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A posse, o registro e seus efeitos. - José Augusto Guimarães Mouteira Guerreiro[i]*
1– Na douta exposição-prefácio que Fernando Luso Soares fez ao significativo e clássico estudo de direito civil português sobre a posse – é claro referimo-nos à obra de Manuel Rodrigues – começa por estas simples palavras: “constitui, decerto, uma ousadia este meu empreendimento”.
Ora, se Luso Soares reconhece a ousadia do seu cometimento, que poderei eu dizer?
Falar sobre posse nesta veneranda Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e neste Congresso é mais do que uma redobrada ousadia. É verdadeira temeridade!
Deverei, portanto, circunscrever esta singela intervenção à modéstia que naturalmente se lhe adequa, referindo tão-só alguns dos pontos que atualmente se questionam, mas dando igualmente por assente que, ao falar de posse, não pretendo, de modo algum, debater as concepções aceites pela Doutrina e sancionadas por disposições legais vigentes, como é o caso da noção do art. 1251º do Código Civil, que se mostra claramente explicada no conhecido texto anotado pelos dois grandes ex-Mestres desta Casa em colaboração com o Doutor Henrique Mesquita. Como igualmente está fora desta intervenção a controvérsia sobre a eventual extensão do instituto aos direitos reais de garantia e aos bens incorpóreos.
Seguimos, pois, o proverbial conceito da “atuação de fato” relativa à prática concreta dos atos correspondentes ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real e complementado este corpus com o elemento subjetivo, com o animus, que Savigny sustentou e que, como se diz no referido Código Civil Anotado, a nossa lei-base terá consagrado, muito embora o artigo 1251º o não declare expressamente.
2 – Ao falar de posse é igualmente manifesto que tocamos nesse instituto nuclear no capítulo dos direitos reais, consabidamente elaborado, discutido e alicerçado numa milenar evolução histórica que radica no direito romano e tem vindo a ser objeto de interesse e estudo por parte de juristas, de filósofos e até de economistas.
E é talvez mesmo a perspectiva econômica e sociológica da posse a que tem logrado obter nos últimos tempos maior visibilidade. Na afirmação de SALEILLES – e que também LUSO SOARES cita no prefácio à obra de MANUEL RODRIGUES – fala-se da apropriação econômica das coisas como sendo uma idéia anterior à da propriedade, acentuando-se que a posse existe quando o detentor aparece como dono da coisa do ponto de vista econômico.
Mas, sem embargo do interesse filosófico e sociológico, é evidente que têm sido os mestres do direito civil que lhe continuam a dedicar a sua constante atenção. A este respeito, não posso deixar de citar as palavras iniciais da grande obra sobre a posse do Professor brasileiro José Carlos Moreira Alves. Diz textualmente: “Poucas matérias há, em direito, que tenham dado margem a tantas controvérsias como a posse”. E acrescenta: “Sua bibliografia e amplíssima”. De fato, este Professor demonstra-o, já que o primeiro volume da sua obra tem 1107 notas de citações e o segundo 1371, isto é o espantoso número global de 2478 referências, adicionadas ainda de 54 páginas de indicações bibliográficas sendo 30 no 1º volume e 24 no 2º.
Mas, se faço esta alusão é penas para:
1º) Reafirmar que está necessariamente fora do meu propósito dissertar sobre a posse,
2º) Lembrar que em vários domínios com pouco mais que um grão de areia se têm revolucionado conceitos. Aliás, sobre a própria idéia do espaço e do tempo e da energia cósmica muito se disse e se escreveu desde a antiguidade, mas foi só há cerca de 100 anos que Albert Einstein, enquanto meditava e tocava violino terá concluído que E=mc2, como demonstrou num artigo de 7 páginas.
3º) Fazerem-me a elementar justiça de reconhecer que, ao dizer isto, não tenho, evidentemente, a estultícia ou a louca idéia de pretender formular qualquer tipo de comparação com o enorme cientista, não já no vasto domínio da física, mas mesmo, pobremente, na seqüência do que sobre posse e o registro gostaria de ver debatido. E é evidente que reconheço a minha completa insignificância e a própria limitação do tema.
O que pretendia era tão-só sensibilizar a atenção dos juristas, agora que se comemoram os 35 anos do Código Civil, para que o tema da posse e do registro venha a ser mais devidamente tratado, com aquela “linguagem clara e o estilo singelo” a que alude o eminente Professor Antunes Varela, no prefácio do seu “Direito da Família”.
3 – Feitas estas ressalvas há que reconhecer que a posse tem os seus efeitos e são estes os que tradicionalmente colidem com o registro – pese embora o disposto no nº 1 do art. 1268º do CC – e que pensamos ser, na atualidade, indispensável alterar.
E ao dizê-lo convém desde já esclarecer que – com a ressalva já contemplada nesse preceito respeitante à presunção da titularidade do direito -, ao utilizar a expressão “efeitos da posse” quero referir-me, em sentido amplo, ao que creio ser a fundamental conseqüência jurídica da posse e não exclusivamente àqueles efeitos que expressamente são tratados no capítulo IV.
