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Patrimônio de afetação - A reforma por caminhos alternativos - Melhim Namem Chalhub[i]*


A nova lei sobre as incorporações imobiliárias mostra que a reforma do Judiciário não se faz somente alterando as regras do processo judicial. É preciso, também, criar formas alternativas de resolução de conflitos, de modo a liberar o Judiciário de tarefas que o sobrecarregam desnecessariamente.

A arbitragem, por exemplo, é uma forma de solução de conflitos realizada por árbitros privados. Outros exemplos são os mecanismos extrajudiciais de recuperação de empresas e de garantia de continuidade das incorporações imobiliárias, esta última contida na lei que acaba de ser sancionada pelo presidente da República.

São regras que autorizam a livre negociação entre credores e devedores visando a prevenir situações de desequilíbrio econômico-financeiro da empresa devedora e preservar a atividade produtiva. Os novos mecanismos permitem às partes interessadas agir diretamente, com simplicidade e rapidez, visando à continuação do negócio, de forma a assegurar a circulação de riquezas, a manutenção da fonte de renda dos trabalhadores e o cumprimento da função social do contrato e do crédito.

A lei de recuperação de empresa substitui o rígido processo judicial de concordata por um mecanismo flexível, que viabiliza a recuperação da empresa mediante processo direto de negociação entre os credores e a empresa devedora. Dessa negociação resulta um plano de recuperação que, uma vez aprovado pela assembléia de credores, é levado à homologação judicial e implementado por um comitê de credores.

A nova fórmula poderá dar mais confiança ao mercado, encorajando novos investimentos na produção.

Já a nova lei sobre as incorporações imobiliárias, que agora entrou em vigor, cria um regime especial de segregação patrimonial, denominado ''patrimônio de afetação'', que visa a assegurar a continuação da obra e entrega dos apartamentos aos adquirentes, mesmo em caso de falência da incorporadora.

Qualificado como ''patrimônio de afetação'', o conjunto de bens, direitos e obrigações vinculados a uma incorporação torna-se incomunicável em relação aos demais bens, direitos e obrigações da empresa incorporadora, circunstância que protege a incorporação contra os eventuais riscos patrimoniais da empresa. Trata-se de um regime de vinculação de receitas, pelo qual as prestações pagas pelos adquirentes, até o limite do orçamento da obra, ficam afetadas à construção do edifício, vedado o desvio para outras obras. O controle financeiro é atribuído a uma comissão de representantes dos adquirentes e se faz mediante contabilidade própria de cada incorporação, destacada da contabilidade da incorporadora, e demonstrações periódicas do andamento da obra, em cotejo com a programação financeira. A movimentação dos recursos é feita em conta corrente bancária específica.

Em caso de falência da empresa incorporadora, a comissão de representantes dos adquirentes assumirá a administração da incorporação, promoverá a venda, em leilão extrajudicial, das unidades imobiliárias do ''estoque'' da empresa incorporadora e prosseguirá a obra com autonomia, imune aos efeitos da falência, recolhendo à massa falida, no final da obra, o saldo positivo, se houver.

Outra importante inovação introduzida pela lei é o procedimento administrativo de retificação de registros de imóveis. Pela nova lei, as retificações de registro passarão a ser feitas pelo próprio oficial do Registro de Imóveis, só se levando ao Judiciário as situações em que não houver acordo entre as partes ou houver lesão do direito de propriedade de algum confrontante.

Esses são apenas alguns exemplos de mecanismos extrajudiciais que podem contribuir para a reforma do Judiciário.

Inúmeros outros casos poderiam e deveriam ser resolvidos satisfatoriamente também sem ocupar o Judiciário.

O inventário e a partilha de bens, quando não envolver bens de menores, a separação de casais, quando consensual, o cancelamento de usufruto, a consolidação ou a reversão da propriedade, no fideicomisso, a adjudicação compulsória de propriedade imobiliária, todos esses são atos que, entre outros, poderiam ser excluídos do Código de Processo Civil e atribuídos aos notários ou oficiais dos registros públicos, bem como às autoridades fazendárias, só se recorrendo ao Judiciário se e quando houver alguma controvérsia ou lesão de direito.

Em suma, a desjudicialização da resolução de certos conflitos pode contribuir para a reforma do Judiciário, ao retirar parte do volume de processos que o sobrecarrega, liberando o magistrado para se ocupar das questões que efetivamente justifiquem a atuação da autoridade judiciária.
 



Lei do Patrimônio de Afetação nas incorporações imobiliárias - Cronologia de uma idéia vitoriosa


Irib difunde um conceito original

1996 – projeto de monografia do Professor Melhim Namem Chalhub apresentado na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, sobre a afetação patrimonial como forma de adaptação do trust ao direito brasileiro.

1997 – Apresentação de monografia na Faculdade de Direito da UFF, contendo anteprojeto de lei sobre a afetação, em geral, como forma de proteção patrimonial.

1999 – 8 de julho, apresentação de anteprojeto do Professor Melhim Namem Chalhub ao Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, pelo qual (i) o acervo das incorporações imobiliárias é caracterizado como patrimônio de afetação, incomunicável em relação aos demais negócios da empresa incorporadora e responsável somente pelas dívidas da obra respectiva; (ii) cria um regime de vinculação de receitas, pelo qual as prestações pagas pelos adquirentes, até o limite do orçamento da obra, ficam afetadas à construção do edifício; (iii) confere poderes a uma Comissão de Representantes dos adquirentes para fiscalizar a incorporação e (iv) estabelece que a falência da empresa incorporadora não atinge os bens, direitos e obrigações da incorporação afetada, autorizando a Comissão de Representantes a prosseguir a obra com os recursos do seu próprio orçamento, livre dos efeitos da falência.

