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A importância sócio-econômica dos sistemas registrais - Enrique Rajoy Brey *
1. Antecedentes, criação e consolidação do Centro Internacional de Direito Registral
Como é do conhecimento dos registradores brasileiros e estudiosos do direito registral em geral, o Cinder – Centro Internacional de Direito Registral, atualmente sediado em Madri, Espanha, nasceu em 1972 em Buenos Aires, Argentina.
A iniciativa partiu de um instituto argentino que, por ocasião da reforma dos registros da propriedade que acabava de se realizar naquele país, considerou conveniente criar um centro internacional de debates no qual se discutisse a problemática concernente ao registro dos direitos reais imobiliários.
A tarefa de consolidação desenvolvida durante os anos seguintes não foi fácil. A meu ver, isso aconteceu principalmente pela dificuldade que seus membros tiveram para fazer com que a sociedade compreendesse a função do registro da propriedade. Além do caráter muito técnico e especifico do assunto, houve, a meu juízo, um outro aspecto que contribuiu para aumentar essa complexidade: o seu caráter econômico.
Na medida em que crescem a proximidade e a conexão entre as economias dos diferentes países e na medida em que aumenta a liberdade de intervir no mercado de crédito e nas transações dos direitos, multiplica-se o número de seus titulares e consolida-se a importância do papel do registro da propriedade. Sem dúvida, durante esses primeiros anos de vida do Cinder, o marco era muito diferente daquele que existe hoje. Em numerosos países, como, por exemplo, na Espanha, ainda não existia uma lei que permitisse a liberdade de crédito. O Banco Hipotecário detinha o monopólio da concessão dos empréstimos com garantia hipotecária. Os demais operadores eram obrigados a requerer a pertinente autorização administrativa.
A partir de 1981, a lei 2/81 e o RD 685/82 libertaram o mercado hipotecário. Essa mesma lei permitiu a emissão de cédulas hipotecárias, de bônus hipotecários e de participações hipotecárias com o objetivo de permitirem as entidades de crédito acorrer ao mercado para obter novos recursos para refinanciamento dos empréstimos que tinham concedido; a lei 19/92 admitiu a titulação hipotecária.
Mas não eram somente essas práticas monopólicas que impediam que os registros da propriedade cumprissem a função que hoje desenvolvem. Existiam outros obstáculos, como o reduzido número de proprietários, a limitação geográfica no âmbito da qual os negócios jurídicos reais se efetuavam, as duras sanções penais e sociais com as quais se castigava o não-pagamento das dívidas etc. Essas circunstâncias outorgavam às transações dos direitos e às suas titularidades uma segurança e uma publicidade tão elevada que a função do registro da propriedade tornava-se simplesmente prescindível.
Assim, durante esses primeiros anos, o Cinder dedicou-se fundamentalmente ao estudo de figuras jurídicas concretas. Tratava-se de procurar fórmulas legais que resolvessem as necessidades que a sociedade demandava. Dessa maneira, efetuaram-se complexos estudos sobre a propriedade horizontal, a pré-horizontalidade, a propriedade compartida, as hipotecas flutuantes e cambiais, etc.
A situação mudou radicalmente a partir de 1996, quando, no Congresso de Lisboa, foi eleito um novo secretário-geral, o senhor Rafael Arnáiz Eguren. A ele coube o mérito de aprofundar o estudo da relação entre o registro da propriedade, de um lado, e o desenvolvimento econômico e a paz social, de outro. Uma relação que talvez já existisse antes, mas que, de qualquer maneira, o novo marco surgido depois da queda do muro de Berlim, da globalização da economia e da maturação das teorias liberais e democráticas, foi enfatizado. Graças à sua tarefa, aos trabalhos que, sob a forma de apresentações e comunicações, foram publicados nos diferentes congressos realizados sob sua segura condução, a vinculação entre o registro da propriedade e o desenvolvimento econômico e social dos países ficou em evidência. Graças a essas circunstâncias, o Cinder consolidou-se e, na atualidade, dos oito institutos que participaram da sua fundação, ele passou a ter um total de 62, que representam 41 países diferentes.
Hoje, ninguém duvida de verdades como as de que o capital internacionalizou-se; ou de que sua movimentação depende unicamente – ou, pelo menos, fundamentalmente – da rentabilidade que produz o investimento; ou de que essa rentabilidade demanda segurança jurídica como um pressuposto essencial, já que, como é óbvio, ninguém investe se não lhe são outorgadas garantias, de um lado, da titularidade do direito que adquiriu e, de outro, dos benefícios derivados de sua utilização. Tampouco ninguém duvida – e esta segunda conclusão é a que resulta verdadeiramente interessante – que o registro da propriedade é a instituição encarregada de produzir essa segurança jurídica que demandam os investidores, sejam companhias, entidades bancárias ou particulares.
