BE1211
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Ponto crítico 1/5 - Acompanhe, numa série de 5 edições, o desenvolvimento do debate acerca das modalidades contratuais do Sistema Financeiro da Habitação e Sistema Financeiro Imobiliário – Lei 4.380/64 e Lei 9.514/97, respectivamente.
Abaixo, o registrador André Trotta (São Manuel/SP) sustenta, com talento e arte, que as regras do SFI não poderiam ser aplicadas no contexto estrito dos contratos formalizados sob o manto do micro-sistema do Sistema Financeiro da Habitação. Nesse ambiente, a incidência de regime fiduciário, emissão de certificados de recebíveis, termos de securitização, participação de companhias securitizadoras, etc. estariam vedados. Identificando uma “dupla regência”, contratos formalizados nessas condições esbarrariam na proibição prevista no artigo 39 da Lei n° 9.514/97.
No artigo seguinte, Dr. Alexandre Assolini Mota (advogado especialista e membro do Conselho Científico do Irib) procurará demonstrar que os instrumentos de securitização estão relacionados com o mercado secundário; a menção das expressões: “companhias securitizadoras”, “regime fiduciário” , “certificados de recebíveis” e “termos de securitização”, por si só, não determina o sistema pelo qual os créditos imobiliários são originados. Podem ocorrer em ambos os sistemas, como procurará demonstrar.
Nas demais edições serão publicadas decisões normativas de órgãos reguladores do mercado e que se relacionam diretamente com o debate aqui travado.
Desejo que os excelentes textos possam motivar o estudo e o debate. Os comentários, como sempre, são muito bem-vindos! Afinal, as conclusões são importantes para todos nós, operadores do direito. (SJ)
Ponto crítico 1/5 - SFI x SFH – a especificidade dos sistemas condiciona os contratos - André Trotta [i]*
Sobre o assunto SFI X SFH gostaria de expor meu posicionamento, da forma mais sucinta possível.
De início, narro um breve histórico, para situação do problema. Em seguida, desenvolvo meu posicionamento. Finalmente, exponho alguns pertinentes questionamentos de colegas com quem discuti sobre o assunto, apresentando minha opinião sobre cada um deles.
Quero ressaltar, ainda, que minha decisão pela recusa do título não foi imediata. Muito meditei à época, até porque um contrato-padrão emanado de uma instituição financeira do porte do Banco X., que conta com profissionais sérios e capazes para aconselhá-la, não foi produzido de forma descuidada. Mas isto, embora tenha determinado naturalmente uma cuidadosa análise de minha parte, por si só, não foi e nem poderia ser capaz de modificar o meu convencimento. Creio que, uma vez que a atenção estava voltada para os aspectos já discutidos e sedimentados em outras oportunidades (possibilidade de utilização da alienação fiduciária, de captação de recursos do FGTS e de utilização de instrumento particular), não se cogitou, na ocasião, da preparação da minuta do contrato-padrão, sobre a questão ora debatida.
Iniciando, então, com o breve histórico, esclareço que foi apresentado para qualificação um contrato-padrão do Banco X. pelo qual, com recursos do FGTS e com garantia real da modalidade alienação fiduciária de bem imóvel, as partes celebraram venda e compra por instrumento particular.
No preâmbulo do contrato e em diversas de suas cláusulas havia referências às regras do SFH ou sua aplicação.
Em outras cláusulas, entretanto, estipulou-se a aplicação de regras do Capítulo I da Lei n° 9.514/97, que trata do SFI, permitindo a instituição do regime fiduciário, a emissão de Certificados de Recebíveis e de Termos de Securitização, a participação de companhias securitizadoras etc., vale dizer, mecanismos próprios do SFI.
Diante dessa dupla regência, entendi que o contrato incidiu na proibição prevista no artigo 39 da Lei n° 9.514/97, razão pela qual o título foi devolvido com exigência.
Para concluir o histórico, esclareço que fui procurado pela imobiliária interessada, pelas representações local e regional do Banco X e, finalmente, pelo jurídico da referida instituição financeira e, em todas as oportunidades, o questionamento partia do princípio de que a recusa decorria da utilização da modalidade da garantia – alienação fiduciária de bem imóvel – o que jamais ocorreu. Após tal ressalva ao departamento jurídico, o procurador, então, compreendeu o verdadeiro motivo da qualificação negativa e, alguns dias depois, o contrato foi reapresentado com alterações que excluíram as regras do SFI (satisfazendo a exigência) e que modificaram a modalidade de garantia, que passou a ser hipotecária (desnecessariamente, pois, repito, a utilização da alienação fiduciária jamais constituiu óbice ao registro pretendido).