1999 –  28 de setembro, apresentação do anteprojeto e debate no XXVI  Encontro Nacional do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, realizado em Recife, PE. Conheça aqui a excelente entrevista na ocasião concedida ao Irib.

1999 – novembro, registro do anteprojeto na Biblioteca Nacional sob  o n° ISBN 85-7147-155-X, como parte do livro Propriedade imobiliária – função social e outros aspectos, de Melhim Namem Chalhub, Editora Renovar, contendo sua fundamentação doutrinária em relação à função social da propriedade.

1999 – 24 de novembro – apresentação do Projeto de Lei n° 2.109/99 na Câmara dos Deputados, pelo Deputado Ayrton Xerez, reproduzindo o anteprojeto protocolado no IAB e divulgado no livro Propriedade imobiliária – função social e outros aspectos.

2000 –  23 de fevereiro, aprovação do anteprojeto pelo IAB, em sessão plenária.

2000 – 1° de março – Ofícios do Presidente do IAB n°s 1910/2000 a 1918/2000,  encaminhando o anteprojeto, respectivamente, ao Ministro da Justiça, ao Secretário de Desenvelvimento Urbano, ao Presidente do Banco Central do Brasil, ao Presidente da Caixa Econômica Federal, aos Presidentes do Conselho Federal e do Conselho Seccional do Estado do Rio de Janeiro da Ordem do Advogados do Brasil,  ao Presidente do Senado Federal e ao Presidente da Câmara dos Deputados.

2000/março a 2001/agosto – discussão do Projeto de Lei 2.109/99 no âmbito do Executivo, envolvendo a Secretaria da Habitação da Secretaria do Planejamento da Presidência da República, o Ministério da Fazenda, o Banco Central do Brasil e a Receita Federal, com a participação das entidades representativas do financiamento imobiliário e dos setores da construção civil, entre elas a ABECIP, o SECOVI, a ADEMI e a CBIC, com apresentação de sugestões para aperfeiçoamento do Projeto.

2001 – 4 de setembro – Edição da Medida Provisória n° 2.221, regulamentando o patrimônio de afetação, cujos termos alteram o anteprojeto do IAB em dois aspectos: (1°) retira o caráter obrigatório do patrimônio de afetação, tornando-o uma faculdade da empresa incorporadora, e (2°) acrescenta disposições de natureza tributária que, ao invés de proteger os adquirentes, agravam sua situação, tornando-os responsáveis solidários por todas as dívidas da empresa incorporadora.

2001 – setembro até março de 2004 – discussão da M. P. 2.221/01 por parte dos órgãos públicos e das entidades representativas dos setores interessados, acima referidos, visando eliminar as distorções da Medida Provisória e recompor as características originais do projeto em respeito à natureza da afetação, de modo a assegurar a incomunicabilidade de cada patrimônio de afetação sem que isso diminua os privilégios dos créditos fiscais e previdenciários, o que acabou sendo alcançado mediante criação de um regime tributário especial para os patrimônios de afetação, com uma alíquota única de 7% para IR, PIS/PASEP, CSLL e COFINS.

2004 –  9 de março – o Poder Executivo envia à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 3065/2004, para ser anexado ao Projeto de Lei n° 2.109/99, adotando a estrutura do anteprojeto encaminhado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, acrescentando a regulamentação de um regime tributário especial, opcional, com alíquota de 7%.

2004 – 10 de março até 7 de julho – instalação da Comissão Especial na Câmara dos Deputados, apresentação e discussão das 66 emendas que forem apresentadas, bem como formulação e apresentação do Substitutivo do Relator, no qual foi introduzido grande número de emendas, sem que isso, entretanto, desvirtuasse o Projeto.

2004 – 7 de julho – a Câmara dos Deputados aprova o Substitutivo do Deputado Ricardo Izar, Relator do Projeto de Lei n° 2.109/99, ao qual foi anexado o Projeto de Lei do Executivo n° 3065/04, (i) pelo qual, a critério da empresa incorporadora, o acervo da incorporação imobiliária pode ser caracterizado como patrimônio de afetação, incomunicável em relação aos demais negócios da empresa incorporadora e responsável somente pelas dívidas vinculadas à obra respectiva; (ii) cria um regime de vinculação de receitas, pelo qual as prestações pagas pelos adquirentes, até o limite do orçamento da obra, ficam afetadas à construção do edifício; (iii) confere poderes a uma Comissão de Representantes dos adquirentes para fiscalizar a incorporação e (iv) estabelece que a falência da empresa incorporadora não atinge os bens, direitos e obrigações da incorporação afetada, autorizando a Comissão de Representantes a prosseguir a obra com os recursos do seu próprio orçamento, livre dos efeitos da falência.

2004 – 8 de julho – o Senado Federal aprova o Substitutivo do Relator do PL 2.109/99 e 3065/04, sem alteração.



[i]* Melhim Namem Chalhub é advogado e membro efetivo do Conselho Científico do Irib. Artigo publicado originalmente no JB, edição de 7/8/2004, p. 11



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