E o efeito básico que tudo tem ultrapassado é, a meu ver, o que motiva a aquisição originária do direito, ou seja, a usucapião.
Como de há longa data vem sendo ensinado, radica tal conseqüência jurídica na prática ininterrupta, pública e pacífica de concretos atos materiais do exercício possessório com o correspondente animus, de modo que assim se dá, como expressiva e claramente é explicado no Código Civil Anotado que vimos citando, a transformação jurídica daquela situação de fato em benefício do que exerce a gestão econômica da coisa .
A visibilidade, permanência e ostensividade dos atos possessórios facultam, pois, ao possuidor a aquisição originária do direito de propriedade ou dos outros direitos reais de gozo que tenham sido exercidos e se mostrem igualmente susceptíveis de tal possibilidade.
De modo que tanto histórica como doutrinariamente a usucapião justificou-se consensualmente entre os juristas e nos textos legais dada essa sua vertente pública de manifesta, ordeira, visível e inequívoca prática permanente de atos materiais e significativos de um exercício correspondente ao direito invocado, ou seja, dos poderes de fato que tornando-o sabido e cognoscível por todos, demonstram que, na realidade, quem assim os exerce, não pode deixar de ser publicamente considerado o seu titular. Negá-lo equivaleria, aliás, a uma inadmissível iniqüidade teórica e prática, reconhecida em múltiplos domínios tais como o filosófico , o social, o econômico e sobretudo o jurídico.
4 – Já há alguns anos escrevi breves apontamentos sobre a posse e o registro – um do quais veio publicado na Revista da Ordem dos Advogados – em que me interrogava sobre a valia dos efeitos e a própria razão de ser que a posse terá nos nossos dias. É que nem sequer lhe está subjacente uma idêntica veracidade conjuntural, sobretudo traduzida numa mesma realidade e numa certeza fática que motivaram e historicamente alicerçaram tão elaborada construção jurídica que nos chegou do direito romano.
Nesses tempos, pesem embora todas as transformações históricas ocorridas, o certo é um dado básico se mantivera: a propriedade e os demais direitos reais que se têm considerado susceptíveis de posse eram apanágio de poucos. E que se conheciam. Mas, como naquele artigo referi “nos últimos tempos, deu-se uma inversão, um fenômeno inteiramente novo, cujos efeitos, embora geralmente reconhecidos, parece que ainda não foram suficientemente ponderados pelos juristas: a propriedade, nomeadamente sobre imóveis e móveis sujeitos a registro, multiplicou-se, popularizou-se, democratizou-se: os proprietários são aos milhares, mesmo aos muitos milhares. E a velocidade das transações acompanhou, potencializou, essa multiplicação. São inúmeras as compras e vendas, as permutas, os trespasses, os mais diversos atos e contratos.
Por outra parte, no que respeita ao conhecimento do possuidor, verifica-se uma situação oposta: quebra de contato ou até total ignorância de quem ele é. As relações de vizinhança, de convivência, de intimidade, esbateram-se, quebraram, desapareceram quase por completo. Realmente, mesmo nas terras pequenas, muito poucos são os que se distinguem e quase todos nem se conhecem. Nas cidades, praticamente ninguém. Quem habita num andar quase já não faz qualquer idéia de quem são os que moram no mesmo prédio.
Mais: ainda quando alguém conhece o seu vizinho não sabe se ele é o proprietário, ou o usufrutuário, ou o arrendatário; ou seja, não sabe a que título possui, se no seu próprio nome, se no de outrem. Deste modo, afirmar-se – salvo circunstâncias verdadeiramente excepcionais – que a posse é demonstrável, e que se pode hoje em dia confirmar e comprovar constitui, perdoem-me, uma afirmação ingênua, senão mesmo inverídica. Com efeito, a descrita situação, sobremaneira evidente no que concerne aos meios citadinos e no tocante aos prédios urbanos, é atualmente extensiva a todo o território, englobando as áreas rústicas. Também aqui, a aceleração das transações, o chamado – conquanto discutível – progresso social, a volatilidade e a própria ocultação dos interesses e vários outros fatores, tais como a emigração, a instabilidade e permanente deslocação das pessoas, motivaram um generalizado desconhecimento dos titulares dos direitos reais, tudo isto aliado à indiferença, à insensibilidade e à efetiva ignorância das situações concretas. Não se sabe se quem ainda nos nossos dias amanha as terras (que esporadicamente se cultivam) é ou não o dominus. Aliás, será talvez – o que os vizinhos geralmente ignoram – o encarregado de alguma cooperativa, ou um arrendatário ou mesmo um simples comodatário, talvez porque o proprietário, ausente na cidade ou no estrangeiro, ainda conserva um velho e quase anacrônico gosto pela terra mater que não quer deixar a monte.
De modo que esta total e contemporânea ignorância e equivocidade dos possuidores, quer nas zonas citadinas quer nas rurais, e tanto no que respeita aos prédios urbanos, em que é por demais evidente, como também no que toca aos rústicos, não pode justificar uma real e verídica publicidade dos direitos e a prevalente invocabilidade da usucapião, tal como tem vindo a ser considerada pela doutrina e pela jurisprudência.