2. O problema da organização dos registros da propriedade
Produzida a mudança econômica, social e política que aconteceu ao longo da década de 1980, desde logo a questão fundamental foi e ainda continua a ser, em muitos países, a de precisar a maneira como devem estar organizados os registros da propriedade, com o objetivo de proporcionarem aos virtuais investidores a segurança que demandam do modo mais eficaz. O paradoxal desse assunto é que, apesar de há muitos anos a função de definir e fixar os direitos reais é considerada nos Estados mais desenvolvidos como uma das mais complexas, quando se põe a questão para os países em vias de desenvolvimento – do Leste da Europa e de numerosos da América Central e da América do Sul –, ela é considerada uma tarefa menor, menos por sua importância do que pela facilidade como ela possa ser cumprida. Com base nesses preconceitos, conclui-se que o registro da propriedade pode ser organizado como um simples arquivo que processa a informação e a disponibiliza para o público com a maior celeridade possível.
No que diz respeito ao controle da legalidade e à depuração dos dados que chegam, apresentados com o objetivo de serem inscritos, foram julgados como uma tarefa supérflua. Argumentou-se que “todo mundo conhece os seus próprios direitos sobre os imóveis, inclusive os vizinhos conhecem aqueles que os constroem. Em conseqüência, basta criar uma boa planimetria que possibilite aos titulares dos direitos identificar seus próprios bens, dotar as repartições de potentes equipamentos informáticos que lhes permitam processar e difundir a informação a uma alta velocidade e, por fim, pressionar ou mesmo obrigar as pessoas a apresentarem seus títulos para que a definição e atribuição dos direitos imobiliários reais, frente a todos, seja um fato”.
As poucas controvérsias que eventualmente surgissem seriam resolvidas pelos tribunais. Evidentemente, impossível imaginar uma solução mais simples, econômica e rápida. Na minha opinião, o êxito desse sistema assim idealizado deveu-se às vantagens que aparentemente ele apresentava. A primeira delas, de caráter fiscal, já que se interpretou que a inserção das titularidades jurídicas nessas bases de dados permitiria a identificação dos proprietários dos bens e que, dessa maneira, eles poderiam ser facilmente compelidos a pagarem os impostos devidos tanto à aquisição de seu direito como ao desfrute ou à simples titularidade do mesmo.
A segunda vantagem facilitaria o fluxo de saída da informação, graças à maneira e à rapidez com que ela se efetuaria, e o número de usuários do sistema se incrementaria consideravelmente. Não só o utilizariam aqueles que estivessem diretamente interessados na aquisição de um direito real imobiliário como as entidades que financiassem as operações, os possíveis provedores de bens ou serviços de uma pessoa com o objetivo de conhecer ou de pelo menos obter algum indício de sua situação patrimonial, seus credores, as instituições encarregadas de elaborar estatísticas ou fazer investigações de mercado, etc. O resultado disso seria uma significativa captação de recursos, que, por sua vez, permitiriam recuperar num breve período de tempo o investimento efetuado e que, transcorrido esse prazo, transformariam a repartição em questão numa fonte de recursos para o Estado.
Houve outros três aspetos que, a meu ver, também contribuíram para a aceitação e a divulgação do sistema proposto: a facilidade de venda do mesmo, em todo os níveis, tanto público quanto privado; a celeridade com que a simplicidade de sua implantação lhe permitiria começar a operar; e o controle que, graças a esse sistema, os governos pensavam exercer sobre as propriedades, com os riscos de uma utilização que procurasse tirar vantagens em benefício daqueles, um problema que essa possibilidade traz consigo.
Com base nessas premissas e nesses interesses, nos últimos anos proliferou a criação de repartições desse tipo, às quais não se tem hesitado em denominar registros da propriedade. O problema é que, apesar da volumosa quantidade dos recursos gastos, nem os investidores acorreram, nem aconteceu a desejada conversão dos direitos reais imobiliários em ativos econômicos, nem se desenvolveu o crédito hipotecário, nem, obviamente, foram resolvidos os problemas do solo e da moradia, dando lugar assim, em numerosas oportunidades, a uma situação social dificilmente sustentável.
3. O fracasso do modelo
Sem dúvida, a divulgação do fracasso desse modelo, um registro da propriedade que poderíamos chamar de recording, deveu-se especialmente à obra do peruano Hernando de Soto. Em seu livro, Os mistérios do capital, que se converteu num best-seller mundial, ele identifica e analisa as causas desse fato.
Três são os problemas que, segundo o mencionado autor, os legisladores e o registro da propriedade deverão resolver para que os direitos reais possam se transformar em ativos econômicos, para que o registro possa cumprir seu papel regulador do mercado, de instrumento de dinamização econômica e de desenvolvimento da justiça social, para o qual está chamado a protagonizar.
O primeiro desses problemas consiste em legislar sobre o procedimento de legalização dos assentamentos e das ocupações informais, efetuadas desde há muitos anos ou em virtude de títulos que, apesar de socialmente reconhecidos, não constam por escrito; em outras palavras, determinar os requisitos exigíveis para transformar essas situações de fato em direitos subjetivos.
O segundo dos problemas consiste na construção de um consenso que, concretizado em leis, fixe as regras que, de um lado, permitam priorizar um direito sobre outros, que, recaindo sobre um mesmo bem material, sejam incompatíveis com ele; de maneira tal que excluam seu reconhecimento em todos os níveis e que, ao mesmo tempo, hierarquizem os diferentes direitos que, em sendo compatíveis, recaiam igualmente sobre um mesmo imóvel.