A questão, pelo visto, repercutiu e chegou à discussão, razão pela qual passo, então, a expor os motivos que me conduziram a entender aplicável o artigo 39 da Lei n° 9.514/97.
Qualificação registral - limites
Parece-me que estamos diante da sempre tormentosa questão da definição da esfera de atuação do registrador.
Ora, somos agentes da administração, subordinados ao princípio da legalidade estrita e a quem não é dado reconhecer nem mesmo inconstitucionalidades flagrantes, a quem não é dado imiscuir-se nos aspectos negociais das operações trazidas a registro.
Basta lembrar, a título de exemplo, o caso da desafetação das áreas verdes de loteamentos. Temos de fazer a averbação da desafetação aprovada por lei municipal a despeito da vedação expressa da Constituição Bandeirante, posto que, como órgãos da administração, os registradores, e até mesmo os juízes de direito quando atuam na qualidade de corregedores-permanentes, não podem reconhecer a inconstitucionalidade de lei municipal, na medida em que esta, se passou pelo processo legislativo e pela sanção do executivo, submetendo-se ao controle de constitucionalidade preventivo, presume-se constitucional até que o poder judiciário declare o contrário.
É exatamente o que ocorre no caso do ISS sobre as atividades notariais e registrais. Pode o fiscal de tributos do município deixar de autuar um notário ou um registrador que descumpre obrigações relativas a esse tributo por considerá-las inconstitucionais? É evidente que não; só se deterá diante de uma ordem judicial. O mesmo ocorre com as desafetações: não cabe à administração – da qual fazemos parte – questionar a constitucionalidade de uma lei editada, sancionada, publicada e vigente, pois que dotada, repito, da presunção de conformidade com a constituição e com todo o ordenamento jurídico, por imposição dogmática do direito.
Outro exemplo, agora relacionado com a impossibilidade de intromissão nos aspectos negociais do título, seria a inobservância, por parte de um condômino, do direito de preferência de outro condômino, ao alienar sua fração ideal a terceiro sem oferecê-la ao condômino preterido, em igualdade de condições. Nesse caso, já se decidiu que o oficial deve registrar o título, cabendo ao condômino preterido fazer valer seu direito em juízo.
Em oposição à idéia de que somos meros agentes da administração, engessados por situações como aquelas acima exemplificadas, a lei e algumas decisões administrativas parecem indicar que teríamos uma qualificação, pois que seríamos “profissionais do direito”, o que nos credenciaria a analisar, com nosso “prudente critério”, se determinada situação de fato amolda-se às hipóteses, por exemplo, de parcelamento do solo sujeitas ao registro especial ou se, ainda no campo dos fatos, a existência de ações contra o incorporador pode comprometer a higidez do empreendimento.
Quais seriam, então, os limites de nossa atuação? Ao responder tal indagação não tenho qualquer pretensão de criar uma tese definitiva sobre o assunto. Busco apenas adotar, para minhas decisões, um critério uniforme, constante e lógico, exatamente para evitar disparidades, instabilidade casuística e perplexidades, pois tudo isso infirma nossa posição, compromete nossa credibilidade e encoraja aqueles que não reconhecem a vital importância de nossa atividade.
Somos agentes da administração qualificados pelo diferencial de sermos “profissionais do direito”. Isto significa que temos, reconhecidamente, a capacidade de atuar na administração em atividade de alta complexidade jurídica, de modo que podemos analisar situações de fato para verificar se estão enquadradas na complexa moldura jurídica que a regula. Por vezes, a própria lei ou normas administrativas superiores nos conferem maior liberdade nessa análise de fato, sobretudo quando os critérios legais ou normativos não forem objetivos. São as situações em que estamos autorizados a utilizar nosso “prudente critério”.
Mas isto não quer dizer que podemos deixar de cumprir a lei, por mais que nos pareça inconstitucional ou irracional, pois esta, lembre-se mais uma vez, foi elaborada por quem decide o que é certo ou errado – o legislador – e entrou em vigor dotada da presunção de sua legitimidade, em todos os aspectos.
Outra constante que parece aclarar um pouco os limites de nossa atuação está no fato de que sempre que temos maior liberdade, estamos diante de questões de ordem pública, que envolvem consumidores, o mercado em geral etc.; diversamente, sempre que somos advertidos para não nos intrometermos nas questões de mérito do negócio, os interesses nele contidos têm caráter puramente patrimonial, individual e disponível, bastando ver que, no caso da inobservância ao direito do condômino preterido que exemplifiquei acima, pode o prejudicado deixar de adotar as previdências que a lei lhe confere, de modo que o negócio subsistirá íntegro, válido e eficaz.