A cansativa e estereotipada – mas, como se disse, atualmente descabida – alegação de que o autor que reivindica o direito de propriedade do prédio é, há mais de 20, 30 e 40 anos, por si e antecessores que representa, o seu dono, porque o cultiva, o habita e pratica à vista de todos, e sem oposição de ninguém, os diversos atos materiais que o qualificam como possuidor em seu próprio nome e interesse e está, assim, em condições de invocar a usucapião – esta alegação, dizia, não tem atualmente consistência e razão de ser e, portanto, não deve ter aceitação doutrinária e legal. Além disso, é baseada na mais que falível prova testemunhal de quem se presta a fazer esse jeito. E, por mais advertências que se façam, a experiência confirma que não se conhecem, a este propósito, condenações por perjúrio. Afinal o certo é que constava, depreendia-se, dizia-se... E quem pode concluir que não? Que ao afirmá-lo convictamente se estava dolosamente a tentar prejudicar outrem? E afinal que prova é esta? É a que vai conseguir dar como provados fatos que, afinal, se podem sobrepor ao que consta dos documentos autênticos e dos registros?
5 – Como resulta do que se disse, é necessário mudar. E, mesmo enquanto a lei não é alterada, atrever-me-ia a sugerir que, a luz de uma interpretação atualística e analógica do art. 1293º do Código Civil, se possa considerar que da disposição aflora um principio geral: o de que é indispensável, para se poder invocar a usucapião, que não existam, objetivamente, condições não-exteriorizadas, dúbias, indeterminadas e, por isso, ambíguas, motivadoras da incerteza do direito exercido – como, convenhamos, acontece em vários casos que não caberá aqui concretizar. Cite-se apenas o exemplo dos prédios em regime de propriedade horizontal, com as suas múltiplas frações, cujos próprios condôminos se desconhecem uns aos outros.
Ora, se assim é, se a ratio daquela norma radica na circunstância de a posse não ser, nesses casos, nem manifesta, nem patente, nem conclusiva quanto ao direito exercido – e – muito embora as hipóteses previstas no preceito sejam taxativas – verificamos, no entanto, que na realidade atual, a justificação da impossibilidade aquisitiva aí prevista procede, com idêntica razão, em diversas hipóteses. Logo, talvez não seja descabido sustentar a apontada interpretação analógica e actualística para muitos outros casos.
6 – Por outro lado, e passando agora ao tema do registro, verificamos que a celeridade da contratação e a concomitante necessidade da sua credibilidade e garantia, exigem um regime de proteção da boa-fé e da certeza jurídica das titularidades, que são reconhecidamente valores estruturantes do direito civil, que, a nosso ver, só um sistema registral – e, acentue-se, só um eficaz sistema registral – está em condições de poder proporcionar. Não é a confusão, a obscuridade e a insegurança das situações o que Ordenamento deve admitir.
Quem confia na publicidade registral não pode, nem deve, ser preterido por aquele que alega – e consegue convencer os tribunais por rotina e sabe-se lá como – uma (como se disse) irreal ou mais do que duvidosa e, nos nossos dias, verdadeiramente ilusória usucapião.
E, em contrário, não se argumente lembrando que o registro não é, em geral, constitutivo. Ao que creio, não será indispensável tal efeito.
Bastar-nos-á apelar a uma conseqüência da inscrição registral, já prevista na lei, fazendo funcionar o principio da presunção da real existência do direito tal como registro o define de uma forma mais efetiva, à semelhança do que em Espanha é entendido e tido como incontroverso ainda que, aliás, em face de uma muito mais clara disposição: a do art. 34º da Lei Hipotecária. Mas, entre nós, enquanto não há uma desejável revisão legislativa neste domínio (e, note-se, tendo havido várias, provavelmente não se irá alegar que esta sugestão constitua um aberrante alvitre), há que buscar as mais eqüitativas soluções e, para tanto, teremos de interpretar as atuais disposições – mormente as dos art. s 5º , 6º, 7º, 8º e 17º nº 2 do Código do Registro Predial – de um modo muito mais amplo, muito mais consentâneo com a realidade contemporânea.
Não há muito tempo escrevi umas notas dizendo que, a meu ver, o âmbito do nº2 do art. 17º era o das simples invalidades registrais. Francamente já não penso o mesmo. Na época da pressa, da globalização e contratação eletrônica há que encontrar tábuas de salvação. E uma delas – para não dizer mesmo essencial, no incontornável domínio da certeza do direito, – é que o terceiro protegido será sempre o que adquire e registra e, inversamente, o que não está inscrito não merece tal proteção.
O registro, ainda quando não tem eficácia constitutiva, terá pelo menos de assegurar a graduação prioritária do direito previamente inscrito, a eficaz presunção da sua existência e a verdade do que publicita. Não parece justo, à luz da realidade do nosso Mundo, que no conflito de interesses subjacente, se continue a dar crédito à ancestralmente protegida mera situação de fato. A usucapião só deveria subsistir para situações residuais – quando não há título e registro – como uma espécie de amnistia civilistica.