Pense-se, a esse respeito, que uma das funções do Direito e, concretamente, desse consenso nas leis que acabamos de mencionar, consiste em permitir que sobre um mesmo bem material conflua uma pluralidade de direitos. Sem dúvida, essa é a maneira mais comum de re-valorizar esse bem. Se não existir este consenso, só caberia um direito sobre cada bem. Sem dúvida, quando consideramos um imóvel, é factível e freqüente que sobre ele recaiam vários outros direitos.
Assim, junto com o nu-proprietário, pode existir um usufrutuário, um arrendatário, um superficiário, uma servidão, uma substituição fideicomissária, etc. O titular de cada um desses direitos pode agregar outros novos, como, por exemplo, o de hipoteca, cuja conseqüência, finalmente, fará com que cada um desses direitos se torne objeto de uma pluralidade de interesses, de expectativas. Do ponto de vista econômico, esse desmembramento significa a otimização do aproveitamento do bem, o que, por sua vez, implica a multiplicação de seu valor. Caso esse desmembramento dos direitos não se dê na prática, sua própria possibilidade já produz tal efeito. Nesse sentido, caberia alertar que, dessa maneira, pela via do fomento, da permissão da coexistência de uma pluralidade de direitos sobre um mesmo imóvel, fomenta-se também a função social da propriedade, favorecendo a distribuição dos direitos que gravitam sobre a terra.
O terceiro e ultimo problema que De Soto aponta é a necessidade de proteger a criação e a transação de qualquer um dos direitos reais imobiliários, com o objetivo de evitar riscos na contratação. Com base nessa segurança, consegue-se que os investidores e os que fazem empréstimos intervenham no mercado. Ora, para isso, é necessário que os direitos estejam claramente definidos, atribuídos e ordenados, de maneira que, por exemplo, aquele que empresta ao usufrutuário de um imóvel possa saber, com plena segurança e a um custo razoável – sempre inferior, consideravelmente inferior ao benefício que estima obter – que seu devedor é realmente o titular do direito que lhe oferece em garantia, bem como qual é o valor dessa garantia ou, o que é o mesmo, qual é sua extensão. Ou seja, que faculdades ela confere a seu titular e qual é seu lugar em relação a outros possíveis credores do mesmo devedor. Também, que essa mesma e hipotética pessoa que faz um empréstimo tenha claro que, em caso de confluir seu direito com o de outros titulares, a categoria de sua garantia não seja injustamente alterada e que, em caso de ser modificada, o seja em função de um detalhado estudo jurídico que uma pessoa independente fará da legalidade dessa mudança.
Mais ainda, o sistema deve igualmente garantir que, ao ser esta decisão eventualmente apelada judicialmente, caso se considere que ela foi incorretamente adotada e que o dano resulta irreversível, este dano lhe será materialmente reparado. Por fim, a lei deve garantir ao credor hipotecário a existência de um adequado procedimento de execução da garantia, mediante um procedimento que, no caso do não-cumprimento da obrigação, lhe seja atribuída a titularidade do direito e, se for procedente, ponha à sua disposição a possessão do bem num prazo breve.
A solução desses três problemas é evidentemente jurídica. Entretanto e paradoxalmente, pelas causas acima expostas, na hora de resolvê-los, na hora de concretizar a organização e o desenho cartórios de registro de imóveis, tem-se prescindido da colaboração e da liderança dos juristas. A conseqüência tem sido o fracasso dessas repartições. A ausência de benefícios para os particulares tem condenado de fato seu funcionamento ao ostracismo. Hoje, tanto os Estados quanto os organismos internacionais, sejam eles o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Usaid, o BIRD, etc. já reconheceram a inoperância do sistema que se tentou impor.
4. O trabalho do Cinder na organização dos novos registros prediais
A confusão que a situação descrita tem causado em numerosos Estados e em organismos internacionais constitui um dos desafios aos que, a meu ver, o Cinder deverá fazer frente; talvez seu desafio mais importante. Acredito ser tão urgente quanto imprescindível reorientar os esforços que estavam sendo feitos e que continuam a ser feitos, com o objetivo de criar um sistema eficaz de definição e atribuição dos direitos reais imobiliários.
A Declaração de Antigua, subscrita no mês de fevereiro próximo passado por especialistas de quinze países e ratificada pelo último Congresso do Cinder, em junho, na cidade de Moscou, foi um primeiro passo nesse sentido. Convém determo-nos, ainda que brevemente, em seu estudo. No entender dos mencionados especialistas, no marco dos direitos reais imobiliários, só é possível obter a segurança, falando em termos gerais, de duas maneiras: acorrendo ao sistema de registro de direitos ou de fé pública, ou seja, a um registro jurídico; ou criando um registro de títulos ou de mera oponibilidade, ou seja, um registro administrativo, cuja ação seja complementada pela segurança econômica dispensada por uma companhia seguradora de títulos.
Após estudar e comparar as vantagens e desvantagens de ambos os sistemas, a declaração optou pela defesa do primeiro deles por considerá-lo mais eficaz, barato e seguro.
Ao compará-lo com o registro de direitos, os redatores da Declaração de Antigua consideraram que o sistema de seguros de títulos apresentava as seguintes deficiências.
