tempo da execução da hipoteca?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – O tempo também tem sido um fator que compromete. Uma execução hipotecária dura, em média, de cinco a seis anos. É impossível imaginar que, nesse período, o comprador permaneça no imóvel, muitas vezes sem pagar as prestações, impedindo assim que esse imóvel cumpra sua função social, que seria retorná-lo ao sistema para que outra família possa utilizá-lo, mesmo que mediante financiamento.

Essa é uma questão bastante séria para o sistema, que precisa ser ajustada, ajuste esse que já existe com a alienação fiduciária.

Ruy Rebello Pinho   – Como nasceu a alienação fiduciária de bens imóveis?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – A alienação fiduciária de bens imóveis nasceu juntamente com a instituição de um novo sistema para o mercado imobiliário, o SFI, sistema de financiamento imobiliário.

Como já dito anteriormente, o sistema tinha apenas duas fontes de recursos para oferecer crédito imobiliário: a caderneta de poupança e o fundo de garantia. Não havia necessidade de se criar um novo sistema para atrair recursos de outros investidores com um sistema voltado para o mercado imobiliário.

Era importante criarem-se bases sustentáveis de eficácia e garantia para esse sistema, razão por que se criou o SFI acoplado à alienação fiduciária de bens imóveis.

É bem verdade que há uma certa confusão no mercado no sentido de que a alienação fiduciária é exclusiva das operações do SFI. Não é. A alienação fiduciária é como a hipoteca, ou seja, uma garantia a mais, uma garantia à disposição da população para que a utilize em seus negócios; não é, portanto, exclusividade do SFI.

Ruy Rebello Pinho   – A confusão deve ocorrer porque as garantias estão na mesma lei?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – A lei 9.514, que criou o SFI, está disposta em três capítulos: o primeiro trata do SFI, que é um sistema moderno voltado para a criação do mercado secundário de crédito, de hipoteca, de alienação fiduciária. Trata-se de um mercado semelhante ao que existe no mercado americano, que opera aproximadamente 4 trilhões de dólares ao ano.

Ruy Rebello Pinho   – Qual é o tamanho do mercado secundário brasileiro?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – É praticamente inexistente. Hoje, o mercado de crédito imobiliário brasileiro está em torno de 4% do PIB, ao passo que o mercado americano, em torno de 60%. Os grandes países da Europa também aplicam recursos em crédito imobiliário correspondentes a 30% a 50% do PIB. Faltavam-nos mecanismos de segurança, que vieram com a alienação fiduciária para efeito do crédito.

Por ocasião da discussão da lei 9.514, dizia-se que a alienação fiduciária favoreceria o credor e prejudicaria o comprador que não pode pagar seu imóvel. O que não é uma visão correta. A alienação fiduciária veio proteger o crédito. Para isso, há necessidade de esse crédito ser recomposto muito rapidamente; há necessidade da utilização da alienação fiduciária como garantia ser muito eficaz.

Em princípio, a alienação fiduciária foi muito bem aceita pela população, haja vista a alienação fiduciária de automóveis, que viabilizou os consórcios de carros, possibilitou o desenvolvimento da indústria automobilística, nas décadas de 1970 e 1980, bem como possibilitou a melhoria da indústria dos eletrodomésticos, o que permitiu à alienação fiduciária de bens móveis ter garantia bastante eficaz.

Por isso criou-se uma nova alienação fiduciária com a mesma estrutura da alienação fiduciária de bens móveis, com adaptações para o bens imóveis.

Ruy Rebello Pinho   – Sete anos após a promulgação da lei, podemos dizer que a alienação fiduciária “pegou”?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – Sou um adepto da alienação fiduciária. Tive o prazer e a honra de participar do anteprojeto que criou a lei do SFI e a alienação fiduciária. Esperava, bastante ansioso, dizer que a lei “pegou”, mas acho que estamos chegando ao ponto ideal.

Estamos tendo um ano de recuperação da estabilidade econômica, de recuperação dos empregos, com créditos mais abundantes, o que nos leva a crer, portanto, que a alienação veio para ficar.

Agora, por que, passados sete anos do advento da lei, não encontramos tantos imóveis financiados com garantia de alienação fiduciária?

Num primeiro momento houve uma preocupação com a lei nova, quando muitos perguntavam se não existia nela alguma inconstitucionalidade. Por isso houve agentes financeiros que se preocupavam com uma eventual argüição de inconstitucionalidade da lei.

Havia a necessidade do chamado teste dos tribunais, o que já aconteceu. No Segundo Tribunal de Alçada de São Paulo, que é o tribunal competente para julgar a alienação fiduciária de bens imóveis, encontram-se somente julgados favoráveis à alienação fiduciária. Passado esse tempo;, vamos, agora, encontrar a utilização da alienação fiduciária em garantia com muito mais vigor e quantidade.

A Caixa Econômica federal está utilizando a alienação fiduciária desde dezembro de 2000; hoje devemos ter chegado aos 100 mil imóveis financiados com alienação fiduciária.

Ruy Rebello Pinho   – O que o senhor acha da participação dos registros na efetividade da alienação fiduciária e do SFI?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – Aproveito para prestar uma homenagem ao Irib com quem a Abecip fez uma parceria justamente para desenvolver o sistema e os mecanismos de garantia da alienação fiduciária.

Os registros de imóveis estão muito capacitados para utilizar com conhecimento pleno e eficaz essa nova garantia. Não vejo nenhum problema com os registradores, pelo contrário, quero mencionar que foi a parceria da Abecip com o Irib que permitiu o desenvolvimento de estudos e mecanismos para melhor compreender a alienação fiduciária cujos frutos já vêm aparecendo.