7 – Na impossibilidade de sequer fazer uma singela abordagem das aludidas questões registrais e do significado que a atualmente lhes deverá ser atribuído direi apenas o seguinte:
a) A eficácia constitutiva do registro consabidamente está apenas claramente consagrada no artº 687º do Código Civil e nº 2 do artº 4º do Código do Registro Predial no tocante à hipoteca. Todavia, a propósito deste efeito, gostaria – e pedindo que me seja relevada a ousadia – de tentar introduzir um conceito novo, visto que, por um lado, nunca o vi sugerido, mas, pelo outro, creio-o ajustado à realidade. E tal conceito talvez se pudesse designar como o da eficácia constitutiva indireta. Há, com efeito, hipóteses em que, apesar de não constar expressamente da lei que o registro tem efeito constitutivo, no entanto, ele acaba por, na prática, existir ainda que indiretamente. Citarei apenas três exemplos: o primeiro respeita ao direito de superfície em bens do domínio público – dado que é fato sujeito ao registro e só nesse regime pode a sua utilização ser concedida tal como estabelece o nº 1 do artº 5º da Lei dos Solos. Aliás, além da hipoteca, esta é a outra hipótese de registro constitutivo expressamente previsto na lei hipotecária espanhola.
Outro caso é o da propriedade horizontal. Nos termos do disposto no nº 1 do art. 62º do Código do Notariado “nenhum instrumento pelo qual se transmitam direitos reais ou contrariam encargos sobre frações autônomas de prédios em regime de propriedade horizontal pode ser lavrado sem que se exiba documento comprovativo da inscrição do título constitutivo no registro predial” Ora, se a lei proíbe que se lavre qualquer ato sem que demonstre que o respectivo título constitutivo foi registrado, não quererá isto dizer que, também aqui, o registro tem uma indireta eficácia constitutiva?
Outras situações existem e dentre elas apenas lembrarei a do loteamento urbano. Não podendo tão–pouco enunciar, dada a manifesta complexidade do tema, os diversos condicionalismos legais que lhe são próprios, apenas traria à colação que – além da conhecida obrigatoriedade do licenciamento daquelas operações – há a necessidade de se comprovar a autonomização da descrição predial do lote. Ora, a abertura dessas descrições tem lugar, tal como dispõe o nº 3 do art. 80º do Código do Registro Predial, precisamente por força do registro de autorização de loteamento. Ou seja, para além de se tratar de fato sujeito a registro (art. 2º n. 1, alínea d) do Código do Registro Predial) a autonomização e correspondente descrição de cada um dos lotes irá necessariamente decorrer da inscrição registral daquela autorização. Aliás, diga-se ainda, que o justificar-se o direito de propriedade de lotes com base na usucapião abriria uma larga porta à clara violação de importantes normas sobre o loteamento urbano.
Por isso, nestas apontadas hipóteses (e noutras), em que é a própria lei que condiciona ou inviabiliza, na prática, a titulação de quaisquer negócios jurídicos se o correspondente registro não estiver feito, parece que estaremos, senão em face de casos explícitos de registro constitutivo, pelo menos perante situações que têm similares conseqüências. De modo que, para quem tem o nobile officium de interpretar e aplicar o direito, para tal fim, não será assim tão essencial e determinante o que é dito tradicional, mas quiçá arcaicamente, nos arts. 4º e 5º do Código do Registro Predial. Como bem se sabe o Ordenamento Jurídico é um todo e as soluções hão de ser buscadas a essa luz e não à de uma simples interpretação declarativa e mesmo, como freqüentemente acontece, até restritiva, mercê das muitas confusões que ainda subsistem a respeito dos atos e dos efeitos do registro.
b) No que toca às presunções derivadas do registro. Também neste ponto só poderei aflorar uma idéia que, sobre ser algo revolucionaria, apesar de tudo creio que será a mais realista. E surgiu-me a propósito do registro comercial, atentas, sobretudo, estas duas circunstâncias: em quase todas as pessoas coletivas em que o ato constitutivo está sujeito o registro – caso típico das sociedades comerciais e das cooperativas – este registro tem efeito constitutivo . O mesmo sucede com as cisões, fusões, o encerramento da liquidação e outros fatos. Mas dado o principio da especialidade, mesmo quando a lei não contém disposições tão claras como as dos arts. 5º ou 112º do Código das Sociedades Comerciais, não podemos presumir que uma sociedade cujo objeto, ou a firma, ou o capital eram uns e que deliberou alterá-los (até com ata lavrada por notário), mas não registrou essas alterações, o efeito presuntivo derivado do registro, mesmo entre os sócios, possa ser elidido com a simples exibição daquela ata.
Ou seja: muito embora possamos admitir que a inscrição registral não envolva, nesses casos, um efeito presuntivo de todo inelidível, ela também não se circunscreve apenas à usual presunção juris tantum que possa, em qualquer circunstância, ser elidida.