• Ele não oferecia segurança jurídica. A razão dessa deficiência é clara, dado que nesse sistema de registro a função de fazer um seguro é cumprida por uma entidade privada, cujos pronunciamentos não podem produzir nenhuma mutação na situação jurídica de um direito. Conseqüentemente, o jogo das presunções, que é básico, como veremos, não pode ser aplicado para garantir os direitos que constituem o objeto das transações imobiliárias. A incerteza jurídica determina que, mesmo sendo válido o negócio do qual deriva meu direito, se o direito do transmitente estiver de algum modo viciado em sua causa, sua resolução afetaria, no mesmo sentido, meu próprio direito. Esse fato origina, por sua vez, a existência de um grau mais elevado de litigiosidade entre os particulares.
• Os custos das transações eram mais elevados nesse sistema, como conseqüência da pesquisa que – para poder assegurar os efeitos de um determinado negócio jurídico – era preciso ser feita cada vez que se concretizava um deles. Entretanto, os especialistas concluíram que, enquanto os registros de direitos fixam e, portanto, também informam aos interessados a respeito dos direitos reais que recaem sobre um bem, ou seja, sobre sua titularidade, extensão e categoria, dispensando-os assim de terem que levar adiante qualquer investigação, o registro de títulos unicamente publica à sociedade, a terceiros, quais são os direitos que podem opor-se; obviamente, caso eles decidam celebrar um negócio tendo como base um desses direitos, deverão previamente investigar qual é sua verdadeira situação jurídica.
• Por fim, é o caso de destacar que as assimetrias informativas são também maiores no registro de títulos em virtude da complexidade do processo de pesquisa necessária para que se obtenham as informações e para que se possa qualificar os títulos. Isso significa que, no momento de contratar, uma das partes sempre está mais bem informada do que a outra, razão pela qual empregará uma série de recursos (tanto materiais quanto de tempo) para descobrir a verdade que ignora: se seu vendedor é verdadeiramente o titular do direito que vai adquirir; se seu direito tem efetivamente a extensão alegada; se, no caso de um direito de garantia, ele tem a categoria alegada, etc. Conseqüentemente, a taxa de sinistros também é mais elevada nesses sistemas do que nos do registro de direitos.
Todos esses argumentos, que na cidade de Antigua foram analisados de um ponto de vista teórico, confirmam-se na prática como se vê das estatísticas e dos gráficos apresentados a seguir.
Gráfico
O primeiro gráfico refere-se aos custos de transação necessários para a constituição de uma hipoteca no âmbito dos países que integram a União Européia. Nos países onde foi adotado um sistema de registro de títulos ou administrativo (Itália, França, Portugal), os custos de um crédito hipotecário são substancialmente mais caros do que naqueles onde foi implantado um registro jurídico ou de direitos (Dinamarca, Espanha, Reino Unido, Alemanha).
Gráfico
O segundo gráfico, que contempla o mesmo âmbito geográfico, refere-se ao tempo gasto para a formalização de um crédito hipotecário (pesquisa) assim como a execução da garantia em caso de não-cumprimento. Novamente os países pertencentes à União Européia onde vigora um sistema de registro de títulos oferecem uma estatística pior que aqueles onde foi adotado um registro de direitos.
A razão dessa lentidão maior se deve exclusivamente aos registros de títulos que proporcionam uma relação de direitos oponíveis, mas, em nenhum caso, garantem a titularidade daqueles provindos de seu transmitente, nem a extensão, nem a categoria dos direitos que constituem o objeto da transação. Essa deficiência obriga-o a pesquisar antes de efetuar o contrato, o que obviamente atrasa e torna mais oneroso o fechamento do negócio. De outro lado, quando chega o momento da execução, é freqüente que, em virtude da falta de garantia da titularidade dos direitos, um terceiro se oponha à execução, alegando ser o titular do direito que é objeto da execução, ou negando ao demandante a pretendida extensão ou categoria desse direito.
Gráfico
As conseqüências negativas não terminam aí. De acordo com o terceiro gráfico, o volume de crédito hipotecário é sensivelmente menor nos países onde o registro é de títulos (França, Itália ou Bélgica). Conseqüência: os usuários devem recorrer aos créditos pessoais ou caucionários para financiar a aquisição de uma moradia ou a de qualquer negócio que pretendam iniciar, o qual, por sua vez, supõe o pagamento de taxas de juros mais elevadas.
Gráfico
O quarto gráfico, relativo às taxas de juros hipotecários vigentes na União Européia, mostra que a Espanha (exemplo de país onde vigora um registro de direitos) possui uma taxa notavelmente inferior à que constitui a média das nações que integram a EU. Isso mostra que o registro de direitos favorece a existência do crédito hipotecário, além de reduzir as taxas de juro que se aplicam a tais créditos, o que, sem dúvida, constitui um benefício para todos e, em geral, para a evolução econômica de um país.
Gráfico
Tal como se observa no quinto gráfico, a situação repete-se quando nos voltamos para a América do Sul. Nesse caso, a fonte é o BID e não a FHE, Federação Hipotecária Européia. Observamos que os países onde os custos de transação são mais elevados são os que mantêm registro de títulos (Argentina e Uruguai).
