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CONDOMÍNIO EDÍLICIO TENDO O SOLO COMO ÚNICA ÁREA COMUM. - Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho[i]1


O regime tradicional da propriedade imobiliária exclusiva já foi, desde a segunda metade do século passado, absorvido por novas formas de domínio, especialmente pela propriedade horizontal (denominada condomínio edilício pelo Novo Código Civil), em razão de circunstâncias de ordem econômica, cultural e, principalmente, da vertiginosa redução de espaços urbanos[ii]2.

Embora possa não ser a melhor forma do exercício da propriedade em locais que não apresentam problemas populacionais, uma vez que são notórias as vicissitudes do condomínio, torna-se uma necessidade vital nos centros urbanos.

É que a falta de espaços disponíveis, com o conseqüente aumento do custo de um terreno nessas áreas, inviabiliza a moradia para as classes menos abastadas.

Somente havendo comunhão de esforços, com a divisão dos custos de aquisição do terreno e da construção das unidades, é possível o acesso à moradia da população em geral nessas áreas[iii]3.

Na Europa, após a primeira guerra mundial, com a destruição das cidades, surgiram diversos edifícios, inicialmente de poucos andares, seguindo-se a construção, já na década de 50, na Franca, de grandes construções.

Os problemas urbanísticos causados pela propriedade horizontal, reduzindo espaços para estacionamento de veículos nas regiões de grandes condomínios e sobrecarregando as redes de esgoto, elétrica e de todos os serviços públicos, de forma geral, persistem, mas já estão as cidades procurando superá-los através de políticas urbanísticas sérias, adotando-se, por exemplo, gabaritos de construção.          

Por outro lado, a realidade social demanda a criação de novas formas de propriedade não contempladas na antiga Lei 4.591/64, assim como no Novo Código Civil, citando-se, a título de ilustração, o problema dos chamados loteamentos fechados ou condomínios de fato.

O que se pretende com o presente trabalho, entretanto, é lançar luzes sobre questão que, seguramente, atinge a todos os municípios brasileiros e que, todavia, não tem merecido atenção de nossos juristas.    

Refiro-me à possibilidade de se instituir condomínio edilício tendo como unidades autônomas duas ou mais casas, geminadas ou não, sobre uma mesma base física (solo), embora a concepção arquitetônica do projeto as tornem, para efeitos práticos, absolutamente independentes, todas com saída própria para a via pública e com equipamentos urbanos próprios.

Antes de examinar a questão proposta, registre-se que, a despeito da legalidade ou não do procedimento, tal prática já está consolidada na maior parte das cidades brasileiras, o que, por si só, recomenda maior flexibilidade e largueza na interpretação da legislação existente. 

Apenas para situar melhor o leitor, esclareço que a praxe verificada é a seguinte: em virtude do alto preço dos imóveis nos centros urbanos, duas ou mais pessoas adquirem, em conjunto, um lote ou  um terreno para nele edificarem. Como não se permite, pelas legislações locais, o desdobro desses lotes, em decorrência de suas reduzidas dimensões, dividem os condôminos a área, normalmente murando-a, e lá constroem suas respectivas residências. 

Ocorre que, na prática, não existe, com exceção do solo, outras áreas comuns entre essas duas “ unidades”, o que impediria, a princípio, a instituição do condomínio edilício, e, certamente, prejudicaria o tráfego imobiliário, desvalorizando a propriedade, uma vez que futura venda teria que ser feita como venda de fração ideal e não de unidade autônoma, exigindo-se, por conseguinte, anuência dos demais condôminos, além de outros inconvenientes.

Pretende-se demonstrar, a seguir, a legalidade e conveniência da solução menos ortodoxa sustentada por alguns operadores do direito. 

Como ponto de partida, tomemos em consideração o posicionamento de Gilberto Valente, ex-juiz da Vara de Registros Públicos da Capital do Estado de São Paulo e consultor jurídico do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, que em diversas consultas dirigidas à prestigiosa instituição se posicionou no seguinte sentido, ao ser indagado acerca da possibilidade de ser instituído condomínio edilício em relação a quatro casas geminadas, todas com saída própria para a via pública e sem outras áreas comuns além do terreno, fundação e paredes:

(Boletim Irib, nº 295- Dezembro 2001)