Daí que – porventura inadequadamente, mas com o propósito de tornar mais realista e perceptível esta idéia – tenha chegado a escrever que, nestes casos em que o fato não é absolutamente inelidível, mas, ao mesmo tempo, a elisão também não deve ser sempre admitida, estaremos talvez perante um tertium genus – um conceito de quase–inelidilidade, específico do direito registral, que ainda não foi tratado e conceptualizado.
Ora, quanto a este principio das presunções decorrentes de registro, não só o art. 11 do Código do Registro Comercial tem uma redação de todo idêntica à do art. 7º do Código do Registro Predial, como as razões pelas quais se tem de entender que, inexistindo vício do registro, subsistem análogos motivos, mormente nos tempos atuais, para não postergar quaisquer das presunções baseadas na titulação autêntica que o registro proporciona, preteri-lo seria minimizar sem fundamentos os efeitos que a lei consagrou e que o interprete deverá ajustar à realidade atual.
c) No que respeita à transmissão dos direitos reais. Sendo bem conhecido o principio consagrado no nosso direito civil da transferência destes direitos por efeito do contrato, que aqui não cabe discutir, a verdade é que ele vem sendo freqüentemente invocado pela jurisprudência e pela doutrina como regra absoluta. Ora, salvo o devido respeito, não é assim nem também para a segurança jurídica assim convém que seja. Como se diz na anotação ao preceito da nossa bíblia civilística que vimos citando, “os direitos reais primeiramente constituídos sobre a coisa prevalecem em relação aos constituídos posteriormente, sem prejuízo das regras do registro”.
E estamos agora neste ponto: não serão precisamente essas regras uma das ressalvas que a parte final do n. 1 do art. 408º do Código Civil prevê?
E que uma das exceções é a que resulta dos princípios da prioridade dos direitos tabularmente inscritos e que está expressamente consagrada no artigo 6º do Código do Registro Predial? Cremos que sim e que a certeza do direito mais sólida se tornava se o reconhecêssemos. A titulo de exemplo: muito embora a escritura translativa da propriedade que cumpre o contrato – promessa prioritariamente inscrita tenha sido outorgada e registrada já depois de uma outra que o ignorou, se ainda tiver “chegado ao registro” a tempo de poder converter a inscrição provisória de aquisição baseada no contrato-promessa, mesmo que este não tenha eficácia real, como que a adquire por força das regras próprias do registro, isto é, do nº 3 do art. 6º do Código do Registro Predial.
E, contra, não se pode argumentar nem com as regras da boa-fé – é claro que o registro provisório já lá estava e tinha de ser conhecido – nem com a mais do que falaciosa proteção dos credores. Quais? Os que preferiram confiar no “cobrador do fraque” e não numa inscrição registral, ainda que provisória, ou em qualquer outro direito que a lei faculta e permite registrar? E porque distinguir os efeitos prioritários das sucessivas inscrições?
8 – Feitas, ainda que muito sumariamente, estas observações no tocante a alguns dos efeitos do registro e à sua vislumbrada colisão com a posse, seria altura de tocar a vexata quaestio do conceito de terceiro. Trata-se, porém, de um complexo tema que não é possível aqui abordar e muito menos desenvolver.
Dir-se-á apenas o seguinte: concordando, em principio, com o que no Congresso sobre o Direito Sucessório disse a Drª Mónica Jardim, temos de convir que não é um conceito unívoco. Há, no Código do Registro Predial, vários terceiros.
Desde logo o do art. 5º é diverso do que está contemplado no art. 17º nº 2 e um e o outro são também, ao que creio, diferentes do que a lei prevê quanto à retificação do registro, no art. 122º.
De qualquer modo, a tristíssima inovação legislativa do n. 4 do art. 5º – introduzida pelo Dec.-Lei n. 533/99, de 11/12, porventura apenas para tentar contrariar as teses da jurisprudência – sendo, como de fato é, simples dislate desgarrado da própria epígrafe do preceito, não pode ser considerado como uma definição do conceito . De resto, nem também resulta que deva ter sido esse o propósito do legislador. De modo que aquele nº 4 ali deve quedar, como mero resquício da evolução legislativa, conquanto recente, já hoje está caduco e não deixará de ser entendido como mero texto histórico e que não é, em si, como qualquer outro, impeditivo da evolução do Ordenamento e da busca da verdade jurídica por parte do intérprete. Ora, como se disse e ainda se dirá, há textos legais posteriores (como o relativo à penhora na recente ação executiva) que só podem ser entendidos a outra luz.
E esta evolução conduz-nos mais rapidamente à interpretação extensiva do art.17º, nº 2 e não à restritiva, como tem sido usualmente considerada.
9 – Para concretizar com breves exemplos como tem evoluído nos últimos tempos a concepção do legislador, citarei apenas três casos, dois do nosso foro interno e um do internacional.
a) O primeiro, que logo nos salta à mente, é o da penhora de imóveis e de móveis sujeitos a registro no novo desenho da ação executiva concretizado pelo Dec.-Lei 38/2003, de Março.