5. A importância e categorias dos princípios hipotecários
Comprovada, pois, a superioridade do registro jurídico sobre o administrativo, a Declaração assinala quais são os princípios fundamentais de sua organização, cujo objetivo é garantir sua eficiência. Para evitar estender-me demasiadamente, não vou me deter na análise nem na explicação dos problemas que apresentam, muitos dos quais são bem conhecidos dos senhores. Simplesmente vou enumerá-los e apontar qual é a função de cada um dos três grandes grupos que, a meu ver, é preciso sejam ordenados: os jurídicos, os organizativos e os mecânicos.
Interessar-me-ia destacar previamente duas notas a respeito deles. Pô-lo em prática requer investimento humano predominante sobre o material. Segundo, esses princípios são interdependentes, razão pela qual a falta ou a deficiente aplicação de um deles pode significar a ineficiência do resto.
a) Princípios jurídicos
Os princípios jurídicos são aqueles que fixam os efeitos produzidos pelos assentos registrais. Para serem operativos, esses efeitos devem ser respeitados por todos. Caso contrário, os juízes não os aplicarão ou o legislador fará freqüentemente exceção deles, o que, ao invés de gerar confiança, vai provocar receio dos investidores e dificultar ou mesmo tornar impossível a formação de um mercado hipotecário.
Os princípios jurídicos constituem a base do direito hipotecário. Sua falta de reconhecimento, ou, o que é quase a mesma coisa, a falta de solução para os problemas de titularidade, preferência ou exclusão, numa palavra, de ordenamento dos direitos reais imobiliários, segundo as normas do mais puro direito civil, nos conduz a uma situação semelhante à que descrevemos anteriormente: aquela em que o registro da propriedade não existia ou na qual ele funcionava como um mero recording.
Qual é essa situação? A que existia na Roma clássica: uma situação na qual só uma pequena porcentagem da população podia ostentar a titularidade dos direitos reais imobiliários; segundo a qual, além disso, o âmbito geográfico em que as transações se efetuavam era tão reduzido que a simples realização de um ato solene de tomada de posse era suficiente para que todos aqueles que poderiam ser prejudicados pelo negócio de transferência efetuado tivessem conhecimento dele bem como estivessem em condições de impugná-lo perante os tribunais. De maneira similar, era uma situação segundo a qual os direitos de garantia e, em particular, as hipotecas produziam o deslocamento possessório do bem em favor do credor, em face da qual, enfim, existia a prisão por dívidas.
Acredito que, hoje em dia, todos concordamos que nenhuma dessas circunstâncias é desejável ou defensável. Por isso a necessidade de um bom direito hipotecário, de um registro da propriedade eficiente. Ora, a efetivação desse objetivo exige que se evite que os interesses daqueles que possam ficar afetados por um negócio jurídico imobiliário sejam prejudicados quando este for inscrito, quando se imponha seu reconhecimento à sociedade.
Isso implica, por sua vez, a presença de quatro fatores: proporcionar aos operadores uma informação confiável antes de efetuar a contratação; garantir as titularidades resultantes dos negócios por eles efetuados; executar eficazmente as mesmas, quando se tratar de direitos de garantia; e indenizá-los no caso de sofrerem algum prejuízo por causa do erro em que se tenha incorrido no momento de informá-los ou de garantir-lhes as titularidades.
Os princípios jurídicos tentam precisamente alcançar essas finalidades. Como os senhores já sabem, eles são quatro: legitimação, fé pública, inoponibilidade e prioridade. A respeito de sua aplicação, só farei a observação de que o Direito é uma ciência abstrata, como todas as ciências, uma ficção que o ser humano tem criado para favorecer suas convivências e o melhor aproveitamento dos recursos, sempre limitados, que existem sobre a face da Terra. Seu funcionamento baseia-se, portanto, no jogo das presunções (de legalidade, de exatidão, de veracidade, etc.), que tornam possível que a realidade seja determinada, seja formada pela vontade do legislador. Por isso, sua decisão é igualmente justa se ele atribuir titularidade a um direito segundo as normas civis bem como se o fizer de acordo com as hipotecárias. Obviamente, isso não significa que o legislador careça de mais limites do que os puramente formais. Sua ação deverá ter em conta outras circunstâncias, especialmente, as sociais e históricas.
Todavia, como depois teremos ocasião de comprovar, são precisamente essas circunstâncias que justificam a aplicação do princípio de fé pública registral, em face do velho aforismo romano que postulava que ninguém poderia dispor daquilo que não tivesse, e que, conseqüentemente, não cabiam as aquisições a non domino.
b) Princípios organizativos
Trata-se de princípios que tornam possível a existência dos princípios jurídicos anteriormente assinalados. Conseqüentemente, também produzem efeitos econômicos e sociais derivados deles. Convém notar que uma aplicação defeituosa ou uma não-aplicação desses princípios provoca a irrelevância ou, para sermos mais exatos, a perversidade dos mencionados princípios jurídicos.