Ruy Rebello Pinho   – Essa melhor compreensão significa uma padronização de entendimentos?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – Sem dúvida nenhuma. Esse é o ponto central. A palavra-chave do SFI é padronização. Se não houver padronização, não há como ter operações em escala. Precisamos padronizar o entendimento, padronizar a conduta, padronizar as operações. E o Irib tem demonstrado isso.

Ruy Rebello Pinho   – A Cibrasec também fez uma parceria com o Irib com vistas à padronização da CCI. O objetivo é justamente o mesmo: dar ciência ao mercado de que há uma solução única aplicada aos registros.

Carlos Eduardo Duarte Fleury – Praticamente, a Cibrasec nasceu dentro da Abecip. É uma entidade associada à Abecip e vem mostrando ao mercado secundário esse tipo de padronização.

Ruy Rebello Pinho   – Como tem sido a compreensão da alternância de sistemas: o SFI e o SFH vão conviver ou o SFH vai desaparecer? E de que forma a alienação fiduciária está sendo interpretada pelos dois sistemas?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – Os dois sistemas vão se complementar. O SFH vai atuar mais com as operações da produção, considerando o ciclo mais curto de um projeto de construção, se comparado ao recurso da poupança que tem liquidez imediata.

Em relação à alienação fiduciária, esse foi o maior ponto de discussão com os cartórios de imóveis, ou seja, se ela pode ou não ser usada no SFH ou se é exclusiva do SFI.

De fato, a alienação fiduciária é um novo instituto jurídico do nosso Direito, uma garantia que tanto pode ser utilizada pelo SFH como pelo SFI bem como por qualquer outro sistema. Ela não é, obrigatoriamente, vinculada a esses dois sistemas.

A informação que se precisa ter é se os órgãos centralizadores, os órgãos funcionais de cada sistema, autorizam ou não a utilização da alienação fiduciária.

Ruy Rebello Pinho   – Alguns contratos parecem híbridos, como se o contrato participasse dos dois sistemas. Seria um problema de redação dos contratos?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – É um problema de redação sim. Como a alienação é um instituto novo, tem-se o cuidado de mencionar a lei 9.514, a lei do SFI, para mencionar a instituição da alienação fiduciária em processos cujos recursos venham do SFH.

No artigo 39 da lei 9.514 está estabelecido que não se aplicam ao SFI as disposições da lei do SFH, justamente para não haver contaminação de um sistema pelo outro, razão por que se criou essa dificuldade. No SFI, pode-se usar a alienação; no SFH, ela também pode ser usada graças à autorização do Conselho monetário nacional.

Nesse aspecto, os contratos são mal redigidos, porque se menciona a lei para fazer referência à alienação fiduciária e não porque se trata de um sistema híbrido. A lei 4.380, que estabelece as operações do SFH, autoriza a utilização da garantia de alienação fiduciária, o que permite a convivência perfeita dos dois sistemas.

Ruy Rebello Pinho   – A grande novidade da lei 10.931 é a criação do patrimônio de afetação?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – O patrimônio de afetação é a grande novidade da lei 10.931, lei, aliás, que trouxe algumas grandes novidades para o sistema.

Ela vai permitir, por exemplo, que em operações de construção de imóveis não aconteça mais o que aconteceu com a Encol, ou seja, que os compradores percam suas propriedades.

O patrimônio de afetação é corresponde a um empreendimento constituído como uma sociedade de propósito específico. O empreendimento fica destacado do patrimônio do incorporador e não mais responde pelas dívidas e obrigações do incorporador, a não ser as dívidas vinculadas ao próprio empreendimento.

Com isso, vai existir uma garantia eficaz para o comprador. Se o incorporador vier a falir, esse bem não é arrecadado para a massa. Os compradores, em assembléia, podem decidir pela continuidade da obra sem qualquer burocracia.

Efetivamente, trata-se de um ganho para a sociedade, que vai oferecer segurança para os compradores para que adquiram o imóvel na planta, sem riscos para o incorporador.

Além disso, encontramos na nova lei a inclusão de sistemas de garantias, como, por exemplo, o chamado pagamento do incontroverso.

Nas ações que versam sobre crédito imobiliário, o mutuário, muitas vezes, questiona uma parcela do financiamento, que, simplesmente, deixa de pagar, descumprindo suas obrigações. Segundo a lei, o comprador, obrigatoriamente, terá de informar o que e qual parcela pretende ou não discutir; a parcela não-discutida terá de ser paga diretamente ao credor. O que vai gerar retorno dos recursos e possibilitar novos financiamentos.

Associadas à lei da alienação fiduciária, que teve alguns acréscimos, à lei da cédula de crédito bancário e à lei da CCI, essas duas questões vão permitir que essa nova lei gere importante segurança para o mercado imobiliário brasileiro.

Ruy Rebello Pinho   – Todas essas mudanças vão significar que o mercado secundário de crédito imobiliário do Brasil vai crescer?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – Não tenho dúvida. Com essas novas garantias e com as garantias da lei 9.514, o mercado, hoje, está capacitado a oferecer mais crédito. Com a estabilidade da economia, esses créditos vão aparecer em abundância, como todos nós esperamos.

Ruy Rebello Pinho – De que forma a securitização contribui para esse crescimento do mercado?

Carlos Eduardo Duarte Fleury – A securitização é um processo de busca de novos recursos, como, por exemplo, dos fundos de pensão, cujos recursos são mantidos a longo prazo.

É um novo caminho para se buscar recursos aplicáveis no mercado imobiliário. Com isso, o mercado se desenvolve, gera empregos e o Brasil vai resolvendo seus problemas de novas construções. É um processo importantíssimo para o mercado brasileiro cujo sucesso vem sendo garantido nos grandes países.



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