Resposta: “ Essa edificação não pode ser submetida à Lei 4591/64 por falta de área de uso comum das quatro casas. Trata-se de condomínio de meação de paredes etc., a ser regido pelo Código Civil, se cada pessoa ou grupo adquirir uma das casas. Mas é preciso atentar para o seguinte: a) existe lei municipal segundo a qual ao aprovar a construção de mais de uma casa no mesmo terreno, automaticamente, a Prefeitura Municipal está aprovando o desmembramento?;b) inexistindo lei específica é preciso uma aprovação ao parcelamento do solo, base física de cada edificação;c) não sendo aprovado o parcelamento da base física de cada edificação e não existindo lei especifica, cada adquirente comprará 25% do terreno ( 4 casas) e a benfeitoria, o que por si só já é irregular: se o terreno fica em condomínio as benfeitorias, que são acessórios do principal ( terreno), não podem ser de propriedade exclusiva. Assim, cada adquirente adquire, compra ou recebe em doação, uma parte ideal do imóvel. Entre eles, os condôminos podem aprovar um documento, fixando cada um em uma das construções e regulando outras questões de interesse comum. Esse documento assinado e com as firmas reconhecidas será registrado no Registro de Títulos e Documentos.”

No mesmo sentido, veja-se resposta publicada no boletim Irib nº 303, de agosto de 2002.

A princípio, afigura-se correta a opinião do consagrado jurista – uma das maiores autoridades nacionais em matéria de registros públicos --, mas o enfrentamento constante da questão no plano prático recomenda solução diversa.

Ressalte-se, por oportuno, que o atual Código Civil não repetiu qualquer disposição semelhante a do artigo 8º da Lei 4.591, que cuidava do condomínio de casas térreas ou assobradas, cujo teor era o seguinte:

Artigo 8º “ Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário sobre ele desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte: a) em relação às unidades autônomas que se constituírem em casas térreas ou assobradadas, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação ou também aquela eventualmente reservada como de utilização exclusiva dessas casas, como jardim e quintal, bem assim a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá às unidades;.

Mesmo não reproduzindo norma semelhante, os conceitos e dispositivos do Novo Código Civil, se aplicam, indubitavelmente, à situação fática tratada pelo artigo acima transcrito.

Destarte, absolutamente desnecessário discutir-se, no âmbito deste trabalho, acerca da revogação total ou parcial da Lei 4591/64 pelo novo Código Civil[iv]4.

Isto porque o condomínio de casas continuará existindo, seja para aqueles que consideram inteiramente revogada a Lei 4591/64, seja para aqueles que consideram ter havido mera derrogação do mencionado diploma legal e que, portanto, estariam mantidas as disposições não conflitantes com o atual ordenamento jurídico, como seria a hipótese presente.

Nesse sentido, veja-se a opinião de Hélio Lobo Júnior[v]5:

“ Com o novo Código Civil, aparentemente teria havido revogação da Lei 4.591/64, pelo menos em sua parte inicial. Há quem afirme que ocorreu a revogação tácita ( Revista dos Advogados 68/61). Essa assertiva, porém, não parece correta. A revogação ocorreu apenas na parte que conflita com as disposições do novo Código Civil. Confira-se, por exemplo, a prevalência integral do capítulo referente às incorporações imobiliárias. Além disso, algumas disposições precisam ser, ainda, aproveitadas, como por exemplo, o disposto no artigo 8, a até d, da Lei 4591, de 1964. Se assim não se entender estaria afastada a possibilidade de ser feito o condomínio edilício de casas térreas ou assobradadas, o que não parece nem um pouco razoável. Assim, permanecem em vigor, ainda, diversos preceitos da Lei 4591/64.

Por sua vez, examinando-se, atentamente, os dispositivos da Lei 4591/64, assim como os do Código Civil em vigor, não se encontra qualquer regra que estabeleça qual o número mínimo de partes comuns em um condomínio edilício, de sorte que qualquer restrição nesse sentido se afigura ilegítima.[vi]6

A legislação em vigor, a exemplo da Lei 4591/64, limita-se a fazer uma enumeração daquilo que, normalmente se considera área comum e aquilo que é suscetível de ser propriedade exclusiva.

É óbvio que o solo, pela própria natureza das coisas, terá que ser objeto de propriedade comum, de sorte que não pode ser alienado separadamente ou dividido.