Eles são, pois, requisitos indispensáveis para que o sistema de registro de direitos possa funcionar. Mais ainda, em numerosas ocasiões, as falhas no funcionamento do mercado hipotecário não têm obedecido a um erro na legislação sobre os efeitos e o valor da inscrição, mas a uma deficiente regulamentação desses princípios organizativos. Para que o registro de direitos possa funcionar, para que ele seja eficiente, é preciso que o número de erros que eventualmente ele possa cometer, tanto no momento de definir e fixar os direitos reais imobiliários, como ao informar a respeito de sua titularidade, categoria ou extensão, sejam mínimos. E que, além disso, os danos derivados dos erros que ocorrerem sejam indenizados. De outra maneira, caso não preveja essa indenização ou caso os erros se multipliquem, o mercado passará a ter que se basear numa informação não confiável, o que, a longo prazo, acarretará a perda da confiança na informação elaborada pelo registro, que passará a ser interpretada como uma ameaça.
Nessas circunstâncias, o mais lógico é que o mercado acabe por desaparecer ou por refugiar-se na informalidade. Multiplicar-se-ão esses erros, caso se prescinda do princípio da qualificação; ou seja, se forem aceitos no registro direitos que não tiverem sido comprovadamente constituídos, ou se, de um ponto de vista puramente mecânico ou de gestão, não se adotarem certas técnicas que permitam (ou, pelo menos, facilitem) a veracidade da informação.
Da mesma maneira, a tendência poderá ser a de não indenizar os danos ocasionados de maneira improcedente, caso não se respeite o princípio de responsabilidade e não se adotarem as medidas precisas para obter seu adequado funcionamento, especialmente o denominado princípio de autofinanciamento. Nesse sentido, convém destacar que existem só dois sistemas válidos e eficientes de responsabilidade: o que a atribui ao Estado e o que a atribui aos registradores.
Ora, a experiência demonstra que, quando assume essa responsabilidade, o Estado tende a adotar toda sorte de medidas de modo a evitar ter que afrontá-las; medidas tais como as que vigoram na Alemanha, que restringem claramente a autonomia da vontade das partes contratantes, ao mesmo tempo que retardam consideravelmente o processo de inscrição dos direitos, ao converter cada um deles numa espécie de juízo (com citação das partes afetadas e a concessão, para as mesmas, de prazos para alegarem o que estimarem oportuno), ou outras que imponham ao adquirente de um direito deveres de diligência tais que, na prática, o Estado nunca será condenado ao pagamento da indenização cabível.
Por isso, além de outras razões relativas ao próprio funcionamento das repartições, a melhor solução consiste em atribuir aos registradores a responsabilidade pelos danos que seus erros eventualmente causarem. Não obstante, esse sistema requer que os registradores, por sua vez, assegurem os riscos com uma companhia de notória solvência, de maneira que garantam a terceiros prejudicados o recebimento das indenizações cabíveis.
c) Princípios mecânicos de organização registral
Os denominados princípios mecânicos de organização registral têm como finalidade facilitar a inexistência de erros, o que, como já vimos, constitui um dos pressupostos do funcionamento do registro de direitos.
Definitivamente, esses princípios facilitam a produção do denominado “efeito espelho”, em virtude do qual a mera consulta da última inscrição praticada no fólio aberto para um prédio é suficiente para nos dar a conhecer sua situação jurídica. Assim, facilitam-se e reduzem-se os custos desse conhecimento, que exige que cada prédio tenha aberto um só fólio nos livros do registro; que cada assento inclua um único direito; que cada direito esteja corretamente delimitado e outorgado a um titular ou a vários em condomínio pro indiviso; que os direitos compatíveis estejam hierarquizados, e os que não, tenham sido excluídos em favor de quem obteve a prioridade.
Os princípios dos quais falamos são os seguintes: os de fólio real, trato sucessivo, especialidade e rogação.
6. Principais problemas e obstáculos para o correto funcionamento de um registro jurídico
No meu entender, hoje em dia, os principais problemas que a criação e o funcionamento de um registro de direitos apresenta são os seguintes.
a) A pouca relevância concedida ao recurso humano
É evidente que, como ocorre com qualquer ciência (e é claro, também com o Direito), o capital humano é o mais importante. Na realidade, o volume de investimento em pesquisa e desenvolvimento constitui o indicador que permite distinguir entre os países desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos.
Mas acontece que o investimento na formação não é atrativo do ponto de vista das “vendas”. Em primeiro lugar, porque quase não se vê, porque sua presença não se percebe pelos sentidos, mas pela análise racional das mudanças que produz. Em segundo lugar, tampouco é atrativo porque seus efeitos só se percebem a médio prazo, o que, de um ponto de vista político – e é este o poder ao qual corresponde decidir – nem sempre é rentável.
Provavelmente, é por essas causas que numerosos países, na hora de organizar um registro da propriedade, julgaram que era mais importante dotá-lo dos mais modernos avanços tecnológicos e de planejamento do que se preocupar com a qualificação do pessoal que haveria de dirigi-lo. A complexidade da função que ser-lhes-ia encomendada – a de ordenar e de tornar possível a própria existência do mercado imobiliário – demandava para seu adequado funcionamento a presença de técnicos altamente especializados no conhecimento do direito hipotecário.