Partindo da redação que foi dada aos artigos 838º e 851º, do Código do Processo Civil, fica-se na dúvida se, quanto aos imóveis e móveis sujeitos a registro, ainda se pode falar de um fato autônomo ele, em si, sujeito a registro, ou se há tão-só o registro do fato. Com efeito, a lei passou a declarar que a penhora se realiza mediante comunicação (eletrônica) à conservatória. Deste modo, se considerarmos, como parece nítido que devemos considerar, que a apresentação já é, em si, registro – trata-se, aliás, do seu primeiro elemento, sendo até ele o que fixa a prioridade registral – temos de convir que penhora e registro são um só ato. É que o n. 1 daquele art. 838º declara que a referida comunicação vale como apresentação. Temos assim que o fato registrável e o registro agora, no tocante à penhora de imóveis e de móveis sujeitos a registro, são uma única e só realidade indestrinçável. É certo que, mais adiante, se diz que a definitividade do registro fica condicionada (e faço um parêntesis para notar que não há aqui condição alguma) ao pagamento do preparo no prazo de 15 dias. Mas esta imprecisa dilação prevista para meros efeitos tributários não altera o que se disse: nem creio que se possa falar de registro de efeito constitutivo, ainda que efetuado por força de algum ato abstrato de consentimento à imagem de incompreendido modelo de cariz germânico. É mais, é muito mais do que isso. Há uma comunicação - apresentação (que se quis efetivar por via eletrônica) e é ela – e só ela – que constitui um ato: penhora-registro.
Perante esta única realidade – que, como diria Pessoa é a de nem sequer haver uma realidade – só nos resta pensar que chega a ser impraticável confrontar tal penhora-registro com quaisquer situações de fato que possam preterir ou alterar este conglubante ato único.
b) Um outro exemplo, menos revolucionário, mas bastante mais participado, visto que reuniu 183 países, respeita ao registro internacional de aeronaves. Tive ocasião de participar nas reuniões da UNIDROIT e da ICAO que, na seqüência do projeto de convenção das garantias relativas aos denominados “bens móveis de equipamento de grande valor”, preparou o texto da convenção internacional que, mormente nos capítulos 4ª a 7ª regula o registro e o estatuto do conservador, sua imunidade, autoridade e responsabilidade.
Acontece que também com esse registro internacional das aeronaves (cujo desenho em boa parte se baseou no estudo do Prof. Ronald Cuming exposto no 4º volume da UNIDROIT de 1999 - 2) procuram estabelecer-se regras fixas, por todos aceites, da prioridade dos direitos reais, designadamente o da propriedade sobre esses valiosos bens. E desde logo ficou assente que esse registro, além de totalmente informatizado, era unicamente baseado no título ou no registro nacional já efetuado e a prioridade determinada com base na data e ordem da apresentação. Algumas sugestões, inclusive quanto à ressalva de situações de fato possivelmente existentes em companhias aéreas, não foram aceites. O registro internacional teria de oferecer o grau de eficácia, garantia e certeza jurídica incompatíveis com fatos intitulados. E o documento do registro, juntamente com o certificado da vistoria técnica em ordem teria sempre de acompanhar o avião para que este pudesse decolar dos aeroportos dos países signatários da convenção.
Só se fosse judicialmente declarada uma eventual invalidade do título é que o registro poderia ser cancelado.
E creio que, no final dos trabalhos, todos confiavam que esta convenção viesse a ser ratificada por todos os países participantes.
c) O terceiro exemplo nada tem a ver diretamente com o registro, mas talvez com a oportunidade dos nossos conceitos.
Refiro-me ao recente Decreto-Lei nº 8/2003, de 18 de Janeiro, que me deixou perplexo senão mesmo pasmado. Não que ignore a atualidade e celeridade dos procedimentos informáticos, mas apenas porque sempre os considerei instrumentais. Algo acessório. O documento tanto poder ser escrito em computador, como com a tradicional caneta ou na máquina de escrever Claro que isso não altera a substância do que é dito – e tal é o que importa. O instrumento utilizado é meramente acidental é, em si mesmo, irrelevante.
Pois bem: lendo esse Decreto pensei: graças a Deus que já estou aposentado. É que, embora compreendendo os propósitos de simplificação e de menores custos administrativos enunciados no Preâmbulo, deparei, no final, com esta moderníssima advertência: “o presente diploma vem, assim, estabelecer a obrigatoriedade de os serviços e entidades com pessoal subscritor da CGA entregarem as relações de descontos de quotas em suporte digital ou através de correio eletrônico” (fim de citação).
Quer dizer que se eu estivesse numa conservatória ou cartório onde o desconto não fosse enviado à Caixa de Aposentações em suporte digital ou pelo já vulgarizado e-mail tinha de efetuar novo pagamento por essa via. Quem paga mal paga duas vezes.
E o que é instrumental aparece agora na lei com uma natureza substantiva?
Passei o cheque, paguei, mas o desconto não seguiu por via informática – logo não foi feito! Dura lex, sed lex: o correio eletrônico adquiriu , assim, uma natureza substantiva?