Finalmente, um critério doutrinário sedimentado também pode ser de grande valia: a interpretação deve ser no sentido de facilitar o registro, desde que com isso não se obviem imposições de ordem pública, por evidente.
Em conclusão, o critério que adoto é: observar a legalidade estrita, com verificação do conteúdo dos negócios quando (i) a própria lei impuser direta e expressamente (v.g., análise das cláusulas do contrato-padrão dos empreendimentos de parcelamento do solo); (ii) a lei, com reforço de decisões administrativas dos órgãos superiores, atribuir-nos a tarefa de analisar a situação de fato com nosso “prudente critério”, para subsumi-lo à hipótese legal; e (iii) quando houver imposições de ordem pública, claras e diretas (v.g., proibição de penhor agrícola por prazo superior a 3 anos ou de constituição de novas enfiteuses após o início da vigência do NCC).
Securitização, CRI´s regime fiduciário: matéria de ordem pública
Aplicando tudo isso ao caso, entendi que o assunto tem repercussão no mercado, pela possibilidade de emissão e circulação de papéis, que, por suas características (presença de companhias securitizadoras, possibilidade de instituição de regime fiduciário e modalidades: Certificados de Recebíveis e Termos de Securitização) levarão os investidores à crença de que estão no âmbito do SFI.
Assim, por um lado, trata-se de matéria de ordem pública, e não de meros interesses individuais disponíveis; por outro lado, não se está diante de questão de fato e tampouco de situação subjetiva, mas sim de uma questão de direito, objetiva. Como há norma proibitiva expressa e a matéria é de ordem pública, aplicando o critério acima exposto, entendi que não há espaço, no caso, para que possamos exercer as eventuais liberdades que nossa qualidade de “profissionais do direito” permitiria, de modo que devemos agir como agentes da administração, subordinados ao princípio da legalidade estrita.
Exposta minha opinião, submeto à discussão alguns questionamentos formulados por colegas com quem debati o assunto, colocando o questionamento e, em seguida, meu posicionamento.
A alienação fiduciária de bens imóveis é possível em contratos do SFH
Discutiu-se esse tema no passado, mas a questão já está superada, pois além de não ser exclusiva do SFI, o CMN, por resolução, autorizou expressamente a utilização de tal modalidade de garantia para os contratos do SFH, com o que estou de pleno acordo.
A ARISP analisou o contrato e concluiu pela possibilidade do registro
Antes de mais nada, observo que não tive acesso à discussão no âmbito da ARISP e não li qualquer deliberação da nobre instituição.
Pelo que entendi, o enfoque era outro, na ocasião. Tratava-se da origem dos recursos, com discussão acerca da possibilidade ou não de se aplicar recursos do FGTS aos contratos regidos pelo SFI. Corrijam-me se eu estiver errado: a ARISP entendeu que a responsabilidade era do agente financeiro, não cabendo ao registrador investigar tal questão.
Em sendo verdadeiras as assertivas acima, estou de acordo com esse posicionamento por dois motivos.
Primeiro, porque a questão da captação de recursos é estranha aos negócios jurídicos objeto dos registros – venda e compra e alienação fiduciária em garantia -, constituindo mero antecedente de fato para a consecução do mútuo que dá origem à garantia a ser registrada. Havendo violação das regras de captação de recursos, o negócio submetido ao registro permanecerá intacto. Apenas a instituição que liberou os recursos e aquela que os captou e/ou seus administradores é que responderão, civil, criminal e administrativamente por suas respectivas condutas perante os órgãos competentes (no âmbito administrativo, o Banco Central ou o CMN).
Segundo, porque a questão da captação de recursos é obscura na Lei n° 9.514/97, inexistindo, de todo modo, qualquer proibição expressa de captação de recursos seja no FGTS seja em qualquer outra fonte. O assunto está regrado pelo artigo 4° e, principalmente, seu parágrafo único. Ali se diz que “poderão ser empregados recursos provenientes da captação nos mercados financeiro e de valores mobiliários, de acordo com a legislação pertinente” (destaquei). Esta norma pode ser interpretada de forma abrangente, no sentido de que os recursos podem ser captados “livremente” (art. 4°, caput) e também nos mercados financeiro e de valores mobiliários, ou restritiva, no sentido de que as operações é que são “livres”, segundo as condições de mercado (art. 4°, caput), mas os recursos, só podem ser captados nos mercados financeiros e de valores mobiliários.