Destarte, nas construções dessas casas poderá ser instituído, se for de interesse das partes, o condomínio edilício, pois há, no mínimo, co-propriedade do solo e dos muros que cercam o terreno, sem prejuízo de outras áreas de propriedade e de uso comum que desejarem os condôminos (exemplificativamente, podem reservar uma faixa comum no fundo do terreno para servir de quintal ou uma área comum para acesso às respectivas residências).

O fato de, eventualmente, não haver acesso comum para via publica, não descaracteriza esta forma de propriedade, pois a Lei 4591/64 admitia que tal acesso poderia ser ou não por intermédio de área de uso comum, o que, inclusive, ocorre com muita freqüência em relação a lojas e garagens.

Embora tal norma não tenha sido repetida no Novo Código Civil nada há que impeça a existência de acesso direto à via pública. O que a lei taxativamente exige é que todas as unidades tenham acesso para o logradouro público (parágrafo 4º do artigo 1331 do novo Código Civil).

A configuração do empreendimento ou das construções (maneira como ela vai ocorrer no solo) é irrelevante para a caracterização do condomínio edilício, podendo ser adotada a forma de casas geminadas, casas separadas ou construções por planos superpostos.

O Indispensável é que coexista, em um único terreno, áreas de propriedade comum e áreas de domínio privativo. É que a propriedade edilícia é um instituto complexo, combinando a existência de propriedade exclusiva de cada uma das unidades que integram o todo com a co-propriedade das áreas comuns.

Por sua vez, a constituição do condomínio edilício depende de manifestação de vontade expressa, seja por ato inter vivos , seja por ato causa mortis, surgindo pela destinação do proprietário, pela incorporação ou pelo testamento, dentre outras formas.

A admissão do condomínio edilício, mesmo para aquelas hipóteses em que existam duas unidades, absolutamente separadas e com vida autônoma, não é impedimento legal para a sua instituição.

Impõe-se, também, distinguir o conceito de coisa comum do de coisa de uso comum, como lembra Caio Mário da Silva Pereira[vii]7, invocando decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, publicado na ADCOAS, 1988, nº 120.646).

O Novo Código Civil deixa claro no seu artigo 1340 que podem haver áreas comuns utilizadas com exclusividade por um dos condôminos, o que denota que uso comum não se confunde com propriedade comum.

Logo, o que a lei exige é que coexista propriedade comum ( não necessariamente uso comum) e a propriedade exclusiva. Tais requisitos são atendidos na situação fática proposta, em que num único terreno são construídas duas casas.

Em qualquer hipótese sempre haverá propriedade e uso comum em relação ao solo, o que , por si só, já permitiria a instituição do condomínio edilício.

É certo que nesses casos a convenção de condomínio será extremamente parcimoniosa em suas disposições e, normalmente, não haverá necessidade de contribuição mensal para manutenção do condomínio.

Por sua vez, o cálculo da fração ideal deverá ser feito respeitando-se o valor da coisa, na forma do parágrafo 3° do artigo 1331 do Novo Código Civil.

Observe-se, contudo, que na hipótese aventada, impõe-se que o valor seja arbitrado pelos interessados tomando-se por base o valor pago no momento da aquisição do terreno.

Assim, se numa metade do terreno for construída uma casa luxuosa e na outra metade uma casa modesta, isto não terá qualquer influência na fixação das respectivas frações ideais, evitando-se futuras distorções.

Tal solução, ademais, torna desnecessária a alteração das frações ideais nos casos de melhoramentos futuros nas construções, seja em virtude de embelezamento, seja em razão de acréscimo de área.

Por fim, a última questão a ser enfrentada diz respeito à possibilidade de se instituir condomínio antes mesmo de os adquirentes do terreno iniciarem a construção de suas respectivas residências.

Apesar de prevalecer o entendimento de que somente poderia se instituir condomínio edilício quando já existir construção, em razão do disposto no artigo 1331do código em vigor, começa, a nosso sentir com razão, a vingar a tese de que seria possível estabelecer tal forma de domínio prematuramente, não sendo necessário aguardar-se a edificação para constituí-lo.[viii]8

Concluindo, considero que a solução alvitrada permite acesso à moradia aos menos abastados, sem que, por sua vez, haja qualquer prejuízo do ponto de vista urbanístico.

A existência de poucas casas ao invés de um edifício com muitas unidades é muito menos prejudicial à comunidade, pois demanda menores investimentos em redes de água, esgoto, eletricidade, além de amenizar o fluxo de automóveis nos logradouros públicos.