A esse respeito, eu gostaria de deixar claro o seguinte: em todos os sistemas e em todos os países desenvolvidos existe a qualificação, existe um rigoroso controle da legalidade dos títulos outorgados pelos particulares, antes que os direitos neles documentados sejam assegurados. A única diferença consiste em que, nos países onde há registro de títulos, esse estudo é feito pelas companhias privadas de seguros, que assumem o risco econômico em caso de erro, ao passo que nos países onde o registro é jurídico ou de direitos, a qualificação é efetuada pelos registradores, que, segundo os diferentes modelos, também assumem o risco ou o transferem para o Estado.
Daí o absurdo da afirmação que amiúde se ouve em favor de priorizar a celeridade e a simplicidade acima de tudo. Eu sei que essa afirmação “vende” muito bem; ou, o que é o mesmo, que o encanto de seu som faz com que tenha uma muito boa acolhida nos leigos no assunto. Ora, é inquestionável que os sistemas que parecem responder a esse esquema, aqueles nos quais existem os denominados registros de títulos ou administrativos, além de serem mais caros, são também os mais lentos tanto no que diz respeito à formação e transferência dos direitos como à execução das garantias hipotecárias. Por isso, insisto em que se deve priorizar o investimento na formação humana acima de qualquer outro, pois só ele vai permitir criar e sustentar um sistema de registro eficiente.
b) A deficiente intelecção da função do registro
O primado do fator humano, por sua vez, supõe ressaltar que a mais importante das funções do registro é a de elaborar informação, não conhecimento; ou, dito em outras palavras, é a de fazer com que o registro garanta a terceiros a certeza das titularidades que publica, não que lhes dê a conhecer determinados dados que permitam a esses terceiros e hipotéticos adquirentes de um direito tirarem conclusões sob sua responsabilidade, portanto, sem a certeza de que seus transmitentes podem celebrar o negócio em questão.
No Primeiro Congresso Ibero-americano de Direito Registral, realizado recentemente em Lima, tive oportunidade de ouvir mais de uma vez a afirmação de que a finalidade do registro é facilitar aos particulares o acesso à informação, ou, o que é o mesmo, colocá-la na rede para assim permitir, segundo a expressão mais ou menos textual usada pelo senhor John Mc Laughlin, presidente da Universidade de New Brunswick, o nascimento de uma nova democracia na base da transparência.
Acontece que isso não é um mercado de ternos. É obvio que, quando decido mandar fazer um, quanto mais informação eu possuir a respeito dos diferentes alfaiates que existem na cidade tanto melhor. O uso dessa informação me vai permitir comparar os preços, a qualidade e os tempos de execução que cada um oferece e, em conseqüência, decidir o que é mais proveitoso para meus interesses. Ora, se isso é assim, é unicamente porque há várias opções, porque, ainda sendo umas melhores do que outras, todas, no entanto, são válidas e porque no final é preciso escolher e ninguém pode fazê-lo por mim.
Porém, a propósito do que estamos falando – os direitos reais – a situação é outra. Os mencionados direitos são excludentes, razão pela qual cada um só tem um titular (a propriedade de um bem, por exemplo, que pertence a ti, ou a mim, ou a um terceiro), uma categoria e uma extensão. Caso alguém me proporcione esses dados, posso dizer que há informação disponível. Em sentido diverso, se a mesma pessoa me der só indícios e hipóteses, fico obrigado a escolher, mais ainda, a arriscar. Isso porque o Estado abdica de uma das funções que lhe correspondem (provavelmente, com o objetivo de evitar responsabilidades) e cria uma situação de discriminação entre os que podem financiar uma investigação da situação jurídica de um prédio e os que não têm condições materiais de fazê-lo.
De qualquer maneira, como já foi dito, a abdicação que o Estado faz de sua função nesse campo não é gratuita: com freqüência, ela responde a seu interesse em evitar assumir a responsabilidade oriunda do fato de uma deficiência na elaboração de uma informação ou na sua publicidade (quando não for motivada por algum fim espúrio, como o de proteger os interesses daquelas companhias, coletivos ou de pessoas que se beneficiam dessa situação de insegurança).
Se, por exemplo, numa certificação se omite, por erro, a existência de uma hipoteca, ou, o que é mais comum, se muda a responsabilidade hipotecária em virtude da troca de um número, o Estado deveria indenizar a quem sofrer o prejuízo provocado por esse erro. Obviamente, o Estado não deseja isso e, por essa razão, prefere não assumir a responsabilidade de elaborar uma informação verdadeira. Antes prefere, como acontece no caso do registro de títulos, pô-los à disposição do credor e obrigá-lo a efetuar as tarefas de expurgo e extração de dados.
c) A integração entre o cadastro e o registro da propriedade
Existe um tópico que afirma que os direitos reais não são seguros, caso não conste a identificação do bem sobre o qual recaem, e que essa identificação só acontece se o citado bem estiver corretamente mapeado e medido, e se essas tarefas não foram efetuadas por uma repartição pública.