Diante da possibilidade de se sustentar com razoabilidade ambas as posições relativas à captação dos recursos (inclino-me pela segunda, que, a meu ver, estaria consentânea com o espírito geral da lei) e do princípio de que as interpretações devem tender a facilitar os registros, parece-me correto permitir o registro, cabendo à jurisdição, se e quando provocada, remover a obscuridade para definir o exato alcance do artigo 4° e seu parágrafo.
De todo modo, como o enfoque era outro, não vejo aplicabilidade da correta conclusão da ARISP ao caso que analisei.
A lei proíbe normas do SFH em contratos do SFI, mas nada diz acerca de contratos do SFI com regras do SFH
O problema, a meu ver, não se coloca. Para saber se um contrato é regido por um ou outro sistema de nada ou pouco importa o nomem juris adotado pelas partes ou a indicação genérica de dispositivos legais aplicáveis.
A regência do contrato por um ou outro sistema depende, preponderantemente, das regras contratuais efetivamente adotadas. Assim, se a parte declara que não possui outro imóvel no município sob pena de vencimento antecipado da dívida, está claro que a avença está no âmbito do SFH; se o contrato prevê a instituição do regime fiduciário, a emissão de Certificados de Recebíveis, a lavratura de Termos de Securitização (que, aliás serão averbados na matrícula do imóvel) e a presença de companhias securitizadoras, está claro que foi celebrado sob a regência do SFI.
Se, como no caso analisado, o contrato contiver regras de ambos os sistemas, exatamente porque são essas regras que caracterizam um ou outro é que não é possível afirmar se é um contrato do SFH com regras do SFI ou vice-versa, pois, sendo ambos ao mesmo tempo, tal investigação se mostra de todo irrelevante. Assim, sempre que houver regras específicas e próprias dos dois sistemas, o contrato estará enquadrado no artigo 39 da Lei n° 9.514/97.
Os dois sistemas, hoje e na prática, estão muito próximos, de modo que o registro do contrato não causaria prejuízo
Volto às premissas de que temos de ser uniformes, constantes e coerentes. O fato de hoje, circunstancialmente, os sistemas estarem supostamente próximos, não chega a permitir o registro, pois amanhã poderão voltar a distanciar-se e a norma proibitiva, abstrata como é e deve ser, não leva e não pode levar em consideração situações momentâneas. Ademais, se o legislador entendeu por bem proibir a situação híbrida, o prejuízo decorrente dessa hibridez é presumido, notadamente pelos agentes da administração (é exatamente a mesma situação do penhor agrícola por prazo superior a 3 anos: pouco importa se de fato a inobservância de tal prazo causa ou deixa de causar prejuízo efetivo, pois diante da proibição expressa, não há que se perquirir acerca do efetivo prejuízo , havendo direta e imperativa limitação à vontade das partes).
O histórico da elaboração da Lei n° 9.514/97 revela que o artigo 39 foi elaborado apenas para afastar do SFI o dirigismo das regras protetivas do SFH
Mais uma vez sou obrigado a admitir que não acompanhei com profundidade as discussões que cercaram a elaboração da Lei n° 9.514/97.
E talvez seja justamente por isso que, com o espírito não-contaminado do conhecimento pessoal dos antecedentes da lei, minha leitura do dispositivo seja no sentido de que ele é claro, não dando margem a interpretações, histórica, autêntica ou qualquer outra.
Não há, no meu modo de ver, o que interpretar. A vedação é peremptória: não se aplicam as regras do SFH a contratos com características do SFI.
Lembre-se que, quando publicada, a lei assume “vida própria”, desprendendo-se do projeto, das discussões, da conjuntura que lhe deram origem. Por isso, quando a lei diz algo, não há, no âmbito da função administrativa, lugar para se buscar o que quis dizer. A adoção das formas de interpretação, sempre revestida de excepcionalidade (em virtude do risco de se invadir a esfera de atuação da função legislativa ou da jurisdição), só é possível quando, sobre determinada situação, a lei não diz ou diz de forma obscura, incompleta ou ambígua qual a regra a ser aplicada.
E mais, o questionamento acima reforça o quanto venho sustentando. Com efeito, minha exigência decorreu exatamente do fato de que um contrato com regras de mercado, celebrado no âmbito do SFI, continha regras dirigidas e protecionistas, como, por exemplo, a obrigação do mutuário de declarar que não possui outro imóvel no município, contrariando a liberdade de contratar de acordo com as regras do mercado.
Desculpando-me pela extensão do presente e esperando ter colaborado com a profunda discussão, coloco-me à disposição para novos debates.
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