Do ponto de vista econômico, a existência de um condomínio edilício ao invés de um condomínio voluntário (chamado de condomínio comum no antigo regime), como propugna Gilberto Valente, é muito melhor para a circulação da riqueza, na medida em que pode ser alienada ou onerada sem necessidade de anuência prévia dos demais condôminos.

Ademais, tal postura facilita a partilha de bens das camadas mais pobres da população, uma vez que os herdeiros, por ocasião do término do inventário daquele que em um único terreno edificou duas casas, poderiam receber unidades autônomas livremente negociáveis.

Argumente-se, ainda, que a suposta proibição legal poderia ser facilmente contornada, bastando que as partes aprovassem um projeto de construção com área comum de acesso ao logradouro publico e, logo após a obtenção do habite-se, fechassem tal passagem.[ix]9

Repita-se que tal solução não traz qualquer prejuízo para as partes e também para a cidade, inexistindo, por outro lado, qualquer obstáculo legal que impeça a instituição do condomínio nas condições acima mencionadas[x]10.

Ademais, a revisão de conceitos e modelos, de maneira a ajustá-los aos padrões fundados na realidade fática acaba por trazer maior segurança e transparência aos negócios imobiliários, evitando-se que surjam conflitos que não serão tratados dentro do modelo legalmente instituído.



[i][1] Titular do 1º Ofício de Justiça de Volta Redonda-RJ.  Ex-Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro.

[ii][2] - Rodrigues Pardal, Francisco e outro. Da propriedade Horizontal no Código Civil e na Legislação Complementar, Coimbra Editora Limitada, 4ª edição, página 64 afirma que “ por motivo crescente custo do terreno e das construções e para melhor aproveitamento dos locais situados nas zonas dominantes dos centros urbanos, surgem construções em altura, isto é, com vários andares, havendo, cada um, ou nas partes divisíveis,uma habitação própria (....)”

[iii][3] - No XII Congresso Internacional da Propriedade Imobiliária Urbana realizado em Valência, no ano de 1952, formulou-se a seguinte conclusão “ a propriedade horizontal é o meio mais harmônico e mais flexível, pelo seu caráter de solidariedade social, para permitir, na medida do possível, o acesso à propriedade privada urbana”.

[iv][4] Defendendo a revogação total, veja-se Pedro Elias Avvad. Condomínio em Edificações no Novo Código Civil Comentado, Editora Renovar, página 240, concluindo que: “ ... estão revogados todos os 27 artigos da Lei 4591/64 que tratavam do condomínio, não prevalecendo qualquer de seus dispositivos sobre a matéria versada no capítulo do Condomínio Edilício no Código Civil. Outros autores, entretanto, consideram que o Novo Código Civil não ab-rogou e nem derrogou a Lei 4591/64, ficando em vigor as normas que não colidem com o novo diploma legal, já que não houve revogação expressa. 

[v][5] Hélio Lobo Jr, em artigo publicado na coletânea de trabalhos sobre o novo código civil e o registro de imóveis , coordenada por Ulysses Silva, Editora Sérgio Fabris, página 25. 

[vi][6] O Decreto 5481/28 previa, por exemplo, o número mínimo de três peças de área privativa.

[vii][7] Caio Mário da Silva Pereira. Condomínio e Incorporações. Editora Forense, 10 edição, página 69.

[viii][8] Nesse sentido, veja-se a tese sustentada por Décio Antonio Erpen, João Pedro Lamana Paiva e Mario Pazzuti Mezzari em trabalho apresentado no XVII Encuentro Del Comitê Latinoamericano de Consulta Registral, realizado de 9 a 14 de março de 2003, em Morelia, Michoacán, México, publicado no Boletim do Irib em Revista de março e abril de 2003-nº 309, página 17/19.

[ix][9] Saliente-se não ser necessária a aprovação da instituição do condomínio edilício pelo Município, sendo necessária, apenas, aprovação para a construção da obra. 

[x][10] Registre-se que, na prática, a solução aqui defendida já é adotada em todo território nacional, inexistindo, tão-somente, subsídios doutrinários que a ampare. Nicolau Balbino Filho, em sua obra Registro de Imóveis, Doutrina-Prática-Jurisprudência, Editora Saraiva, 9ª edição, 1999, páginas 348/354 fornece modelos de atos registrais que acolhem este tipo de condomínio.



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