Essas afirmações se chocam primeiramente com a evidência empírica que tem tornado possível que os registros da propriedade funcionem corretamente durante mais de cem anos sem necessidade de outra identificação dos bens que a puramente literária. Evidentemente, o próprio interesse dos particulares que intervinham nas transações, a facilidade na apreciação empírica da concordância entre a descrição efetuada no documento e a que existia na realidade, a simplicidade própria da descrição dos bens urbanos, especialmente, dos prédios, assim como, em certas ocasiões, quando existem lindeiros fixos, das rústicas, tem constituído durante todo esse tempo a principal garantia de uma correta identificação registral dos bens. Hoje em dia, esse mesmo interesse motiva certos particulares que desejam precisão absoluta na identificação dos lindeiros dos terrenos, objeto dos direitos que vão negociar, e procedam à medição e ao levantamento de planos dos mesmos. Sem dúvida, como assinala Fernando Méndez, essa prática traz consigo um aumento nos custos de transação, que eles aceitam em função de suas próprias necessidades. Entretanto, isso não significa que tal medida possa ser imposta a outros titulares de direitos que se encontram numa situação diferente.
O que acontecia no caso da elogiada simplicidade e celeridade no funcionamento dos registros da propriedade, a pretensão de integrar as duas instituições, esconde também um interesse completamente diferente ao que se declara; um interesse de dupla face: o das companhias privadas, que se encarregam de levar adiante essas tarefas de mapeamento a troco de benefícios materiais, e o dos Estados, que pretendem utilizar os registros da propriedade como repartições de arrecadação de impostos, ou, o que é mais grave, como um mecanismo que lhes permita controlar a propriedade imobiliária e facilitar a prática das denominadas “expropriações políticas”.
O que foi dito anteriormente não impede o reconhecimento da conveniência de que, com o tempo, o registro da propriedade possua uma planimetria a mais exata possível bem como, juntamente com o cadastro, coordene o intercâmbio da informação que ambas as instituições dispõem sob a direção do registro. Mas aquilo que de nenhuma maneira procede é sujeitar ambas a uma mesma autoridade administrativa e unificar seu regime de funcionamento. Para compreender a realidade dessa afirmação, baste lembrar as profundas diferenças que existem entre uma e outra. São diferenças que se referem à finalidade a que se propõem (o cadastro faz a tutela de um interesse público, ao passo que o registro protege o interesse privado dos cidadãos cuja dimensão pública resulta unicamente do fato de que seu âmbito de atuação é toda a coletividade); à qualificação do pessoal que trabalha a seu serviço (no caso do cadastro, os funcionários são, fundamentalmente, engenheiros, técnicos agrônomos, especialistas em direito fiscal, peritos, etc., ao passo que o registrador é um jurista, especializado em direito hipotecário e civil); e à transcendência dos atos e ao regime de responsabilidade ao qual estão sujeitos.
Nesse sentido, eu gostaria de narrar um outro fato bastante revelador, que ocorreu durante o primeiro Congresso Ibero-americano. O senhor Michel Paradise, diretor geral da Les Solutions Geointegra, nos informou que, em 1992, quando sua companhia iniciou a reforma do cadastro em Québec, o número de terrenos cuja descrição apresentava algum erro ou anomalia era de uns 740 mil de um total de pouco mais de 3 milhões. A meu ver, o que chama a atenção nesses dados não é a elevada porcentagem de erros, mas o fato de que, apesar deles, o Canadá, a região de Québec, estava em pleno desenvolvimento econômico, onde o crédito territorial funcionava com uma perfeita normalidade. O que quer dizer isso? Simplesmente que o deficiente funcionamento da instituição cadastral não afetava o comportamento da economia nem a ordem social da região. Imaginam o que teria acontecido se esse nível de erros tivesse se dado no registro? Não só as denúncias de responsabilidade teriam pulverizado os records como o próprio mercado imobiliário e hipotecário teriam desaparecido. Entretanto, o erro, ainda tão generalizado na província de Québec, não produziu outra conseqüência senão o excesso ou o déficit no pagamento dos impostos da terra. Exatamente porque a finalidade e a transcendência do cadastro não fazem senão regular o pagamento dos impostos oriundos dos direitos sobre os bens imóveis, função integralmente digna e necessária, mas que, por sua própria importância, impede que seu funcionamento possa ser assimilado pelos registros da propriedade.
d) A incompreensão da relação entre o princípio de fé pública registral e a função social da propriedade
Como já sabemos, em virtude desse princípio, aquele que adquire a título oneroso e de boa-fé um direito de uma pessoa que, segundo o registro, tem a faculdade dele dispor, será mantido em sua aquisição ainda que posteriormente se resolva em sentido contrário o de seu transmitente, em virtude de uma causa que não conste no próprio registro.
A fé pública registral permite eliminar a incerteza que, para o mercado, implicaria o fato de que um vício não-publicado de uma titularidade anterior pudesse afetar o direito de um adquirente, fosse ele um comprador ou um mutuário com garantia hipotecária.
Ora, um setor da doutrina tem objetado esse princípio, que implica a perda de um direito de uma outra pessoa, desprovido dele sem seu consentimento, o que quebra a tradição e sanciona uma suposta aquisição a non domino, convertendo seu sujeito num injusto. Esse mesmo critério tem recebido o aval de certa jurisprudência com base nos mes