10 – Repito a pergunta inicial: Na era da Internet, dos suportes documentais digitalizados, em que a certeza da contratação eletrônica (e não só para a aquisição de “jumbos” de muitos milhões como para as mais variadas, complexas e onerosas transações) supõe e pressupõe uma segurança da publicidade registral, faz algum sentido que ela seja ultrapassável pelas mais que dúbias meras situações de fato, pela surpreendente invocabilidade da usucapião?
Não creio. Até porque este seria um buraco em que quem se julga protegido – e, afinal, nesta era contemporânea nem sonha com a usucapião – ainda se pode afundar, contra todos, contra o próprio título existente. E sem que a sua invalidade careça de ser declarada?
Pensamos que estes buracos têm de desaparecer, tal como, por outra banda, reconhecer-se que o registro não pode, entre nós dar o que não está preparado para dar. Refiro-me aos elementos referentes ao prédio. E porquê? Porque não é um sistema “Torrens”, porque não tem topógrafos, ou qualquer possibilidade de vistoriar os prédios.
A descrição predial é a declarada e unicamente confrontada com as matrizes.
Infelizmente ainda não temos um cadastro fidedigno, multifuncional, unívoco para todos: conservatórias, câmaras, serviços fiscais, agrários, do ambiente, enfim, uma base topográfica atualizada. E até o recente Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 do corrente, persiste na infeliz e subjacente idéia de que o cadastro se destina aos serviços fiscais.
Mas apesar disso – apesar de nem sequer nos ser indicada uma demarcação dos prédios – temos de repetir a pergunta: Será que pela circunstância de os elementos da descrição registral não terem ainda condições e meios para poder produzir, como seria desejável, quaisquer efeitos de fé pública – é isso impeditivo de que a inscrição dos direitos os não produza?
A resposta parece-me evidente.
É claro que não. Aliás, o que basicamente importa num sistema registral é a publicitação, a hierarquização, a eficácia dos direitos inscritos, mormente por meio dos correspondentes assentos registrais. A descrição é referencial.
Até pode vir futuramente, quando exista um cadastro organizado, a conter apenas o simples e correspondente número do prédio.
Além deste ponto, muitas vezes gerador de confusão, principalmente porque muitos dos nossos juristas, ao apreciar o valor e efeitos do registro, não fazem, como seria indispensável, a devida distinção entre o que corresponde às inscrições dos direitos – que é manifesta e basicamente o que releva – e às descrições prediais, cuja indesejável imprecisão não pode alterar os efeitos do registro ou seja, do assento registral, mormente o da presunção das titularidades, da prioridade e da fé pública. De resto, essas imprecisões, sejamos francos, não se conseguirão solucionar sem uma de duas coisas: a) ou os serviços registrais terem os seus próprios topógrafos e funcionários tecnicamente habilitados; b) ou então, como se afigurava preferível, desenvolver-se um cadastro multifuncional e credível, dando rápida e eficaz resposta às próprias modificações fundiárias fruto de atos jurídicos e, como tal fosse, em fácil intercâmbio, publicitado pelas Conservatórias. É, aliás, o que já há muitos anos se verifica na generalidade dos países da Comunidade Européia.
11 – No que toca à credibilidade das inscrições também me parece que seria necessário acabar com algumas situações. Para além da invocabilidade da usucapião, sobrepondo-se ao titulo – o que, como se disse é atualmente incompreensível – há ainda outros buracos que seria necessário tapar e que a escassez do tempo concedido não me permite desenvolver.
Aludo apenas a três casos previstos no Código do Registro Predial: A comunhão hereditária, prevista no art. 49º ; 2º) o registro da mera posse a que se refere o art. 2º, e 3º) a exceção prevista na alínea c do nº 2 do art. 9º .
Relativamente a estes dois últimos pontos creio que não têm qualquer interesse ou relevo e só servem para confundir. Permitam-me que invoque a experiência pessoal e diga o seguinte: tenho sido conservador durante perto de 40 anos e inspetor que andou uns 20 anos do norte ao sul do país e membro do Conselho Técnico em que muitas centenas de processos me passaram pelas mãos, e apesar disso, nunca vi nem soube da existência de um único registro de mera posse, nem também de um único ato em que tivesse sido justificada a urgência por perigo de vida dos outorgantes. Mas, ainda que houvesse algum escondido, isso nada acrescentaria.
É que a lei não pode subsistir por mera tradição. Olvidando embora a consabidamente mais lenta evolução dos direitos reais, julgo que já era tempo de acabar com estes arcaísmos, que tendo sido teoricamente justificáveis, não têm, mormente neste terceiro milênio, qualquer sustentáculo numa prática que foi constante desde a ditadura de César, mas que, irreversivelmente, esta hoje substituída pela ditadura da eletrônica.
12 – Um outro ponto que creio ter algum interesse gostaria de recordar. A modernização do registro predial teoricamente iniciada com o Dec.-Lei nº 305/83 de 29 de Junho, veio a institucionalizar-se com o Código do Registro Predial que entrou em vigor no ano seguinte.
