BE1348
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JORNAL VALOR ECONÔMICO - 11 e 12/10/2004 - ECONOMIA, DIREITO E A SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO CAMPO - Justiça agrária não garante eficácia no cumprimento das sentenças.
Boas intenções não bastam e podem causar mal à sociedade. É o que ocorre com o anúncio da criação de uma Justiça Agrária no Brasil. O tema agrário já recebeu tratamento especial na lei brasileira, como demonstra a criação do Estatuto da Terra. Cheio de boas intenções, o referido estatuto não conseguiu promover a reforma agrária, nem deu a estabilidade institucional à lide do campo.
No caso presente, busca-se resolver o problema dos conflitos de terra, que recrudescem no país nem tanto pela ausência de legislação adequada, mas sim pela ineficiência do Estado em fazer valer a lei vigente.
A estratégia adotada pelo MST de invadir uma propriedade, aguardar a reintegração da posse, e invadi-la seqüencialmente depois, mesmo com a sentença judicial determinando a reintegração da posse, indica claramente a falta de poder coercitivo da ordem judicial. E nisso, a criação de uma Justiça Agrária não só não ajudará, como poderá agravar o problema. A impressão é que o governo pretende dar tratamento especial ao MST, o que não acontece com tantos outros grupos de interesses, que continuarão a ter suas lides resolvidas pela Justiça comum. Por que não se criar um tribunal especial para questões imobiliárias, ou para questões tributárias ou ainda de relações de consumo? Todas essas controvérsias também têm suas especificidades.
O descumprimento da ordem judicial estabelecida é observado com freqüência escandalosa e mostra o descuido com que as decisões judiciais vêm sendo tratadas. Na prática, o proprietário perde toda a garantia constitucional do direito à propriedade, deixando de ter segurança para alocar recursos produtivos. Se plantar, não sabe se irá colher: portanto, não planta, não investe, não cuida. Tal é a conseqüência das inúmeras invasões, até mesmo em fazendas produtivas, que impedem o plantio, destroem maquinário e prejudicam o desenvolvimento da economia como um todo.
A ânsia criadora de institutos legais é típica dos países de tradição de direito codificado com viés positivista, e já foi apontada como nefasta entre nós por Sérgio Buarque de Hollanda. Erroneamente, dá-se mais ênfase ao ato regulador do que aos efeitos da sua aplicação, não se dando atenção devida ao custo de funcionamento do sistema legal, que compreende também o custo de monitorar o acatamento da decisão julgada. Assim, o governo pensa que resolverá um problema, num âmbito onde os recursos já são escassos, a partir da criação de novas leis e de uma nova justiça agrária, o que só inflaria os gastos administrativos, sem significar maior eficácia no cumprimento das sentenças judiciais.
Um dos criadores da aplicação da economia ao estudo do direito, Ronald Coase, afirma que “os tribunais deveriam compreender as conseqüências econômicas das suas decisões e também deveriam leva-las em consideração ao tomar suas decisões”. Ao focar na criação de mais estatutos legais como solução para problemas de descumprimento da lei, assume-se implicitamente que o sistema judiciário funciona a custo zero, o que não ocorre no mundo real.
A lei somente será eficaz quando a determinação judicial for acompanhada pela sua implementação. Dado que nas sociedades regidas pela lei o Estado detém o monopólio do uso da força, cabe a ele fazer valer as decisões judiciais, sem o que a própria lei tem a função esvaziada.
Quer queiramos ou não, o cumprimento da lei pelos indivíduos que compõem a sociedade é fruto de uma relação de custo-benefício. O infrator avalia os riscos e potenciais custos posteriores em que irá incorrer antes de praticar um ato ilícito. Os custos de descumprir uma norma legal serão maiores se o sistema jurídico operar de modo eficiente, identificando o infrator, julgando-o de modo equilibrado e fazendo-o cumprir o julgado. Ao contrário, se o sistema jurídico não funciona efetivamente, o infrator só terá benefícios ao infringir, já que seus custos serão desprezíveis.
Assumir que a sociedade cumprirá a lei sem visualizar o custo de não faze-lo é acreditar na inexistência de oportunismo. Como diz Oliver Williamson, nem todos são oportunistas, mas basta que alguns sejam para que os custos de transação existam. Assim, já que o Estado falha em fazer cumprir as decisões judiciais, os invasores de terra continuarão infringindo tais decisões, a custos insignificantes. Portanto, de nada adiantará a criação de mais um tribunal com sentenças por escrito, que na prática não são cumpridas. Na situação atual, os invasores de terras têm pairado acima da Justiça, endossados pelo governo.
A preocupação com o tema das invasões de terras traz à tona uma das áreas do direito pouco discutidas recentemente, a do direito agrário. Este ramo tem grande relevância e extrapola a visão tradicional de agrarismo focado somente na propriedade da terra. O direito agrário deve evoluir para um enfoque realista que considere os custos de se fazer valer a lei, analisando questões de maior abrangência, como a da rede de contratos que caracterizam as relações sociais relativas à produção e distribuição do agronegócio.
Temas como contratos futuros, propriedade tecnológica, relações de cooperação nas cadeias produtivas, regulação ambiental que afeta a atividade produtiva, entre outros, são importantes aspectos do direito agrário que vêm sendo negligenciados pelos estudiosos.
Pelas nossas limitações abrimos brechas para soluções simplistas dos conflitos agrários, que passam pela hipótese da criação de mais uma justiça especial. Que o judiciário deve ser melhorado é ponto pacífico, e uma maneira de faze-lo é trabalhar na formação de advogados e de juízes que compreendam o impacto econômico das suas decisões.
Outra solução adequada seria a criação de varas agrárias dentro da competência da Justiça estadual, como já acontece com as varas especializadas em execução fiscal, infância e juventude, família e sucessões. Tal solução, inclusive, estaria de acordo com a norma do artigo 126 da Constituição Federal. O que vem falhando, é bom ressaltar uma vez mais, é a ação efetiva do Estado com relação ao cumprimento da lei e das sentenças judiciais, sendo de se lamentar que o Estado sinalize na direção contrária quando veste o chapéu do infrator.
*Décio Zylbersztajn é professor titular da FEA/USP
**Érica Gorga é doutoranda da Faculdade de Direito da USP/Programa de Estudos dos Agronegócios (Pensa) / Centro de Estudos de Direito, Economia e Organizações (Cedeo)
(Jornal Valor Econômico - 11 e 12 de outubro de 2004 – Pág. A6)
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