Isto é: temos presentemente um sistema de registro que vigora há cerca de 20 anos. Curioso número este: 20 anos é precisamente o prazo máximo estabelecido no art. 1296º do Código Civil para que possa dar-se a usucapião e que o mesmo Código também prevê como sendo o prazo ordinário da prescrição.
Quer isto dizer, perdoando a jocosidade, que neste novo século teremos de considerar prescrita a usucapião? Sem chiste, ouso responder: se não prescrita porque ainda não há, por ora, condições para tanto, pelo menos altamente diminuída da sua tradicional importância. Como disse, residualmente, porque faltam condições.
E faltam condições, principalmente porque nem todos os prédios estão ainda cadastrados e integrados no sistema da publicidade registral e, dos que estão, há também os que não têm a sua titularidade devidamente atualizada.
Por outro lado, importância da posse altamente diminuída visto que o principio da legitimação consagrado no art. 9º do Código do Registro Predial já vigora desde 84 e, a partir de então, genericamente, quem quer que pretenda titular a transmissão de direitos ou a constituição de encargos sobre imóveis tem de demonstrar que os bens se acham definitivamente inscritos a favor do transmitente ou do onerante. Ou seja: a lei foi estabelecendo uma obrigatoriedade indireta do registro. Contudo, decorridos estes cerca de 20 anos, podemos dizer que essa obrigatoriedade já se institucionalizou nos nossos hábitos. Ora, assim sendo, parece que claro que uma expressa obrigatoriedade já praticamente não causaria grande perturbação. Essa seria uma opção do legislador que se afigurava correta.
Há que sublinhar a permanência de um outro principio essencial para credibilidade de um sistema registral. È o que se acha consagrado no art. 68º usualmente denominado principio da legalidade.
É-nos de todo impossível traduzir em breves palavras a importância que reveste a qualificação do título para uma credível publicação dos direitos reais. Direi apenas o seguinte: já há vários anos que o Banco Mundial decidiu financiar a institucionalização de sistemas de registro nos países em vias de desenvolvimento desde que oferecessem fé pública. E esta, como é manifesto, só pode existir quando vigoram os princípios a que aludi e, designadamente, o principio da legalidade para o exame imparcial, autônomo e isento, mesmo face ao Estado, da validade intrínseca dos documentos públicos e privados com a única e necessária limitação do respeito pela lei e pelo caso julgado.
É, que, como notava FERNANDO MENDEZ e a Revista “Registradores” de Abril passado publicou, “dois terços da riqueza dos países em desenvolvimento dependem da propriedade imobiliária”.
13 – Não podendo alongar-me mais, insistiria apenas lembrando que a desconsideração pelo título e o efetivo desrespeito pela valia do documento autêntico, notarial e judicial, foi, ao que julgo, defendido sobretudo nos países da tradição saxônica que igualmente menosprezam a norma escrita e a codificação das leis, para se vangloriarem antes nas primitivas concepções do case law e do direito consuetudinário. Todavia, mesmo nesses países, tais arcaicas concepções estão a ser ultrapassadas por se reconhecer que a certeza do direito e a garantia das transações imobiliárias e de móveis de elevado valor exige a titulação dos atos – nem que seja por via eletrônica autenticada – e os correspondentes registros.
14 – Conseqüentemente, e para terminar, não vamos nós, herdeiros da superior tradição romano-germânica, ser daqueles que querem retroceder.
Pelo contrário, teremos de afirmar e reconhecer que o ato titulado e registrado é o que deve prevalecer. Se o título ou o registro são inválidos é uma invalidade que terá de ser atacada nessa sede e pelos motivos que a lei prevê. Não invocando a velha posse-usucapião (posterior ou pré-existente) já que ela hoje é, perdoem-me, uma verdadeira falácia, principalmente porque o Mundo perdeu a estabilidade de outrora. Por isso, a posse, em vez de corresponder a uma veraz publicidade e de se traduzir numa realidade exata e conhecida, é, pelo contrário, fonte de incerteza, de anarquia, de ambigüidade das situações, de indeterminação, de mentira, de insegurança e instabilidade dos fatos e do direito – ou seja, tudo o contrário que a alicerçou, ao longo dos tempos e formou o seu proverbial, pacífico e belo conceito.
Dir-me-ão que estou a ser surrealista. Surrealista? Talvez: mas por certo não irrealista.
Permitam-me ainda que, a este propósito e nesta Casa cite Cícero: “prefiro o testemunho da minha consciência às adversas razões com que me queiram atacar”.
Também eu, tal como o grande orador e cônsul de Roma, prefiro que me critiquem a que digam que faltei ao que creio ser meu e nosso essencial dever: contribuir para a solução prática dos problemas, para o esclarecimento da verdade e para a certeza do direito.
Muito obrigado pela vossa atenção.
[i]* José Augusto Guimarães Mouteira Guerreiro é registrador português aposentado, autor de vários artigos e livros sobre direito registral imobiliário e colaborador da Revista de Direito Imobiliário. O texto aqui publicado foi apresentado no transcurso das comemorações dos 35 Anos do Código Civil português, Congresso de Direitos Reais da Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito nos dias 28 e 29 de novembro de 2003 no Auditório da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
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